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Uma nuvem tóxica se espalhou pela comunidade quilombola de Jejum na tarde do dia 23 de março de 2021, em Poconé, município pantaneiro a 100 km de Cuiabá. Vizinhos a uma plantação de soja, os moradores começaram a reclamar de coceira nos olhos, náusea e dores de cabeça e garganta. Máquinas iniciavam a colheita do grão, lançando no ar uma camada densa de pó misturada ao dessecante, produto químico aplicado, dias antes, para acelerar a secagem da soja. A tempestade de poeira invadiu as casas, recobriu o solo e contaminou caixas d’água, poços artesianos e as hortas dos quintais.

Com sintomas de intoxicação aguda por agrotóxico, as famílias atingidas precisaram deixar suas casas para não continuarem expostas ao veneno disperso no ar. No dia seguinte, acionaram a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), no Mato Grosso, e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que fizeram uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT). A pulverização ao lado da comunidade de Jejum havia ocorrido a poucos metros de distância, em desacordo com a norma estadual que determina que a aplicação de agrotóxicos deve respeitar a distância mínima de 90 metros de casas, fontes de águas e estradas.

“Quem está pulverizando sabe que tem gente morando ali, sabe que tem famílias que serão expostas”, afirma Franciléia Paula, engenheira agrônoma e educadora da FASE-MT. O episódio revela o racismo ambiental que anda junto com os impactos dos agrotóxicos sobre comunidades rurais, na visão de Fran, como é conhecida a quilombola que também integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e é vice-presidenta da Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Mesmo que não utilizem veneno em suas plantações, quilombolas, indígenas e pequenos agricultores são os mais afetados pelo avanço do agronegócio em áreas próximas a seus territórios.

Ela conta que as denúncias feitas pelas comunidades quilombolas de Mato Grosso “foram totalmente invisibilizadas pelo poder público”. “Era como se a vida dessas comunidades pouco importasse”, aponta, ao ressaltar que não bastava a evidência de intoxicação das famílias. “Esse episódio mostrou como o poder público se colocou omisso e a importância do Ministério Público para dar o apoio à nossa segurança, porque estávamos denunciando produtores de soja, o que não é fácil de se fazer em um país que assassina as pessoas que lutam por seus direitos”, pontua. Com a denúncia, um inquérito civil foi aberto e o Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea) autuou o fazendeiro responsável, mas ainda não houve reparação para as vítimas, que incluem crianças, adultos e idosos.

O episódio ocorrido na comunidade de Jejum, em Mato Grosso, é um dos 30 casos de populações atingidas por agrotóxicos reunidos no dossiê Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos no Brasil, divulgado em setembro de 2022 pela organização Terra de Direitos e pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos. Cursos de água, moradias e plantações são contaminados pelo veneno disperso no ar — e mesmo com os impactos no ambiente e na saúde, trabalhadores rurais e populações indígenas e quilombolas sofrem com ameaças e encontram dificuldade para denunciar e barrar esse tipo de agressão, como revela o relatório.

Dos 30 casos analisados, apenas três tiveram reparação parcial para as vítimas; os outros 27 seguem sem qualquer tipo de resposta a quem teve sua vida e seu território atingidos. As violações coletivas mais recorrentes, aponta o dossiê, são provocadas pela pulverização aérea, seguida de pulverização terrestre, exposição em ambiente de trabalho e despejo inadequado. “Na imensa maioria dos casos de violações coletivas causadas por agrotóxicos, não há a responsabilização dos agentes violadores e a reparação das vítimas”, afirma à Radis uma das autoras do estudo, Naiara Bittencourt, advogada popular na Terra de Direitos e integrante do Grupo de Trabalho (GT) em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

A exposição forçada a agrotóxicos é uma das faces do agronegócio baseado no desmatamento e na agressão à saúde de comunidades inteiras que vivem em uma relação de equilíbrio com a terra. “Em 2022, também se silenciam as vítimas ou os inocentes violados em seus corpos e territórios pelo uso de agrotóxicos, especialmente comunidades camponesas, de agricultores familiares, tradicionais e povos indígenas”, afirma o dossiê. Invisibilizadas pelo poder público, Radis mostra como essas comunidades buscam alternativas para sobreviver ao avanço do veneno e para construir outro modelo de agricultura.

