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Quando decidiu pesquisar medicamentos para a covid-19, o infectologista Marcus Vinícius de Lacerda jamais poderia imaginar que se tornaria alvo de ofensas e ameaças de morte. Em março de 2020, quando a ciência era desafiada a acelerar a busca por vacinas e fármacos, o nome de um remédio ganhou repercussão no mundo todo, não exatamente por sua eficácia comprovada contra o novo coronavírus, mas por ser recomendado pelo presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil: a cloroquina ou hidroxicloroquina, medicação usada há décadas no tratamento de malária. O enredo começou quando um pequeno estudo francês, não revisado por pares, indicou que 20 pacientes haviam sido curados do coronavírus pelo uso de cloroquina — fato suficiente para que o remédio fosse considerado uma espécie de “cura milagrosa” para a covid-19 e abrisse caminho para medidas contrárias à ciência.

Com mais de duas décadas de experiência em pesquisas com doenças infeccionais, Marcus sabia que, mais do que nunca, era a hora de dar respostas por meio da ciência. A rede de pesquisadores que coordena em Manaus — referência internacional nas chamadas doenças tropicais — logo foi acionada e montou um estudo pioneiro no Brasil sobre a cloroquina (o Clorocovid), com participação do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazonas), Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), Universidade do Estado do Amazonas (UEAM) e Universidade de São Paulo (USP). Quando os dados preliminares da pesquisa apontaram não apenas a ausência de eficácia, mas alguns riscos no uso da cloroquina no tratamento de covid-19, os pesquisadores de Manaus começaram a enfrentar uma onda de linchamento nas redes sociais, com ameaças e ataques pessoais. “Nunca imaginei na minha vida que alguém ia me acusar de ter matado pessoas só para desmerecer o meu estudo. Nenhum pesquisador está preparado para esse tipo de ameaça”, narra o cientista, especialista em saúde pública da Fiocruz Amazonas.

De um dia para o outro, sua vida virou de ponta-cabeça. O estudo havia ganhado repercussão na imprensa internacional, em meados de abril de 2020, porque chamava atenção para os potenciais riscos do uso de cloroquina em covid-19, principal tratamento defendido pelo então presidente Trump — e por Bolsonaro, no Brasil. Em 17 de abril, o deputado federal Eduardo Bolsonaro publicou, em rede social, o rosto e o nome de alguns dos pesquisadores envolvidos na pesquisa, acusando-os de terem provocado a morte de 11 pessoas e serem “do PT”. “Foi uma avalanche de coisas na nossa vida. Toda aquela onda de ofensas e ameaças em redes sociais foi muito complicada. A gente pensou em parar por algum tempo”, relata, em entrevista à Radis. Marcus passou a andar com escolta armada por conta das ameaças de morte.

A pesquisa liderada por ele foi o primeiro estudo com cloroquina no tratamento de covid-19 aprovado no Brasil, em 20 de março de 2020, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Pretendia checar mais a segurança do que propriamente a eficácia do medicamento em casos do novo coronavírus. Publicada no Journal of the American Medical Association (Jama), uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo, a pesquisa foi fundamental para que a cloroquina parasse de ser prescrita para covid-19 nos Estados Unidos. Contudo, para algumas crenças, nenhuma evidência científica basta. “Só aqui no Brasil que isso virou um debate, a gente foi xingado de ‘comunista’. Esse reconhecimento internacional, por outro lado, acaba demonstrando que a gente está certo. Infelizmente, no Brasil, a gente precisa primeiro ser reconhecido lá fora antes de ser valorizado aqui dentro”, avalia.

Uma série de outros estudos confirmaram o que a pesquisa feita em Manaus já apontava: a cloroquina não era eficaz para o tratamento da covid-19. E mais: poderia levar a efeitos colaterais nos pacientes. Porém, contra as evidências científicas, cerca de 3,2 milhões de comprimidos do medicamento foram produzidos pelos laboratórios do Exército brasileiro em 2020 — quantidade 25 vezes maior que a produção habitual por ano destinada ao combate à malária, cuja eficácia é comprovada pela ciência. “O presidente pessoalmente quis que se usasse cloroquina em ‘tratamento precoce’. E ele obrigou todo mundo a repetir a mesma história”, aponta Marcus. O medicamento passou a ser utilizado no chamado “kit covid”, combinado a outros remédios, como azitromicina, vitaminas e ivermectina — essa última uma conhecida medicação para vermes e piolhos.

