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A horta da Alê

Na ocupação Paulo Freire em Belo Horizonte, mais especificamente na rua Selma Bandeira, o som de reggae ecoa por todo o quarteirão. É da horta de Alexandra Assis de onde vem a música: quem chega, percebe também o cheiro de terra molhada e o barulho dos pássaros. A horta que hoje conta com plantação de tomate, alface e cenoura já foi um espaço de bota-fora. Alexandra Assis, de 48 anos e moradora da ocupação, foi a responsável por dar vida a esse lugar durante a pandemia.

“Aqui dentro da comunidade tinha um espaço que ficava jogado. O pessoal estava usando de bota-fora e aquilo estava me incomodando, porque moro bem perto. Foi quando tive a iniciativa de fazer a horta”, relembra. Ela conta que, no início, o espaço estava tomado por lixo — foram retiradas quatro caçambas. “Vendi parte do lixo, como ferro e alumínio, e consegui dinheiro para comprar minhas primeiras mudas”.

A horta não é muito grande em tamanho, mas de aconchego e amor ela é gigante. Alê, como é chamada carinhosamente, sempre plantou e esteve em contato com a terra, mesmo antes de cultivar sua própria plantação. Ela diz que herdou essa prática de sua avó, quando ainda era “o grude da vovó”. 

Ela começou plantando na laje de sua casa e conta que tinha de tudo. A agricultora é formada em Administração e trabalhava, antes da pandemia, em um hospital como cuidadora de idosos, mas optou por sair do trabalho por conta dos riscos da covid-19. Foi nesse período que a agroecologia mudou sua vida.

“Quando comecei na horta, estava muito deprimida. Estava entrando naqueles remedinhos para isso e para aquilo. Eu mexia com minhas plantas aqui em casa, mas faltava alguma coisa. E a horta veio e preencheu, sabe?”, relata Alexandra. Com pouco tempo de horta, o médico suspendeu os meus remédios, ela conta. “Hoje eu digo que não sei fazer outra coisa, é o lugar que me faz bem. A agroecologia foi um divisor de águas na minha vida”.

Hoje a horta promove mutirões, em que pessoas de outros locais vêm ajudar e trabalhar naquele espaço. No entanto, quando foi idealizada, o objetivo era trabalhar com as mães solo da comunidade, mas Alê diz que não conseguiu a adesão de muitas mulheres do local. A partir disso, ela mergulhou na militância e passou a lutar pela agroecologia como uma causa feminista.

“Agroecologia é sensibilidade, é sentimento. Sem feminismo, não há agroecologia. A maioria das hortas que eu acompanho são cultivadas por mulheres: são mulheres maduras que estão ali lutando com sede de justiça para aprender e levar adiante o cultivo. Muitas têm consciência da alimentação saudável e trazem vários testemunhos de que a vida melhorou quando foram para a horta”, ressalta.

Alê participa de feiras aos sábados e vende plantas ornamentais e medicinais na rua. Foi com o curso Trilhas da Agroecologia, oferecido pelo Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Mercado da Lagoinha (Cresan), que ela se apaixonou pela agroecologia e entendeu o seu impacto na sociedade — e na vida das mulheres. O Cresan é um equipamento da Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Susan), financiado pela Prefeitura de Belo Horizonte.

“Durante a semana, o que aprendia no curso eu aplicava na horta”, conta. E ela não encerrou os estudos por aí: procurou se especializar mais, com cursos sobre Agricultura Orgânica e Agente em Agroecologia, e hoje também atua oferecendo oficinas no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de sua comunidade. Também integra a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Amor pela terra

Alexandra não foi a única que deu os primeiros passos no curso Trilhas da Agroecologia em Belo Horizonte. Marcilene Dias, amiga de Alê, procurou a capacitação para se especializar em algo que ela ama: cuidar da terra.

“Eu sou uma produtora na minha casa: produzo naquelas caixas de isopor para meu consumo próprio. Sempre produzi sem agrotóxico”, conta à Radis. Seu sonho é ter a própria horta em seu bairro, porém ainda não conseguiu encontrar um cantinho ideal. Por isso, começou a ajudar na horta da Alê. “Eu me apaixonei de primeira, porque o terreno dela é maravilhoso. A horta dela dentro da ocupação é tudo aquilo que eu gosto e que eu defendo”, afirma Marcilene.