Pantanal intoxicado

Na Baixada Pantaneira, as comunidades quilombolas sobrevivem do cultivo de hortaliças e do beneficiamento da banana, sem uso de agrotóxico. “Mesmo antes de saber o que era agroecologia, os nossos ancestrais já faziam essa prática”, explica Laura Ferreira, coordenadora estadual da Conaq Mato Grosso e moradora do quilombo Ribeirão da Mutuca, em Nossa Senhora do Livramento (MT). Porém, o avanço de grandes plantações, principalmente de soja, trouxe uma realidade de perda de áreas verdes, escassez de água e convivência forçada com as nuvens de veneno. “Além de danos biológicos, a pulverização de agrotóxico tem causado danos humanos, que afetam o nosso bem viver”, diz.

Mesmo que essas comunidades rurais não façam uso de veneno em suas plantações, resíduos desses produtos estão presentes nos córregos, rios, poços artesianos e até na água da chuva, como indica o estudo Agrotóxicos no Pantanal: Contaminação da água e impactos na saúde e ambiente em Mato Grosso, publicado em julho de 2022. A pesquisa foi desenvolvida pela FASE-MT em parceria com o Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). “Nos últimos anos, a gente tem visto o avanço da fronteira da soja e o agrotóxico tem desencadeado vários processos de adoecimento, não só o adoecimento pela contaminação direta, mas por não conseguirmos manter os nossos modos de vida e as práticas de convivência com a natureza”, resume Fran, uma das coordenadoras da pesquisa.

Nas comunidades de Jejum e Chumbo, em Poconé, onde vivem cerca de 450 famílias, as amostras de água coletadas indicaram a presença de oito tipos de agrotóxico — até na chuva foi identificada a presença de três ingredientes ativos. As águas do Rio Bugres, em Mirassol D’Oeste, que abastecem o assentamento Roseli Nunes, continham a presença de sete agrotóxicos — as mais de 300 famílias que vivem no local utilizam a água para consumo e na produção de alimentos livres de veneno, o que significa que esse tipo de contaminação também traz perdas econômicas. Já no município de Cáceres, as águas do córrego Periquito, dos poços e da cachoeira do Facão — um ponto turístico da região — estavam contaminadas com a presença de dois aditivos químicos. Ao todo, nos três municípios, a pesquisa constatou a presença de 10 agrotóxicos diferentes, cinco deles banidos em países da União Europeia, na Austrália e no Canadá por apresentarem risco à saúde e ao ambiente.

Foto: Reprodução.

“Pulverizar veneno e contaminar uma fonte de água de uma comunidade quilombola não impacta somente a saúde, mas a própria relação que ela tem com aquele bem comum que é a água.”

Franciléia Paula

“Há um impacto direto nos próprios modos de vida das comunidades”, avalia Fran. Como são famílias rurais que vivem do cultivo agroecológico, a própria sobrevivência dessas populações está em risco. “Algumas comunidades são pulverizadas de forma intencional, para justamente forçar a saída de seus territórios, o que facilita para o setor do agronegócio comprar suas terras e expandir suas áreas”, completa. A convivência forçada com o veneno traz perdas financeiras e emocionais, segundo ela. “É um ciclo em que o agrotóxico é só uma ferramenta desse modelo de adoecimento dos nossos territórios”.

A terra, a água, as plantas, o ar são considerados sagrados para essas populações. “Pulverizar veneno e contaminar uma fonte de água de uma comunidade quilombola não impacta somente a saúde, mas a própria relação que ela tem com aquele bem comum que é a água”, ressalta Franciléia. As perdas econômicas também são sentidas, tanto pela escassez de água em pleno Pantanal — cenário intensificado com a expansão do desmatamento, das queimadas e dos monocultivos — quanto pela inviabilidade em manter roças agroecológicas em um entorno cercado pelo veneno. Para a educadora da FASE, o argumento de que o setor agrícola não sobrevive sem agrotóxico desconsidera os impactos econômicos na produção das comunidades rurais. “Os sistemas agrícolas tradicionais, mantidos nas comunidades através dos anos, e as práticas agroecológicas têm um valor imensurável para quem é agricultor, quilombola ou indígena, porque tem a ver com a ancestralidade e a identidade daquele povo”, ressalta.