Sem qualquer evidência científica, o kit foi batizado de “tratamento precoce” e passou a ser visto como “solução milagrosa” contra a covid-19, receitado por médicos e autoridades e consumido sem qualquer controle pela população. O caso do “tratamento precoce” é um exemplo de como algo recusado ou condenado pela ciência pode ainda assim encontrar adesão em uma parcela da sociedade — mesmo com custos para os cofres públicos e riscos para as pessoas que fazem uso. “O Brasil é um ambiente muito propício para o espalhamento de mentiras e de narrativas anticiência, particularmente porque falta informação qualificada para a população”, considera Luiz Carlos Dias, professor titular do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Popularizado no contexto da pandemia para se referir a medidas que contrariam a ciência, o termo negacionismo também pode ser empregado em outros contextos — que vão das crenças de que a Terra é plana (e não redonda) até posições políticas que questionam o aquecimento global, o Holocausto e a ditadura civil-militar. “O negacionismo deve ser entendido como um movimento organizado que, para fins ideológicos, espalha desinformação sobre um tema consensual no campo científico”, explicou Marcos Napolitano, professor da Universidade de São Paulo (USP), em aula inaugural na Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Fiocruz, em 19 de março [Leia box sobre o negacionismo ao longo da história na página 18]. O episódio da cloroquina é uma evidência de que o chamado negacionismo não é apenas uma simples negação da ciência, mas uma distorção intencional dos dados científicos para provar determinada “verdade”. A questão é: o que leva as pessoas a acreditarem em ilusões desmentidas pela ciência ou a duvidarem dos fatos científicos?

“Kit ilusão”

Experimente entrar em qualquer farmácia. Você provavelmente vai se deparar com uma vitrine repleta de ivermectina, medicamento que passou a ser receitado no tratamento de covid-19 sem comprovação científica. A ivermectina é um conhecido vermífugo — remédio para matar vermes — e ganhou destaque em tempos de pandemia quando um estudo realizado na Austrália, pela Universidade de Melbourne, constatou em análises in vitro que a substância poderia ser efetiva contra o novo coronavírus. Detalhe: em uma dose 17 vezes maior do que a máxima diária permitida, isto é, numa quantidade que seria tóxica para qualquer ser humano. Daí foi um passo para que o medicamento se tornasse a nova “solução” contra a covid.

Incluída no “tratamento precoce”, a ivermectina tem seu uso defendido por médicos em vídeos que circulam nas redes sociais, como Instagram, Facebook e WhatsApp, mesmo que um estudo publicado na revista científica Jama (4/3) comprove que o remédio não tem qualquer efeito contra o coronavírus. Em 23/3, jornais impressos do país — como O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de Minas e Jornal do Commercio, entre outros — publicaram um anúncio pago com um manifesto de médicos favoráveis ao “tratamento precoce”. A publicação foi assinada pela Associação Médicos pela Vida, que tem uma petição online aberta pela não obrigatoriedade das vacinas contra a covid-19 e, em dezembro de 2020, enviou uma carta à Procuradoria-Geral da República com o mesmo pedido.

Para Luiz Carlos Dias, é preciso alertar a população sobre os riscos no uso de remédios sem comprovação científica. “Esses medicamentos que vêm sendo utilizados com o kit covid, como hidroxicloroquina e ivermectina, podem causar problemas à saúde, como arritmia cardíaca. A ivermectina está sendo responsável por hepatites medicamentosas, que podem levar as pessoas a necessitarem de transplantes de fígado”, afirma o pesquisador, que é também membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e integrante da Força-Tarefa da Unicamp no combate à covid-19. Tontura, vertigem, dores abdominais e de cabeça, coceira e queda brusca na pressão sanguínea são alguns dos efeitos colaterais da ivermectina — o que pode se agravar ainda mais com o uso prolongado. Dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 5/4, indicam um aumento de 558% nas notificações de eventos adversos pelo uso de cloroquina desde março de 2020, como noticiou o jornal O Globo (5/4) — ao menos nove mortes foram notificadas.

