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Era o último dia do ano. A bolinha no peito esquerdo, que parecia não estar ali antes, chamou a atenção de Carol. Alguns quadrinhos à frente, a leitora vai descobrir, juntamente com a protagonista, que o carocinho aparentemente inofensivo se tratava na verdade de um câncer em estágio inicial, mas agressivo. Saberá que Carol é casada com Otto, mãe de duas meninas e tem 36 anos.  E que em breve ela vai comemorar as bodas dos pais; tem um velho amigo de nome Gabe e uma rede de amigas com quem troca mensagens diárias; adora doces e banho de mar; e é dona de um humor afiado e inteligente.

Assinada pela psicóloga e pesquisadora Dulce Ferraz, a graphic novel 180° — Minhas reviravoltas com o câncer de mama é impactante. A autora inspirou-se em sua própria experiência com a doença para narrar em forma de quadrinhos a história de Carol, uma jovem cuja vida serpenteia até ficar de cabeça para baixo, como se pode ver na ilustração da capa do livro ou na metáfora do título. Para isso, Dulce contou com o auxílio luxuoso do traço de Camilla Siren e com a interlocução das pesquisadoras Fabiene Gama e Soraya Fleischer. “Precisávamos construir uma narrativa envolvente, que conquistasse o leitor”, diz a escritora em entrevista à Radis. “Não podia ser uma mera descrição do adoecimento e por isso o elemento literário era importante”. 

Nesta história em quadrinhos, tal qual uma amiga íntima da personagem, a leitora é conduzida por uma jornada que inclui idas a médicos e expectativas por diagnósticos, laudos indecifráveis, siglas confusas, zigue-zagues por corredores de hospitais, muitas variações de humor de alguém cuja vida “passa a girar ao redor dos peitos” — como desabafa a personagem a certa altura — e uma infinidade de emoções que ora cabem nos balões, ora explodem na página em tons de azul, roxo e róseo. 

Em determinado momento, você vai mergulhar nos pensamentos de Carol e nas dúvidas sobre que tratamento seguir. Noutra página, sentirá vontade de interagir com os diálogos que dão conta do difícil equilíbrio entre diminuir o risco de recidivas e proteger a qualidade de vida. Vai ainda sorrir com as tiradas espirituosas e as soluções para dilemas cotidianos da protagonista. E pode se demorar horas na eloquência da imagem de uma noite insone. 

Vida e arte

Assim como Carol, Dulce Ferraz tinha 36 anos quando foi diagnosticada com um câncer de mama, em 2017. Como pesquisadora em saúde pública, é analista em gestão em saúde da Fiocruz Brasília e tem mais de uma década de estudos no campo da aids. Mas o que fazer com todas as informações científicas ao se deparar com o seu próprio diagnóstico e ser atravessada por uma experiência de adoecimento? — perguntava-se. Conhecia o bastante para admitir que não apenas os profissionais de saúde detêm o saber sobre as doenças. “Quem vive com elas tem muita sabedoria prática sobre o assunto”, escreveria em um bloco de notas que ganhou de uma amiga à época, em cuja capa estava gravado: “Caderno de Perguntas”. Foi ali que registrou os apontamentos que fez durante todo o processo de diagnóstico, escolhas terapêuticas e tratamentos e que depois utilizaria para narrar a sua história.

Por outro lado, Dulce dispunha de ferramentas técnicas e teóricas que a ajudaram a lidar com situações cotidianas enquanto esteve doente ou em tratamento. Fosse durante as negociações com o médico ou na hora de procurar uma informação num buscador científico, fosse no momento de seguir o fluxo hospitalar ou ainda no modo como interpretar o que lhe estava sendo dito por profissionais, ela costumava se valer de sua trajetória de pesquisadora. Decidiu unir as duas pontas desse processo. Por meio da plasticidade gráfica e da linguagem ao mesmo tempo sóbria e visceral, a narrativa de 180 graus propõe uma conversa sobre o câncer de mama para além dos saberes biomédicos e que valoriza a experiência, as redes de cuidado e ainda a construção de políticas públicas.

Se os quadrinhos foram a forma escolhida para narrar — justamente porque parecia favorecer a empatia e a abordagem das dimensões sociais e subjetivas do adoecimento —, a autoetnografia acabou sendo o método. “Não se trata de uma autobiografia”, trata de explicar a autora. Dulce não viveu todas as cenas do livro, diz, parafraseando a escritora Sheila Heti, mas todas as batalhas que narra nele. “Não é só a minha história que está sendo contada. Tem elementos da minha história, mas também de outras mulheres com quem cruzei no caminho”. Além disso, a partir da autoetnografia, era possível costurar elementos de uma história pessoal e intransferível com informações científicas numa dupla perspectiva — “da mulher que foi afetada pela doença e que, ao mesmo tempo, dispõe de certas ferramentas técnicas e teóricas para interpretar essa experiência”, escreveria mais tarde.