Guerra química

Área reconhecida pelo cultivo de arroz orgânico, o Assentamento Santa Rita de Cássia II, na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, foi atingido pela deriva de agrotóxico decorrente da pulverização aérea em fazendas vizinhas, em novembro de 2020. Realizada em dias de vento e sem cumprir as normas técnicas para uso e aplicação, a dispersão irregular do “coquetel” de veneno atingiu produtores convencionais e orgânicos num raio de cerca de 30 quilômetros, como informa o dossiê publicado pela Terra de Direitos e pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos.

Para Naiara Bittencourt, casos como esse de exposição forçada de comunidades inteiras afetam direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais. “Quando há uma contaminação ou intoxicação, pode-se ferir o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao trabalho digno e à moradia”, explica. Segundo a advogada, ocorre também a violação do direito à liberdade econômica, quando agricultores familiares têm a subsistência afetada ao serem impedidos de desenvolver cultivos agroecológicos em razão das pulverizações constantes. “Essas comunidades e povos têm modos de vida próprios, de acordo com sua cultura e tradição. A maioria cultiva alimentos sem agrotóxicos e têm relações profundas com a natureza. Uma contaminação pode minar a própria existência dessas populações”, reflete.

Dos 30 casos de violações analisados no relatório, 21 (70%) foram causados por pulverização aérea. Segundo Naiara, alguns deles são episódios explícitos de aplicação de agrotóxicos como arma química para expulsão territorial, como ocorrido no Pará e no Maranhão. “Aviões passam por cima das comunidades despejando agrotóxicos, intoxicam pessoas e tornam insuportável permanecer naquele território. A utilização de agrotóxicos por aeronaves nessas áreas também decorre de conflitos agrários ou socioambientais latentes”, descreve. Foi o que aconteceu com as comunidades de Carranca e Araçá, em Buriti (MA): cercadas pela soja, elas receberam “banho de veneno” lançado por aviões em abril de 2021, em uma verdadeira guerra química.

Foto: Agência Senado.

Os atingidos por agrotóxicos encontram dificuldade para obter reparação na Justiça e os culpados continuam impunes, constata o relatório. “A maioria dos casos sequer é acompanhada, fiscalizada ou judicializada, pela dificuldade de produção de provas”, completa Naiara. Segundo ela, as vítimas acabam ficando com todo o ônus de realização da denúncia, de pressionar por fiscalização e, inclusive, de provar os danos que sofreram. “Ou seja, as vítimas são penalizadas duas vezes, e não os violadores, que na maior parte dos casos não são sequer responsabilizados”.

Em contextos de conflitos agrários, há ainda o risco de intimidação e violência. “Nestes casos, as vítimas, apesar de terem denunciado, apresentaram receio ou medo de represálias”. No episódio em Buriti, no Maranhão, o responsável pela pulverização foi autuado pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente, com aplicação de multa. “Uma Ação Civil Pública também foi ajuizada, mas ainda não há sentença, apenas uma decisão que determina a proibição de aplicação de agrotóxicos próximo à área e o pagamento de atendimento médico às famílias atingidas”, conta Naiara. Porém, há casos que sequer são denunciados ou que revelam a fragilidade dos órgãos públicos. Em Marabá, no Pará, a pulverização aérea sobre o Acampamento Helenira Resende, em 2018, levou à abertura de Inquérito Policial e Inquérito Civil pelo Ministério Público do Meio Ambiente, mas o caso foi arquivado por falta de provas.



Como se costuma dizer no Pantanal, os povos pantaneiros sentem os recados da natureza. O que atualmente é chamado de vigilância popular — prática de monitoramento das condições ambientais e de saúde pela própria população — faz parte do cotidiano das comunidades tradicionais, como destaca Franciléia Paula. “Vigilância popular em saúde é algo que as comunidades sempre fizeram. São os agricultores e as famílias que estão diariamente fazendo esse monitoramento, sentindo as mudanças climáticas, os impactos do uso de agrotóxicos, a perda da biodiversidade e a seca”, afirma.

Se as próprias comunidades não tivessem assumido o protagonismo desta luta contra os agrotóxicos, a maior parte dos casos de exposição forçada ao veneno não seria sequer conhecida. “A pulverização de agrotóxicos causa danos que são irreversíveis para o meio ambiente e para a vida humana”, reconhece a líder quilombola Laura Ferreira. Como explica Fran, a vigilância passa pelo monitoramento a longo prazo dos impactos no território e pela adoção de ações e estratégias para frear e conter o uso desses agentes químicos.