A luta da ciência para controlar a pandemia de covid-19 precisa dividir fôlego com o enfrentamento da chamada anticiência. Uma das principais vozes do que classifica como “onda de obscurantismo”, a médica pneumologista da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, considera o “tratamento precoce” como um “kit ilusão”. “Não conheço nenhum outro país onde tenha vingado de maneira tão ostensiva e pouco ética o chamado tratamento precoce”, analisou em debate promovido pelo Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 10/3. “Temos pessoas há meses tomando esses remédios e médicos prescrevendo. Tivemos também uma omissão e uma inação de nossos órgãos de classe absolutamente lamentável”, criticou.

Negacionismo oficial

Referência no estudo de malária, HIV e doenças emergentes, Marcus Lacerda teve a sua trajetória de pesquisa atravessada pelo negacionismo. “Dificilmente alguém que passou pelo que a gente passou seguiria fazendo pesquisa clínica”, avalia. Ele conta que conhece diversos pesquisadores que desistiram de pesquisar covid-19 porque o tema se tornou “politizado”. “Qualquer coisa que produzimos de ciência é interpretado por grupos extremistas como se tivéssemos um partido ou não. Isso é terrível em todos os aspectos”, menciona o cientista, que foi presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), entre 2015 e 2017, e coordena desde 2017 o Instituto de Pesquisa Clínica Carlos Borborema, em Manaus.

Marcus critica a adoção do negacionismo como política oficial. “O Brasil acabou sendo o único país que adotou o negacionismo de forma tão frontal”, afirma. Segundo o pesquisador, no caso de medicações sem comprovação científica, as pessoas entendem que “se tem alguém dizendo que funciona, é porque existe dúvida ainda”. “Hoje a leitura do brasileiro mediano é que se tem gente a favor e contra, é porque há dúvida. O que mais revolta é que isso tenha se tornado política pública e não deixado a critério médico”, ressalta. Para ele, foi assim que implantaram as dúvidas sobre as vacinas. “A primeira vez que o brasileiro começou a discutir vacina foi agora, porque plantaram a ideia de que ela poderia não ser segura e eficaz. Quando o brasileiro médio vê que o próprio presidente tem dúvida, é porque deve haver alguma coisa duvidosa”.

Mesmo contra todas as evidências que demonstram a ineficácia e o risco da cloroquina no tratamento do coronavírus, o Ministério da Saúde ainda disponibiliza em seu site uma nota informativa, de junho de 2020, que orienta “o manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico de covid-19”. Em julho, ganhou repercussão a cena do presidente da República mostrando uma caixa de cloroquina para uma ema, no jardim do Palácio da Alvorada. “Um político não pode decidir se uma vacina ou um medicamento é seguro, eficaz ou bom para a população usar. Eles não entendem de ciência”, pontua Luiz Carlos Lima. Para o pesquisador, a decisão sobre a adoção de determinados medicamentos e vacinas não pode se basear jamais em opinião política. “Essa polarização política leva a população a desconfiar dos cientistas, porque ela não sabe se acredita no cientista que está dizendo que o ‘tratamento precoce’ não funciona ou se acredita no presidente que diz que o ‘kit precoce’ funciona e as vacinas não funcionam”, pondera.

Ciência não é opinião

Luiz Carlos Dias tornou-se voz ativa no combate às ‘fake news’ relacionadas ao novo coronavírus. Com um grupo de pesquisadores da Unicamp, ele desmente informações falsas e medidas que contrariam a ciência em vídeos curtos que podem ser compartilhados nas redes sociais. “A ciência é que salva do negacionismo. Ela é o mais próximo que nós podemos estar da verdade. Temos que defender que a ciência dê a resposta e não que questões políticas e ideológicas sejam mais importantes”, afirma à Radis. Segundo o professor do Instituto de Química da Unicamp, as políticas públicas devem se basear em evidências científicas robustas e sólidas. “A população está no meio de um cabo de guerra: parece que temos uma guerra entre ciência e pseudociência”, considera.

Se a ciência avança, a ignorância também persiste, aponta o pesquisador. “Estamos observando um crescimento das chamadas pseudociências que defendem alternativas terapêuticas sem evidências científicas”, constata. Segundo Luiz Carlos, o negacionismo adota estratégias de comunicação que deixam as pessoas desconfiadas e com medo. “Precisamos combater essas notícias falsas, mas é um desafio enorme porque não conseguimos distribuir as informações corretas nas mesmas redes que essas pessoas utilizam. É preciso usar dados científicos para confrontar. Contudo, é certo que esse movimento afronta a ciência e coloca vidas em risco”, avalia.

