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Quatro dias de evento, 2.300 pessoas, 1.415 trabalhos apresentados, mais de 60 atividades. A 9ª edição do Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS), que aconteceu entre 31 de outubro e 3 de novembro, no Recife, promoveu o encontro entre a produção científica de diferentes áreas do conhecimento e questionou sua relevância para a construção da saúde. A proposta de troca de saberes, que tinha como eixo condutor um tema complexo — Emancipação e saúde: decolonialidade, reparação e (re)construção crítica, ainda foi pautada por diferentes narrativas sobre desigualdades.

Desigualdades sociais, ambientais e de acesso que geram iniquidades, como pontuou a ministra da Saúde, Nísia Trindade, na conferência de abertura; desigualdades representadas pela manutenção do “pacto da branquitude”, como advertiu Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT); desigualdades que têm raízes históricas no passado de imposição religiosa e escravidão de indígenas; desigualdades que violentam comunidades em nome da afirmação do capital; desigualdades que ainda colocam sujeitos no lugar de objetos e os impedem de participar de decisões que afetam suas vidas.

Organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o encontro é chamado carinhosamente de Abrasquinho — e sua nona edição ficou marcada pela urgência em dialogar com saberes até então excluídos do debate acadêmico convencional. Radis acompanhou algumas discussões, mesas redondas e conferências, e traz provocações do congresso para que, também na saúde, possamos descolonizar os nossos olhares e a maneira de pensar e fazer ciência.

Reconstruir sem desigualdades

Ministra Nísia Trindade, na abertura do Abrasquinho: ênfase nos desafios urgentes para o campo da saúde. — Foto: Roan Nascimento.
Ministra Nísia Trindade, na abertura do Abrasquinho: ênfase nos desafios urgentes para o campo da saúde. — Foto: Roan Nascimento.

A conferência da ministra Nísia Trindade na abertura do Abrasquinho deu o tom que seguiram mesas redondas, debates e conversas informais durante cinco dias de evento no campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Nísia partiu da discussão sobre a relevância das ciências sociais e humanas na reconstrução crítica da saúde para enumerar os desafios que se impõem ao campo, no Brasil.

Ela concentrou sua fala em temas relacionados à produção de desigualdades que merecem a atenção de gestores e pesquisadores “para que efetivamente seja possível a reconstrução da sociedade em geral”. Para a socióloga, o desafio demográfico é urgente. Ao citar dados recentes do Censo, ela apontou que o país deve se preparar para oferecer políticas que atendam às necessidades de parte da população que envelhece, sem negligenciar, no entanto, ações mais consistentes para a infância e a juventude.

O enfrentamento às desigualdades de classe, de gênero e étnico-raciais também é urgente, indicou Nísia, que reforçou a importância da geração e do uso de dados acessíveis que subsidiem ações de intervenção nas situações de iniquidade: “Na medida em que você abre espaço para a não informação, abre-se espaço para a não política”, avaliou.

O desafio ambiental também foi citado por Nísia, uma agenda que considera interdisciplinar. Ela se inspirou na ilustração Mulheres Mangue, da artista Rosana Paulino, para ressaltar como teóricos têm investido na mudança do olhar para o “mundo vegetal”, considerando aspectos como ancestralidade e cooperativismo entre espécies. O diálogo entre o mundo biomédico e o mundo social, neste sentido, deve orientar debates que promovam uma nova visão sobre estilo de vida e modos de produção, recomendou a ministra.

Ela também citou os impactos do uso das novas tecnologias de comunicação e informação na vida e na saúde das pessoas, como “a produção organizada de falsos enunciados que se repetem como verdade”. A ministra reforçou a defesa de que a saúde deve ser aliada da ciência, “mas sem produzir, reproduzir ou ampliar desigualdades”.

As mudanças no mundo do trabalho também foram citadas como desafio. Fenômenos como automação e inteligência artificial podem estar reforçando desigualdades, apontou Nísia. “Sou grande defensora da ciência e da inovação, mas temos que entender o SUS como a grande inovação do ponto de vista de cidadania e de projeto social no nosso país”.