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida criou um canal que reúne as regras de fiscalização e busca facilitar as denúncias por estado (www.contraosagrotoxicos.org/como-denunciar). “O ideal seria a criação de um sistema unificado de denúncias, com protocolos de atendimento e fiscalização bem organizados, evitando que o ônus todo recaia sobre as vítimas”, defende Naiara. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) recomendou, em recente resolução (16/9), que sejam adotados mecanismos de mitigação de danos, como o aumento das distâncias mínimas para pulverização, o alerta às populações atingidas e a realização de consulta prévia a indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

Na visão da educadora da FASE, as populações tradicionais — como quilombolas, indígenas e pequenos agricultores — têm outro papel fundamental: o de fortalecer suas práticas agrícolas ancestrais, baseadas em princípios agroecológicos. E ela faz questão de destacar: “A vigilância popular em saúde não se resume em denunciar o que nos violenta, mas é também reconhecer o que promove saúde”.


Violações contra direitos humanos

  • 30 casos analisados
  • Apenas 13 foram levados à Justiça
  • Em apenas 3 houve algum tipo de reparação parcial
  • Nos outros 27 casos não houve qualquer reparação
  • 21 envolveram pulverização aérea sobre populações rurais

Fonte: Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos (2022)



Veneno na mesa

Do início do governo Bolsonaro até setembro de 2022, 1.961 novos agrotóxicos foram liberados no Brasil, de acordo com levantamento da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, com dados consolidados a partir do Diário Oficial da União. Desse total, 30% são proibidos em países da União Europeia pelos riscos à saúde e ao meio ambiente e 20% são considerados de extremamente tóxicos a medianamente tóxicos, ainda segundo dados da campanha. O número é maior do que a soma de todos os produtos liberados em uma década, de 2005 a 2015.

“O que vemos é um despejo aqui de produtos que já foram banidos em outros países, inclusive onde são fabricados, por serem considerados perigosos para a saúde humana”, declara Juliana Acosta, enfermeira, mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e integrante da campanha. Segundo ela, a pressão da indústria nos órgãos reguladores sempre existiu, “mas a correlação de forças agora parece estar ainda mais a favor dos interesses do setor regulado, que argumenta que a fila [para registro] é muito grande no Brasil e que produtos mais modernos precisam entrar no mercado”.

Agricultura mais moderna exige a liberação de mais pesticidas? Na visão de Juliana, o lobby ruralista no Legislativo esconde o fato de que esses produtos podem ser perigosos para a saúde, tanto pela intoxicação aguda quanto pelos efeitos a longo prazo. “Estamos falando da presença de substâncias tóxicas além do limite permitido para a cultura de alimentos que consumimos diariamente, como o arroz, o feijão, o tomate, a laranja”, explica. A consequência silenciosa é mais veneno na mesa dos brasileiros e brasileiras. “O que o mercado quer é aumentar seus lucros sempre, custe o que custar, mas o Estado não pode ser conivente com isso”.

Entre os 14 alimentos de origem vegetal mais comuns na dieta da população brasileira, como abacaxi, arroz, alface, alho, cenoura, laranja, tomate e uva, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA) identificou resíduos de agrotóxicos em 51% das amostras analisadas entre 2017 e 2018, segundo relatório publicado em 2019. O programa, coordenado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em conjunto com órgãos estaduais e municipais, mostrou ainda que um a cada 100 amostras tinha uma concentração capaz de causar intoxicação aguda. Para Juliana, essa é uma pequena parcela desse “coquetel de veneno” que chega às mesas brasileiras todos os dias — ela lembra que apenas um terço dos ingredientes ativos registrados na Anvisa são monitorados no programa.

Foto: Reprodução.


Agrotóxicos no brasil

  • 1.961 novos agrotóxicos registrados no governo bolsonaro
  • 30% proibidos na União Europeia
  • 20% considerados de extremamente tóxicos a medianamente tóxicos

Fonte: Campanha Permanente contra os Agrotóxicos


  • Entre 2010 e 2015 foram registrados 815 agrotóxicos e entre 2016 e 2020 este número mais que dobrou, sendo liberados 2.009 agrotóxicos

Fonte: Dossiê contra o Pacote do Veneno


A fiscalização sobre o uso e a comercialização desses produtos no Brasil é precária, pois conta com estrutura ineficiente nos estados e municípios, aponta a enfermeira integrante da campanha. “Hoje são autorizados no Brasil produtos que o Estado não tem como monitorar, porque não existe laboratório que faça análise de todos eles, e porque não há profissionais suficientes para vigilância e muitas vezes os representantes da indústria de insumos estão mais próximos do produtor do que os agentes públicos”, avalia. Na ausência de fiscalização e informações confiáveis, os consumidores não fazem ideia de quanto veneno é servido na mesa.