O negacionismo científico geralmente é usado como instrumento político para maquiar a realidade e confundir as pessoas. “A ciência não tem lado político nem é uma questão de opinião pessoal”, destaca Luiz Carlos. Com técnicas eficazes na manipulação da opinião pública, o negacionismo se serve da própria linguagem científica para combater a ciência. “Eles usam técnicas para convencer: pessoas de jaleco, com uma fala doce e serena, para dar credibilidade às mentiras e às narrativas que criam. Esse movimento anticiência é muito bem organizado”, explica o pesquisador. Uma das estratégias adotadas é se basear nos chamados estudos observacionais. É aquele argumento recorrente em redes sociais: “Fiz uso de ivermectina e me curei da covid-19”. Contudo, não há nada que comprove uma relação de causa e efeito. “Eles se aproveitam daquilo que é a própria resposta imunológica da pessoa. Nenhum desses medicamentos tem capacidade de reduzir carga viral, por exemplo”, descreve. Outro recurso é apelar para o lado emocional e se aproveitar do medo e da insegurança para estimular medidas que contrariem a ciência, como desconfiar das vacinas e não tomar os cuidados de higiene.

Além dos riscos para a saúde, a difusão de informações falsas e anticientíficas sustentam atitudes que podem facilitar a proliferação do vírus, como o descuido com as medidas de proteção e higiene. “As pessoas acabam relaxando nas medidas não farmacológicas, como o uso de máscara, o distanciamento físico, os hábitos de higiene e contribuem para disseminar ainda mais o vírus”, avalia Luiz Carlos. Por isso, segundo ele, os cientistas não podem se omitir e devem combater a desinformação com ciência. “A mediocridade em tempos de pandemia está crescendo e nós precisamos nos unir para construir soluções e inspirar os nossos jovens. Muitas pessoas têm dúvidas sinceras e não sabem em quem acreditar, porque recebem informações nas mídias sociais cheias de técnicas para manipular a opinião pública”, ressalta.

O que explica que mesmo médicos continuem acreditando e receitando medicamentos que a ciência já provou não terem serventia alguma e ainda fazerem mal à saúde? “Falta para os médicos entenderem o que é o método científico. Nós temos que assumir essa falha, não só uma falha de comunicação com a sociedade, mas de educação. Temos que ensinar desde cedo para as crianças, desde a educação básica, o que é o pensar científico”, considera. O conhecimento sobre como funciona um experimento não faz parte do dia a dia das pessoas, até mesmo daqueles que têm formação universitária, como médicos, afirma Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Academia Brasileira de Ciências (ABC). “Muitos dos nossos médicos são formados e vão trabalhar nos seus consultórios, vão fazer as clínicas e não necessariamente tem uma formação em pesquisa científica”, constata.

“Na pandemia, a gente viu que o preço do negacionismo é pago em vidas. Esse preço ficou evidente muito mais rápido, muito mais próximo e com números assustadores”, analisa a professora. Ela explica que o negacionismo científico — que ganhou repercussão no contexto da covid-19 — já existia em relação a outras áreas da ciência, como os questionamentos sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas [leia na página 21]. “O negacionismo sempre existiu. O que a gente vê hoje é um contorno muito mais organizado e financiado. Esse é um aspecto importante e ganha conotação em um ambiente em que a polarização política favorece esse tipo de postura”, pondera.

Mentiras sobre vacinas

“Supostos cientistas alertam que a vacinação em massa criará novas variantes da covid-19”. “Centenas de pessoas morreram depois de tomar a vacina”. “Vacina fez a mortalidade aumentar em Israel”. O movimento antivacina (antivax) — considerado, em 2019, uma das 10 maiores ameaças à saúde global pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — alimenta-se de desinformação e notícias falsas como essas. “Esse movimento precisa ser combatido com muita veemência. Precisamos mostrar para a população brasileira que as vacinas salvam milhões de vidas”, afirma Luiz Carlos. Até então ausente no Brasil, que sempre foi reconhecido pelo sucesso do Programa Nacional de Imunizações (PNI), a postura antivacinação ganhou força durante a pandemia e agravou um cenário de queda na cobertura das principais vacinas adotadas no país.