Por fim, a ministra citou palavras do sanitarista Sergio Arouca para atualizar o desafio democrático, apontando o medo como tema central para a comunidade acadêmica. Em um mundo onde ainda se vivem as guerras e a preocupação com a segurança, ela destacou que o SUS é uma das mais democráticas conquistas da Constituição de 1988, mas que ainda precisa avançar no combate às iniquidades.

Diversidade é presença

Bandeira do movimento Nem presa nem morta, ação coletiva para fomentar o debate público sobre aborto no Brasil. — Foto: Mateus Serrer.
Bandeira do movimento Nem presa nem morta, ação coletiva para fomentar o debate público sobre aborto no Brasil. — Foto: Mateus Serrer.

Em 132 anos de história, o Supremo Tribunal Federal (STF) não teve uma ministra negra, enquanto mulheres negras correspondem a 28% da população brasileira. Esse dado foi recuperado por movimentos que pediam a indicação de uma jurista negra para as duas vagas disponíveis no Supremo, em 2023, com a aposentadoria de seus titulares. Contudo, as duas indicações do presidente Lula (Cristiano Zanin e Flávio Dino) só confirmaram a regra: dos 171 ministros que já passaram pela corte, 165 foram homens brancos.

“A gente tem que estranhar o perfil monolítico das lideranças das instituições”, afirmou Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e autora de “Pacto da branquitude” (Companhia das Letras). “Não é só trazer os negros no discurso. É colocar uma caneta na mão pensando e tomando decisões juntos”, completou.

Segundo ela, a diversidade precisa estar em todas as instâncias. “Se não definirmos metas, isso sempre ficará no discurso”. Ao relembrar uma frase do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Muniz Sodré, Cida destacou que “a diversidade é física”. “É por presença”.

“Os segmentos que estiveram excluídos dos lugares de comando das grandes, médias e pequenas instituições brasileiras precisam estar pensando o Brasil juntos”, afirmou. Segundo Cida, essa presença de negros, indígenas, quilombolas, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos não pode se resumir a “entregar uma pauta de demandas nossas”. É preciso que essas pessoas participem da tomada de decisões, defendeu.

“Qual é o perfil das lideranças, na saúde e no SUS? Elas têm contemplado a diversidade? Os Conselhos têm presença feminina, negra, indígena, quilombola?”, perguntou. Na visão de Cida, os retratos institucionais ajudam a pensar em planos de ações que tornem as instituições mais equânimes. “Sempre disseram para a gente que os concursos são democráticos, mas eles não são. Se fossem, haveria diversidade nas instituições”, constatou.

Não é apenas uma crítica, mas um movimento concreto por mudanças — e o primeiro passo, de acordo com a psicóloga e ativista, é o exercício de tensionar e estranhar. “Estranhar a imposição de uma religião, de um único grupo a pensar o Brasil”. Para encarar o racismo estrutural, os discursos pela diversidade têm que gerar ações objetivas: “A equidade tem que ser parte da reconstrução democrática”.

Refazer o manto e a história

Glicéria, ou simplesmente Célia Tupinambá: “Descobri que não sou colonizada. Sou resultado do ritual antropofágico”. — Foto: Mateus Serrer.
Glicéria, ou simplesmente Célia Tupinambá: “Descobri que não sou colonizada. Sou resultado do ritual antropofágico”. — Foto: Mateus Serrer.

“Meu relato começa na Bahia”. Assim Glicéria Tupinambá, com um cocar de penas azuis, iniciou a prosa. Nos idos de 1500, um tupinambá — assim como ela — chamado Tamandaré é batizado pela Igreja com o nome de Antonio. Educado nas amarras da catequese, um dia ele decide se rebelar e sai pelo sertão pregando a Terra Sem Males, mundo espiritual da religiosidade tupi em que não haveria fome, nem doenças, nem sofrimento.

Ali nascia uma experiência religiosa de resistência ao colonialismo, que ficou conhecida como Santidade. “Para poder entrar na Terra Sem Males, era preciso passar pelo ‘desbatismo’”, relembrou Glicéria, ou simplesmente Célia Tupinambá, artista, educadora e antropóloga, nascida na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, na Bahia.