Ela conheceu a horta na Ocupação Paulo Freire ao participar dos mutirões. “A gente ama o que faz: tirar o alimento da terra sem agrotóxico, sem veneno. Isso é muito satisfatório. Hoje eu estava comendo minha alface, plantada com as minhas mãos”, ressalta. Moradora de um bairro a 15 minutos de distância, ela diz que, quando faz feiras aos sábados, consegue tirar os lucros para subsidiar parte da passagem. Porém, segundo ela, tudo vale a pena. “A gente tem que matar um leão por dia”.

Cozinheira por aptidão, Marcilene transforma o que é plantado na horta de Alê em diversos produtos, como conservas e geleias — tudo o que seja possível vender nas feiras e ajudar o grupo financeiramente. Afinal, ela diz, não é fácil obter lucros e conviver com a concorrência desleal de grandes mercados. 

Viver da agroecologia ainda é um sonho, que para Marcilene só seria possível quando ela se aposentasse. Ela tem duas filhas que precisam de ajuda e apoio financeiro, e o dinheiro que ganha com a terra não é capaz de suprir. Na sua opinião, alguém que se mantém apenas trabalhando com a terra, precisa ter um terreno grande, com muita produção. Ainda assim, ela diz que planta por amor.

Marcilene conta que, no dia a dia, observa como as próprias plantas cooperam entre si — “uma dá força para a outra”. “A gente tem muita flor, porque a flor atrai borboleta e a borboleta não vai na planta. Se a gente planta morango, plantamos junto com orégano, para que a praga não chegue até o morango. Na agroecologia, as plantas se protegem”, diz.

Segundo ela, a agroecologia ajuda a observar o desequilíbrio do meio ambiente causado pelo ser humano. “Na floresta, ninguém precisa botar veneno para combater nada. A floresta nos ensina que as próprias plantas que caem viram cobertura de solo e adubo. Precisamos apenas ‘copiar’ a mãe natureza”, pontua.

Para Marcilene, as mulheres têm um papel fundamental na dinâmica de preservação. “A mulher tem esse lugar de olhar, de cuidar, de proteger. Por isso que sem feminismo não há agroecologia, porque a mulher tem um olhar refinado para o dia a dia”, completa.

Tradição familiar

Cultivar a terra e respeitar a floresta é tradição na família de Maria Ivete Bastos dos Santos, moradora de uma comunidade tradicional chamada Dourado, em Santarém, no Pará. Ela conta que, na roça, faz todos os tipos de trabalhos manuais, como sua mãe e avó faziam. O forte de sua família é a fruticultura, plantando laranja, manga, limão, ata [conhecida também como pinha] e pupunha. Em seu terreno, de cerca 8 hectares, ela cria galinha, produz farinha de mandioca e cultiva para subsistência.

A comunidade ribeirinha de Dourado tem cerca de 50 famílias agricultoras, mas existem outras comunidades próximas com mais de 100 famílias, plantando para se alimentar. A maioria dos homens na região são pescadores. Já as mulheres cuidam da plantação e da terra — e vivenciam a agroecologia como prática cotidiana.

“Alguns pensam que agroecologia é somente não utilizar veneno e agrotóxico. É muito mais que isso. É a vivência, a harmonia, a convivência com a comunidade, com as comadres, as crianças e os animais. É olhar para esses recursos e ver que são muito importantes para a nossa vida”, reflete. “Eu só sou feliz quando pego na terra e sinto o cheiro da floresta. Eu me sinto gente.”

Ivete luta todos os dias para manter sua comunidade e seus ideais vivos. Atualmente, ela é presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Santarém, no oeste do Pará. Já presidiu o sindicato entre 2002 e 2008 e integrou a Câmara de Vereadores. Durante 10 anos, viveu sob proteção de escolta policial, após ser ameaçada por grandes agropecuaristas que ela denunciava, mas nunca desistiu.