Em 2019, pela primeira vez na história, nenhuma vacina alcançou a meta mínima de cobertura — que pode ser de 90 ou 95%, dependendo do imunizante. As quedas na imunização já eram observadas desde 2016 e se intensificaram em 2019 e, de maneira acentuada, em 2020. Vacinas para crianças de até 1 ano, como febre amarela, hepatite B e a segunda dose da tríplice viral, alcançaram coberturas de 57,06%, 62,47% e 62,70%, respectivamente, segundo dados do próprio PNI. Se o medo de ir a uma Unidade Básica de Saúde e as dificuldades provocadas pela pandemia agravaram esse cenário em 2020, os números já eram alarmantes em 2019, quando a pentavalente — que previne contra difteria, tétano, coqueluche e outras doenças — alcançou uma cobertura de apenas 70,76%.

Para Luiz Carlos, mentiras e posturas contrárias às vacinas contra covid-19 podem afetar a confiança da população em relação à imunização de um modo geral. “Ser contra a vacinação para a covid pode atrapalhar não só essa vacina, mas a adesão nas campanhas contra outras doenças, como pólio, sarampo e meningite”, alerta. Essa é a mesma avaliação de Carla Domingues, epidemiologista e ex-coordenadora do PNI, para quem será uma tragédia se o Brasil perder o legado de 40 anos de imunização. “Houve uma queda importante nas coberturas vacinais e as doenças não saíram de férias. Se a gente não continuar vacinando a nossa população, principalmente as crianças, poderemos ter dificuldades de leitos, não só para a covid, mas para doenças que já foram controladas no passado”, afirmou, em debate no IOC/Fiocruz, em 10/3.

“As vacinas salvam vidas. Elas são um direito de cada cidadão. Ajudaram a erradicar a varíola, que matou 350 milhões de pessoas no século 20, e a controlar doenças como sarampo, caxumba, catapora, poliomielite, rubéola, meningite, difteria”, destaca Luiz Carlos. Carla e Luiz concordam que o Brasil sempre teve uma cultura de adesão em massa à imunização — mas essa confiança é ameaçada quando autoridades políticas e médicas se posicionam contra as vacinas. “Temos que deixar claro que opiniões pessoais e políticas não são mais importantes que a ciência. E infelizmente esse jogo político que estamos vendo hoje só alimenta o movimento antivacina”, afirma o pesquisador da Unicamp.

Fazer ciência hoje

A maioria dos brasileiros confia na ciência, mas se sente distante dos cientistas e do conhecimento científico. É o que apontam os dados da pesquisa “Percepção pública da ciência e tecnologia no Brasil”, de 2019, coordenada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), com apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). De acordo com a pesquisa, 73% dos brasileiros acham que ciência e tecnologia trazem só benefícios ou mais benefícios que malefícios para a sociedade. Porém, 90% não se lembram ou não sabem apontar um cientista do país e 88% não sabem indicar uma instituição do setor. Também é preocupante o desconhecimento dos brasileiros sobre fatos científicos bastante consolidados: 73% dos respondentes acreditam, por exemplo, que antibióticos matam vírus. Onde estaria o problema?

Dialogar com a sociedade pode ser um caminho para enfrentar a anticiência, na visão de Luiz Carlos. “A população precisa se identificar com os cientistas. Por isso, temos cada vez mais que conversar e mostrar que a ciência salva do obscurantismo”, aposta. Ele ressalta que o momento é de união da comunidade acadêmica para “enfrentar o temporal”, mas para o futuro considera imprescindível a adoção de estratégias que aproximem as universidades e as instituições científicas da sociedade desde a formação básica — como atividades lúdicas nas escolas, projetos em bairros e periferias e iniciativas de divulgação científica.

“Realizar pesquisa nesse país é um desafio enorme, particularmente em universidades públicas. A universidade brasileira nunca foi tão atacada. Temos sofrido vários cortes em atividades de pesquisa e bolsas de estudos para nossos alunos”, ressalta, lembrando que a ciência brasileira é de altíssimo nível em várias áreas. “Precisamos agir para que o Brasil tenha sucesso em bloquear esse criminoso movimento antivacina e essa onda de negacionismo que estamos vendo”, conclui. É como escreveu Marcus Lacerda, em abril de 2020, no momento em que sofria ataques pessoais e ameaças de morte apenas por fazer ciência: “Não destruam nossos sonhos, nem o sonho das crianças que querem um dia pesquisar e produzir boa ciência”.

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