“Aquilo que a Igreja Católica fazia, Tupinambá desfazia”, contou, sorrindo. Essa foi a solução encontrada por Tamandaré e seus seguidores para resistir à imposição da religião e da escravidão aos indígenas. O movimento, que ocorreu no sertão de Jaguaripe, na Bahia, foi reprimido pelo governo colonial, em 1585, como narra o historiador Ronaldo Vainfas no livro A Heresia dos Índios (Companhia das Letras).

Para Célia, conhecer essa história foi um reencontro com a identidade do seu povo. “Descobri que não sou colonizada. Sou resultado do ritual antropofágico”, afirmou. A artista indígena iniciou o percurso para reconstruir o manto tupinambá, vestimenta sagrada tecida ricamente com penas de aves e utilizada pelo povo Tupinambá em seus rituais. No mundo, enfatizou Célia, existem apenas 13 exemplares do manto: roubados pelos colonizadores, todos eles estão em posse de museus europeus.

“Antes de ser colônia, essa terra é indígena. Antes de ser cidade, a terra é indígena. Antes de ser capital, somos terra indígena”, sentenciou. “O manto falou comigo”, relembrou, ao narrar o momento em que esteve diante de um dos artefatos sagrados de seus ancestrais, em um museu na França. “Entrei em cosmoagonia”. Foi assim que Célia recebeu o chamado para recuperar com as mais velhas de sua família e a inspiração dos encantados a técnica para refazer o manto, em um processo que levou anos.

E não foi somente a vestimenta sagrada que ela reconstruiu: Célia também reaprendeu a contar a história, livre do olhar dos colonizadores, pela ótica do seu povo. “Nós não trocamos a nossa terra por espelho. Nós lutamos todas as guerras para proteger o território”, declarou.

Ao lembrar as lições de seus ancestrais, Célia defendeu o poder do diálogo e o aprendizado entre os diferentes. “Tupinambá era assim: era justo. O seu inimigo, ele não queria que fosse humilhado”, destacou. Por isso, saberes tradicionais e científicos devem se reconhecer e dialogar, para pensar o futuro da Terra. “Nós temos uma casa comum”.

“A gente pode construir uma universidade que seja democrática e que atenda às necessidades da sociedade e pensada pela sociedade”. Célia também reagiu às críticas conservadoras contra as universidades públicas. “Agora que a gente está entrando nesses espaços, o pessoal fala que a universidade é ruim. Eu falo: ruim com você. Por que agora eu tô chegando vai ser ruim? Vai ser boa para mim também. Vai ser boa para os meus filhos e para os filhos dos meus filhos”, afirmou a mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ.

Ainda que não saiba como será o futuro, Célia — com ares proféticos, como o mito de Tamandaré — disse que sonha com ele. “Que o certo seja certo. E o errado, errado”. Para isso, é preciso refazer o percurso da história, assim como a indígena refez o manto: “Nós já estávamos aqui. Assuma que dói menos. O Brasil é indígena”.

Diálogo de saberes

“Saberes indígenas existem e podem gerir as questões que afetam o seu cotidiano”. Com essa afirmativa, André Baniwa — professor e atualmente diretor do Departamento de Demarcação Territorial do Ministério dos Povos Indígenas — chamou atenção para a necessidade de que as pessoas indígenas participem das decisões que afetam sua vida, e não sejam vistas apenas como “objeto de pesquisa”, até mesmo pelas ciências sociais e humanas da saúde, ainda quando “bem-intencionadas”.

Em diferentes momentos da história, os indígenas tiveram suas línguas estudadas, seus corpos dissecados, seus modos de vida afetados, em nome da ciência. Mas em que medida seus saberes foram considerados formas legítimas de se relacionar com o mundo? Baniwa ressaltou que a Igreja combateu os conhecimentos tradicionais indígenas desde o início da colonização — e esse olhar “colonial” persiste ainda hoje em determinadas políticas de Estado, ele pontuou. “Como se faz o Estado reconhecer isso?”, perguntou.

“O Estado precisa investir no diálogo de saberes”, defendeu o professor nascido em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Segundo Baniwa, os indígenas querem diálogo. “Nós estamos propondo. Queremos diálogo. Quem resiste é o Estado”.