E não só nos vegetais: o estudo “Tem Veneno Nesse Pacote”, divulgado pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), apontou a presença de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados derivados de carne e leite, como salsicha, iogurte, empanado de frango e requeijão. A segunda fase do levantamento, publicada em julho de 2022, mostrou que, dos 24 ultraprocessados de origem animal de marcas famosas analisadas, 14 continham algum resíduo de veneno. Juliana lembra que são alimentos que estão na lancheira de muitas crianças. “Não tem pra onde correr: comprando tomate na feira ou molho de tomate no supermercado, se não for agroecológico ou orgânico, vai comer veneno”, constata.

“Os agrotóxicos podem estar presentes tanto em alimentos in natura como em produtos alimentícios processados e ultraprocessados, uma vez que não existe nenhuma técnica capaz de remover 100% dos resíduos de agrotóxicos em alimentos, incluindo os de origem animal”, explica Aline Gurgel, pesquisadora do Laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco) e vice-coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz. Ela pontua que a presença de agrotóxicos já foi identificada no Brasil em sucos, polpas, massas, salgadinhos, biscoitos, pães, ovos, leite, carnes e outros alimentos. “Apesar do perigo que o consumo de agrotóxicos representa para a saúde da população, não existe nenhuma lei que obrigue a indicação de que aquele produto foi produzido com o uso de agrotóxicos, negando à população o direito à informação”, relata.

Para se contrapor à tendência cada vez maior de liberação dos agrotóxicos no Brasil e alertar sobre os efeitos desses produtos na saúde e no ambiente, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida surgiu em 2011 como uma iniciativa pioneira da sociedade civil, reunindo movimentos sociais de produtores rurais, organizações sindicais, estudantes, pesquisadores e diversos outros setores. A campanha tem se mobilizado contra projetos que pretendem flexibilizar a legislação sobre o tema no Brasil — como o Projeto de Lei (PL) 1.459 de 2022, conhecido como Pacote do Veneno. “Se até hoje o Pacote do Veneno não foi aprovado no Congresso foi porque a campanha e várias outras organizações da sociedade civil promoveram uma mobilização que dificulta essa afronta à vida”, afirma Juliana.

“Mais recentemente estamos articulando uma frente jurídica para apoiar os casos de comunidades atingidas por agrotóxicos e que enfrentam muita dificuldade para formalizar uma denúncia e serem indenizadas por seus danos”, acrescenta. Mesmo que não tenha superado a realidade que coloca o Brasil entre os países que mais expõem a sua população a esses produtos, a campanha tem “disputado narrativa”, na visão de Juliana, e resistido “para que o agronegócio e seus representantes no Executivo e no Legislativo não se tornem onipotentes e impunes”. Também tem apontado a agroecologia “como caminho saudável e sustentável para viver e produzir”.


Foto: Bárbara Cruz/Greenpeace.

Veneno no pacote

Depois de tramitar por 20 anos no Congresso Brasileiro, o Projeto de Lei (PL) 6.299 de 2002, conhecido como Pacote do Veneno, foi aprovado na Câmara dos Deputados em 09 de fevereiro de 2022 — e seguiu para tramitação no Senado, agora convertido no PL 1.459 de 2022. Na embalagem do “pacote”, está a proposta de atualizar a lei 7.802 de 1989, a principal legislação sobre agrotóxicos no Brasil; porém, no conteúdo, o real propósito: flexibilizar o controle sobre esses produtos nocivos à saúde no país. “A aprovação do PL 6.299/02 representa um enorme retrocesso para a sociedade como um todo, pois institucionaliza medidas que representam graves danos ao ambiente e à saúde humana”, avalia Aline Gurgel.