Em entrevista à Radis, a pesquisadora, que está morando temporariamente na França, onde cursa pós-doutorado, explica que 180 graus é baseado em suas memórias e notas, mas também numa extensa pesquisa bibliográfica. Em sua forma final, o livro vem dividido em três capítulos em tirinhas — cada um deles diz respeito a uma etapa da trajetória da personagem na relação com a doença. Além desses, a publicação traz textos complementares. Num trecho redigido a oito mãos em forma de diálogo, as quatro mulheres envolvidas no processo de realização da HQ descrevem todo o caminho percorrido desde a ideia inicial e a premiação em um edital da Fiocruz Brasília com apoio do CNPq até a publicação pela Nau Editora. 

Embora a leitora preferencial de 180 graus sejam mulheres que tenham sido afetadas pelo câncer de mama, trata-se de um livro que pode ser lido e aproveitado por diferentes públicos, como imaginam Dulce Ferraz e suas parceiras de publicação. Profissionais de saúde, gestores, cuidadoras, docentes, estudantes têm em mãos uma fonte de consulta em linguagem acessível. Na última sessão, uma espécie de guia orienta para a utilização em diversas frentes que vão da pesquisa aos serviços. Depois de ler o livro, é possível dizer que qualquer um que tenha convivido com pessoas que receberam o diagnóstico de alguma doença grave certamente irá se identificar com as situações descritas na narrativa.

Medicina gráfica

HQ não é só coisa de criança. Nem sempre de super-herói. Também conhecidos como “a nona arte”, os quadrinhos vêm há muito tempo borrando fronteiras e gêneros do discurso. Há autores que se tornaram célebres ao tratar de temas assustadores em tirinhas: Art Spiegelman venceu o Prêmio Pulitzer de Jornalismo em 1992 com Maus, a história de um sobrevivente do Holocausto; Joe Sacco tem se tornado uma referência ao desenhar para o mundo os conflitos entre israelenses e palestinos em obras como Palestina: uma nação ocupada e Na faixa de Gaza. 

No Brasil, as graphic novels ou romances gráficos, como são conhecidas as HQs mais longas que incluem obras de ficção, não ficção e antologias, também extrapolam caixinhas. Recentemente, algumas reportagens em quadrinhos têm merecido destaque pela excelência narrativa. O Prêmio Vladimir Herzog de 2022 na categoria arte foi vencido pela reportagem Três Mulheres da Craco, assinada pela quadrinista e ilustradora Carol Ito e publicada na revista Piauí, sobre três frequentadoras da Cracolândia. A Agência Pública também aposta no jornalismo com esse formato. Foi o caso da reportagem Meninas em Jogo que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes num especial todo concebido em HQ. 

Na área da medicina, os quadrinhos ganharam inclusive um campo próprio intitulado Medicina Gráfica que utiliza recursos como ilustração, infografia e HQ como ferramentas de comunicação em saúde. Embora no Brasil ainda existam poucos livros traduzidos, já é possível ler preciosidades como Pílulas azuis, de Frederik Peeters (Radis 204). As produções nessa área, explica Dulce, são frequentemente narrativas autobiográficas de memórias de doenças ou traumas que alguns autores chamam de “patografias”, mas também podem narrar a perspectiva dos profissionais de saúde nas suas rotinas de cuidado. A pedido da reportagem, a autora de 180 graus sugere algumas HQs de referência no campo da Medicina Gráfica (leia quadro clicando aqui).

Uma das características dessas graphic novels sobre saúde é a linguagem que trafega entre o tom incisivo e comovente, sem perder a graça das expressões cotidianas e de um certo humor sutil, o que dá leveza mesmo quando se trata de temas mais densos e delicados. “Acho que a linguagem dos quadrinhos favorece que a gente crie situações que acabam sendo engraçadas”, sugere Dulce. “Porque quando estamos lidando com uma doença, também passamos por momentos engraçados, outros surpreendentes”.

Em 180 graus, nenhuma circunstância foi propositadamente criada para fazer rir, ela conta. “Mas a gente não se privou de colocar episódios que poderiam ser cômicos. A gente não teve medo de dar risada”. Para Dulce, diferentemente de uma cartilha educativa, cujo propósito é fornecer informações científicas ou meramente didáticas, no caso de uma graphic novel a presença de elementos literários é fundamental. Nos quadrinhos, como na vida real, há um cotidiano que acontece para além do câncer de mama.

A cada ano, estima-se que 60 mil mulheres recebam o diagnóstico de câncer de mama no Brasil. Somente em 2023, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o país deverá ter 74 mil novos casos da doença. Para Dulce Ferraz, é muito importante poder contar histórias de câncer de mama que ajudem a transformar um imaginário que ainda associa a doença à morte. “A gente sabe que essa pode ser uma doença grave e fatal”, acrescenta. “Mas eu espero ter contado a história de uma maneira que a gente consiga expressar o máximo respeito, inclusive pelos casos mais graves, que também aparecem nas páginas do livro”. 