Para ele, é preciso combater o racismo que ainda existe contra os povos originários no Brasil, promover ações afirmativas e garantir que os indígenas também atuem como gestores de políticas públicas — como é o seu caso, atualmente. Baniwa disse ainda que é possível “reflorestar mentes” ao valorizar os conhecimentos tradicionais das aldeias, em diálogo com a formação universitária. “Esse seria o caminho: formar cientistas indígenas”.

Para o professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Rui Harayama, os processos de saúde precisam “dar vazão, protagonismo e voz para as populações que foram historicamente marginalizadas”. “Não é só dar espaço para elas falarem, mas é a forma como elas vão falar e como que a gente vai escutar essas demandas”, pontuou à Radis. Segundo o antropólogo sanitarista, é preciso que essas falas não sejam consideradas como acessórias, mas tenham impacto de fato no modelo e nas concepções de saúde.


“Dar vazão e protagonismo para as populações historicamente marginalizadas”

Rui Harayama, antropólogo sanitarista e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)


Contra a racialização dos corpos

Roda de mulheres na tenda Paulo Freire: é preciso estar atento a todas as formas de repressão.— Foto: Adriano de Lavor.
Roda de mulheres na tenda Paulo Freire: é preciso estar atento a todas as formas de repressão.— Foto: Adriano de Lavor.

Na Tenda Paulo Freire, uma voz suave, acentuada pelo sotaque estrangeiro, é firme na mensagem que adverte sobre a racialização e a desumanização dos corpos. Quem fala é a professora Muna Muhammad Odeh, do departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB). Refugiada de origem palestina, ela falava em uma roda de mulheres sobre a relação que enxerga entre a morte de George Floyd [assassinado por um policial branco nos Estados Unidos, em 2020], os ataques sofridos por civis na Faixa de Gaza e o cotidiano de constante ameaça vivido por moradores de comunidades periféricas, no Brasil.

Para ela, os três casos são exemplos de como “o imperialismo do capital” se afirma em diferentes espaços e perpetua novas formas de colonialidade. “Pensa-se que isso é coisa do passado, mas a saúde é permeada pela colonialidade, justamente porque um de seus instrumentos para se perpetuar é a prática da violência simbólica e da violência corporal”. Muna alertou que o genocídio em curso nos territórios ocupados da Palestina guarda semelhanças com o modo como a colonialidade leva a violência às comunidades pobres no Brasil.

Ela advertiu que o Brasil precisa rever e revogar acordos de aquisição de armamentos de Israel, já que entidades como Anistia Internacional e Human Rights Watch constatam que a indústria bélica “tem se utilizado dos corpos do povo palestino para experimentar essas armas e depois exportá-las como sendo armas comprovadamente eficientes”.  

Além do comércio praticado pela indústria bélica, a professora argumentou que também é preciso estar atento às formas de repressão praticadas lá e aqui. “Angela Davis nos lembra que as técnicas usadas para matar George Floyd são as mesmas utilizada pelo exército israelense contra o povo palestino”.

— Foto: Adriano de Lavor.

Ela acentua a crítica afirmando que estas técnicas são exportadas como “tecnologias de segurança”, mas que na verdade são “tecnologias de repressão dos corpos pobres e dos corpos que estão sob o jugo da colonialidade. Assim é na Palestina e assim é nas comunidades brasileiras”, denunciou. Para ela, é preciso que o campo da saúde revise conceitos e paradigmas, inspirando-se em pensadores decoloniais como Frantz Fanon (1925-1961) — que construiu sua teoria a partir de conhecimentos nativos, na Argélia, quando o país lutava contra o colonialismo francês.

“É preciso ter audácia para dizer que estes paradigmas não pertencem à nossa realidade”, provocou, insistindo que é preciso politizar a discussão, em especial dentro do campo da saúde coletiva que, para Muna, é eminentemente político. “A saúde pública surgiu questionando os poderes”, disse, citando o pioneirismo da teórica Cecília Donnangelo (1940-1983). 

“Precisamos abraçar estes conceitos”, afirmou, revelando seu orgulho de ter abraçado tradições brasileiras, sem esquecer suas raízes palestinas. “Estive agora na Irlanda e falei sobre nossa experiência, no Brasil. As pessoas conhecem muito bem Paulo Freire e ficam admiradas quando ressalto a importância das ciências sociais e humanas na construção desse olhar político sobre saúde”, declarou.

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