Entre seus principais pontos, o projeto permite o registro de produtos mais tóxicos, como aqueles que causam câncer e podem levar a problemas reprodutivos e malformações congênitas, retira a atuação dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente sobre a regulação dos agrotóxicos e confere ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) maior poder de decisão sobre esses produtos. Na avaliação de Aline, projetos como esse que diminuem a atuação do Estado, inclusive sobre produtos perigosos, e reduzem as medidas de proteção ambiental encontraram as condições políticas adequadas para serem aprovados. “Uma sociedade séria e verdadeiramente preocupada com seus cidadãos jamais permitiria que decisões políticas pautadas por interesses econômicos guiados pelo lobby da indústria de agrotóxicos se sobrepusessem à defesa da vida”, aponta.

“Haverá impacto sobre os diferentes ecossistemas, pois a intensificação do uso de agrotóxicos fomentado pela flexibilização do registro pode levar à redução ou mesmo eliminação de espécies benéficas, como polinizadores, a exemplo das abelhas”, afirma a pesquisadora da Fiocruz Pernambuco. Além da perda de biodiversidade, a facilitação do uso desses produtos também terá impactos sobre a saúde humana. “Alguns dos agravos associados à exposição a agrotóxicos, documentados na literatura científica, são malformações em crianças, mutagênese, cânceres, desregulação hormonal e outros, além de intoxicações agudas”, destaca.

Foto: arquivo pessoal.

“A vigilância popular em saúde não se resume em denunciar o que nos violenta, mas é também reconhecer o que promove saúde.”

Franciléia Paula

Enquanto a legislação atual, de 1989, proíbe o registro de produtos com características “teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas”, o chamado Pacote do Veneno estabelece que somente seriam proibidos agrotóxicos com riscos considerados “inaceitáveis”. “Hoje a legislação brasileira vigente, acertadamente, proíbe o registro de um agrotóxico na primeira etapa da avaliação de risco, que é a identificação do perigo”, explica. A legislação atual se baseia no princípio da precaução, como ressalta a pesquisadora, em que produtos perigosos para a saúde e o meio ambiente são controlados ou proibidos diante de “riscos potenciais” — em outras palavras, não há risco aceitável quando se trata de veneno. “Quantos casos de câncer ou de malformações em bebês são considerados aceitáveis?”, questiona Aline.

Se aprovado no Senado, o PL do Veneno pode levar a “danos irreparáveis aos processos de registro, monitoramento e controle de riscos e dos perigos dos agrotóxicos no Brasil, com graves danos à saúde humana e ao ambiente”, afirmou nota da Fiocruz aos senadores da República (14/2). “Na prática poderemos consumir ou ser afetados por agrotóxicos mais perigosos”, complementa Naiara Bittencourt.

De acordo com Aline, a modificação da lei vigente não representa “modernização” ou “desburocratização”, principal argumento dos porta-vozes do setor agrícola. Ela lembra que, no Brasil, “as pessoas se expõem a uma mistura de substâncias, e não a um agente isoladamente” — e não há estudo capaz de definir com precisão os efeitos para a saúde e para o ambiente decorrentes dessas interações. “Nesses casos, medidas de precaução precisam ser adotadas, evitando a exposição frente às incertezas”, diz.

Outra preocupação é com os trabalhadores rurais que lidam diariamente com esses produtos e estão sujeitos a casos de intoxicação aguda ou a efeitos a longo prazo. “Os trabalhadores constituem um grupo particularmente vulnerável, por estarem expostos rotineiramente, ainda que a baixas doses”, pontua Aline. Segundo a pesquisadora, condições precárias de trabalho se somam à dificuldade de acesso à informação e à carência de assistência técnica e de fiscalização trabalhista, além de um contexto de perda de direitos. “O risco de exposição dos trabalhadores não é eliminado pelo simples uso de equipamentos de proteção individual (EPI). Diversos estudos indicam a baixa eficiência dos EPIs”, completa.


Foto: Reprodução.

Antídoto ao veneno

No Quilombo Ribeirão da Mutuca, em Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso, cerca de 140 famílias sobrevivem da agricultura familiar quilombola: “Plantamos de tudo um pouco, mas o forte é a banana”, conta a agricultora Laura Ferreira. Na colheita e no plantio, um costume partilhado pelas comunidades quilombolas do Pantanal é a prática do muxirum — palavra de origem indígena com significado semelhante a “mutirão”, em que o cultivo da terra é feito de forma coletiva, por todas as famílias. “A terra não é só números. Não visamos somente o ganho econômico, como fazem os ruralistas. Nós visamos a manutenção dos nossos saberes, nossos modos de vida e nossas vivências”, orgulha-se Laura.