Outro cuidado tomado pela autora foi para não parecer que essa é uma batalha individual, como se costuma ouvir. “Existe uma dimensão individual do que está sendo narrado, mas a gente não queria contar sobre a vitória de uma pessoa que superou o câncer de mama”. Para a autora, essa é uma narrativa muito comum, mas ao mesmo tempo agressiva. “Afinal há pessoas que não sobrevivem a um câncer. E eu não quero de maneira nenhuma insinuar que quem não sobreviveu a um câncer, perdeu”, observa, acrescentando que há muitos tipos de câncer. “Há casos que têm tratamento, há casos que não têm. Existe ainda a dimensão do acesso e muitos outros fatores que vão determinar qual é a trajetória de uma pessoa com câncer”. 

“Macarrão para um batalhão”

Em meio ao corre-corre do lançamento do livro, que contou com debates em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília durante o Outubro Rosa, mês de conscientização sobre a prevenção e o diagnóstico do câncer de mama, Dulce recebeu uma mensagem enviada por uma mulher, amiga e leitora. O conteúdo dizia mais ou menos assim: “Eu espero nunca passar por um câncer, mas se passar, desejo poder contar com uma rede que cuide de mim e seja capaz de fazer macarrão para um batalhão”. Ela se referia a uma das cenas de 180 graus, quando uma amiga da protagonista se oferece para cuidar das filhas de Carol no dia de uma consulta difícil com um mastologista. Para o bom entendedor, essa imagem basta. 

Ao final do livro, a história que lemos é também e principalmente sobre como construir redes de cuidado, apoio e afetos, muitos afetos. São redes que acontecem em diferentes níveis e em camadas, por vezes, sobrepostas, pontua a autora. “Acontecem no nível mais próximo, aquele que corresponde à família, e depois se prolonga para os círculos de amigos, cuidados imediatos, profissionais de saúde, ampliando-se por fim com as políticas públicas que permitem que os tratamentos existam e que sejam acessíveis no tempo necessário”, enumera. Dulce considera que são muitas as camadas dessas redes de cuidado — “absolutamente necessárias para uma pessoa que passa pelo câncer”.

Depois de ter vivido e narrado a experiência com um câncer de mama, Dulce diz que fica uma grande consciência da nossa vulnerabilidade enquanto seres humanos. “A qualquer momento, podemos ter uma guinada provocada por um adoecimento e pelas rupturas que ele deixa em nossas vidas”. Mas fica também, ela acrescenta, muita vontade de continuar fazendo o que puder pela saúde pública, seja como pesquisadora, professora ou cidadã. “Fica ainda uma constatação muito clara de que precisamos de um sistema de saúde que cuide de nós e que a gente cuide dele”. 180° – Minhas reviravoltas com o câncer de mama é uma declaração de amor à vida e ao SUS.

O livro está disponível de forma gratuita em formato e-book e pode ser adquirido em sua versão impressa no site da editora.

Serviço

180° – Minhas reviravoltas com o câncer de mama – De Dulce Ferraz, com ilustrações de Camilla Siren e colaboração de Fabiene Gama e Soraya Fleischer. Editora: NAU Editora.

https://bit.ly/3h31meTPara baixar o e-book (gratuito): https://bit.ly/3h31meT 

Para comprar a versão impressa: https://naueditora.com.br/


Dicas da autora

A convite de Radis, Dulce Ferraz selecionou quatro HQs que tratam de temas de saúde: duas delas publicadas no Brasil e duas ainda sem tradução para o português, mas importantes para o campo da Medicina Gráfica. A autora de 180° — Minhas reviravoltas com o câncer de mama também escreveu o livro infanto-juvenil Mamãe, quando você vai sarar?, ilustrado por Clau Paranhos e publicado pela Metanoia Editora.

Mamãe está com câncer, de Brian Fies, publicado no Brasil em 2020 pela Editora Dark Side Books. Belíssima HQ criada pelo quadrinista estadunidense Brian Fies, que a publicou inicialmente como tirinhas independentes, enquanto acompanhava o tratamento de câncer de sua mãe.

Pílulas Azuis, de Frederik Peeters, publicado no Brasil pela Nemo Editora. HQ autobiográfica em que Peeters, quadrinista suíço, conta sua história de amor com uma mulher que vive com HIV e seu filho de 5 anos [Ver resenha publicada na edição de Radis 204, em setembro de 2019).

The Bad Doctor, de Ian Williams, publicada em 2014 pela Myriad Editions. Sobre a rotina e os dilemas enfrentados por um médico no cotidiano do seu trabalho. Williams, médico e quadrinista, é um dos fundadores do campo da Medicina Gráfica. [Infelizmente, sem tradução para o português].Lissa – a story about medical promise, friendship and revolution, escrita por Sherine Hamdy e Coleman Nye e ilustrada por Sarula Bao e Caroline Brewer, publicada em 2017 pela University of Toronto Press. Baseada nas pesquisas de duas antropólogas, esta HQ conta a história de duas amigas que estão enfrentando dilemas de saúde, uma em relação ao câncer de mama e outra a um transplante. A história se passa entre Estados Unidos e Egito, em plena primavera árabe. Lissa inaugurou a ethnoGRAPHIC, uma linha editorial da University of Toronto Press dedicada à publicação de estudos etnográficos em forma de quadrinhos. [Ainda sem tradução para o português]

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