Segundo ela, as lutas são diversas, em defesa dos territórios, dos povos, da Amazônia e da mulher. “A gente sempre carregou a bandeira de luta pelos direitos, pela reforma agrária, saúde e educação. A gente tem lutado para que as políticas públicas cheguem aos territórios”, afirma.

Barraca de Ivete Bastos no 12° Congresso de Agroecologia no RJ, com a venda de produtos das agricultoras de Santarém no Pará. — Foto: Divulgação.
Barraca de Ivete Bastos no 12° Congresso de Agroecologia no RJ, com a venda de produtos das agricultoras de Santarém no Pará. — Foto: Divulgação.

Cadernetas Agroecológicas

As cadernetas agroecológicas são um instrumento de organização e resistência feminina, utilizadas pelas mulheres agricultoras para anotar dados do dia a dia da produção. Elas se baseiam em uma metodologia de monitoramento da renda das mulheres camponesas e permitem que registrem produção, consumo, venda, troca e doação. Por meio dessa caderneta, é visualizado o valor gerado pela agricultura familiar produzida pelas mulheres, mesmo que no final nem sempre se converta em dinheiro físico. 

Além disso, as cadernetas ajudam a reafirmar o protagonismo das mulheres na segurança alimentar e reconhecê-las como agentes econômicos. Foram criadas, em 2011, pela ong Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Matta (CTA-ZM) junto com as agricultoras do Movimento de Mulheres da Zona da Mata e Leste de Minas (MMZML). Hoje são utilizadas em todo o Brasil não só como um caderno de anotação, mas como uma ferramenta de aprendizagem. Acesse: https://ctazm.org.br/bibliotecas/cartilha-cadernetas-agroecologicas-267.pdf.

Alexandra faz parte de um grupo de extensão voltado para a agricultura urbana na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que desenvolve o projeto “Perto das Mulheres, Perto da Terra”,  que auxilia as agricultoras de Belo Horizonte com as cadernetas. “Tem sido de grande valia, porque a gente leva não somente a pesquisa, mas aprendizados e orientações”, comenta.

Por meio do trabalho para divulgar as cadernetas, ela conta que já encontrou mulheres que sofriam abuso psicológico dentro de casa e não sabiam que esse era um tipo de violência. “Fazemos encontros de três em três meses. A gente junta todas as mulheres e passa o dia com elas: verificamos os cálculos, as anotações, a quantidade que cada uma produziu, ganhou e perdeu”, explica. Segundo Alê, elas ficam felizes e, algumas vezes, surpresas ao constatarem a quantidade de dinheiro que ganharam com os cultivos — algumas delas percebem que estão ganhando mais que os companheiros.

Marcilene é uma das agricultoras que utilizam as cadernetas em seu dia a dia. Para ela, a iniciativa ajuda as mulheres a terem uma visão melhor sobre o negócio e a produção. São registros que, segundo ela, “criam memória”. “Na correria do dia a dia, a memória se perde. Quando anotamos, a gente sabe o que fez no ano passado. Fica registrado”, avalia.

Já Ivete conheceu o caderno de anotação por meio da organização Fase Amazônia, que desenvolveu a iniciativa para as mulheres de sua região terem noção do consumo, do que se trocava, do que se vendia e quanto rendia. 

“Foi muito educativo para nós e hoje também utilizamos. É uma caderneta que no dia a dia a gente sabe o que nós trouxemos, o que nós vendemos, o que sobrou, quanto rendeu. Há assim uma estimativa que nos ajuda no cadastro das políticas públicas ou quando vamos fazer o CAF [Cadastro Nacional da Agricultura Familiar]. A gente tem esses dados bem elaborados”, resume.

Alexandra, Marcilene e Ivete participaram do 12o Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), em novembro, no Rio de Janeiro. Confira a cobertura completa de Radis sobre o encontro em nosso site.

As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: A terra é feminina
  • 30 de março de 2024

    Agradeço muito por ter sido contemplada a participar desse mega evento, uma semana de trocas e ótimo enriquecimento para nós mulheres que fazem a diferença em todo mundo.. Agradeço.@fiocruz
    @ruca
    E todos que contribuíram para o meu desenvolvimento

    Responder

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