Mesmo com áreas reduzidas pelo avanço da soja, as comunidades rurais pantaneiras lutam para manter a relação de equilíbrio com a terra. Porém, é possível produzir em larga escala sem agrotóxicos? “Não é verdade que sem agrotóxicos o Brasil vai parar. Na realidade o que não se sustenta sem agrotóxicos é o agronegócio e seu modo de produzir com monocultivos e sementes modificadas geneticamente que demandam cada vez mais fertilizantes e venenos”, avalia Juliana Acosta. Segundo a enfermeira, o Brasil precisa se inspirar em suas experiências agroecológicas bem-sucedidas. “A produção recorde de arroz orgânico no Sul do país ficou bem conhecida e, além desta experiência incrível, pequenos produtores batalham pela preservação das sementes crioulas e pela produção e comercialização de alimentos sem aditivos químicos”.

Para Aline Gurgel, existe um modelo de produção pautado na exploração do ambiente e da mão de obra dos trabalhadores, que é predatório e responsável pela destruição de biomas — e que está diretamente ligado às mudanças climáticas e a emergências em saúde pública. “O agronegócio que se sustenta nesse formato tem encontrado nos últimos anos no Brasil a conjuntura ideal para a expansão de seus interesses”, reforça. Mas essa não é a única forma de produzir. Paralelo ao Pacote do Veneno, Aline lembra que existe o PL 6.670/2016, que cria a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara), voltada para a diminuição do uso desses produtos e para a promoção de um sistema alimentar mais justo e sustentável — esse projeto é defendido pelos pesquisadores que assinam o Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida, coordenado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Campanha Permanente e a ABA. “A Pnara trata do projeto de país que queremos: com mais veneno ou voltado à proteção da vida?”, ressalta a pesquisadora.

E é preciso vencer tabus, a começar pelo principal deles quando o assunto é agro: “O agronegócio não é responsável pela produção dos alimentos que chegam à nossa mesa”, afirma Juliana, ao destacar que é a agricultura familiar que cumpre essa função, como indicam dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “A agroecologia é o caminho para o combate à fome e a produção de alimentos saudáveis para a população, e para isso, precisamos de acesso à terra, políticas públicas com financiamento adequado para pesquisa, assistência técnica e comercialização de alimentos saudáveis”, defende.

São saberes e modos de cultivar a terra que atravessaram gerações, em comunidades tradicionais, as mesmas que são as principais afetadas pela exposição forçada ao veneno. Para a quilombola e educadora da FASE, Fran Paula, o modelo do agronegócio “não é nosso, não é um modelo das comunidades”. “É um modelo dos setores agrícola e químico, que chega oprimindo, violentando e cooptando”. Segundo ela, há total desconsideração pelos sistemas agrícolas tradicionais mantidos por essas populações, que fazem cultivo sem aditivos químicos e em equilíbrio com o ambiente há séculos. Por conta do racismo ambiental, esses modos de cultivar e de viver não são reconhecidos como economicamente viáveis, na avaliação de Fran.

Uma conquista que tem sido buscada pelas comunidades pantaneiras no Mato Grosso, com apoio da FASE, é o reconhecimento de seu modo de produzir como um Sistema Importante de Produção Agrícola Mundial (Sipam), título concedido pela FAO. “A FAO tem um programa em que reconhece sistemas agrícolas que são resilientes e que demonstraram, ao longo do tempo, serem sustentáveis ambientalmente e economicamente”, explica Fran. Tal reconhecimento pode significar mais proteção e incentivos e demonstram que o humano e a terra podem conviver em equilíbrio. “A gente fala que são sistemas engenhosos de agricultura, pois dependem da ação humana para continuarem a ser produtivos”. São experiências que mostram que o agro não é somente “pop” — como vende o anúncio veiculado na TV Globo — nem tóxico: o agro também pode ser vida e saúde.

SAIBA MAIS

Agrotóxicos e Violações de Direitos Humanos no Brasil:
https://bit.ly/3tjLmb2

Agrotóxicos no Pantanal:
https://bit.ly/3EkTzSF

Dossiê contra o Pacote do Veneno e pela Vida:
https://bit.ly/3tlfiU0
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