■ Colaborou Lara Souza
O passado e o presente como farol para o futuro. Ao ministrarem suas palestras no primeiro dia da Semana de Abertura do Ano Letivo 2025 da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em 10/3, as pesquisadoras Margareth Dalcolmo e Sônia Fleury abordaram os desdobramentos da pandemia de covid-19, que completou 5 anos em março de 2025, com reflexões sobre o porvir na saúde global e na política internacional. Radis esteve por lá e acompanhou os debates.
Enquanto a pneumologista e membra da Academia Brasileira de Medicina Margareth Dalcolmo fez uma fala mais direta em relação à pandemia, com o tema “Desafios para o futuro da saúde pública”, a doutora em Ciência Política Sônia Fleury tangenciou o assunto na palestra “Ameaças à democracia no contexto de incertezas globais”. Em ambas as apresentações, uma evidência: a covid-19 transformou a humanidade em muitos sentidos e uma nova pandemia é questão de tempo. Estaremos preparados?
Outro ponto de convergência entre as duas participações foi sobre os efeitos da atual conjuntura política internacional na saúde mundial. O avanço de ideologias de ultradireita em governos-chaves pelo planeta amplia o risco de novas emergências sanitárias. Margareth explicita essa preocupação ao lamentar que, com o governo Donald Trump, órgãos antes tidos como referência na vigilância em saúde, como o CDC [Centers for Disease Control and Prevention], estejam perdendo confiabilidade no monitoramento de doenças infecciosas.

Próxima pandemia pode ser de H5N1
A ausência de dados atualizados de maneira adequada representa um perigo global, conforme atenta a pneumologista. “O risco hoje, para nós, é que uma nova epidemia de H5N1 [gripe aviária] possa ocorrer, e ela está nascendo nos Estados Unidos”, afirmou Margareth. “Hoje, com a falta de controle, já tivemos a primeira morte em pessoas”, informou na sequência, ressaltando ainda que infecções já foram identificadas de aves para o gado leiteiro e animais domésticos naquele país. Além das novas ameaças, outro agravante citado por ela foi o crescimento em solo estadunidense de doenças até pouco tempo controladas, como o sarampo.
Para Margareth, esses fatores requerem novos cuidados e providências, ainda que resultem em tensões diplomáticas: “Já é hora de o Brasil começar a pedir certificado de vacina para sarampo aos norte-americanos que vierem ao país”, protestou sob aplausos da plateia, emendando com a informação de que o Brasil não tem um quadro da doença há dois anos. “Não foi fácil recuperar os índices e as taxas de cobertura. Da mesma maneira, sempre nos foi exigido pelos Estados Unidos, com muito rigor, nosso certificado de vacina”, reforçou.
Em uma hora de explanação, a médica destacou ainda a capacidade de atuação do SUS durante a pandemia e o papel de outros atores sociais, como a imprensa brasileira — que, em sua avaliação, na maioria dos casos atuou adequadamente junto à sociedade em meio à onda de desinformação e deslegitimação da ciência e de autoridades sanitárias, fomentadas pelo uso político da pandemia. Além disso, elogiou a contribuição acadêmica do país no período pandêmico: “O Brasil foi o décimo país em publicações sobre a covid-19 no mundo e com trabalhos relevantes”, observou.
A partir de sua própria experiência com a pandemia, quando se tornou uma das especialistas mais ouvidas sobre o tema pela imprensa nacional, Margareth também citou algumas competências que os profissionais de saúde deverão potencializar para além de suas especialidades. Tais como: capacidade de liderança, inteligência emocional, técnicas de comunicação, competência de gestão e conhecimento de políticas públicas, dentre outras habilidades.
Questionada quanto ao futuro, a médica respondeu à reportagem sobre o que pensa com relação ao aprendizado gerado pela pandemia: “Acho que a primeira lição que nós aprendemos é que o Brasil não pode mais ser apanhado tão desprevenido quanto foi para a pandemia da covid-19. Acho que nós aprendemos com o sofrimento e um custo humano muito elevado que a passagem de informação muito consistente e verdadeira para a população é absolutamente fundamental”, concluiu Margareth.
Leia Também: Margareth Dalcolmo: “O risco hoje é que uma epidemia de H5N1 possa ocorrer” (Ensp/Fiocruz) e assista à palestra completa no YouTube.

Marcas em nossa sociedade
Convidada para conduzir a aula inaugural na tarde daquele mesmo dia (10/3), Sônia Fleury ancorou sua apresentação nos riscos impostos à democracia no contexto atual, mas, assim como Margareth, lembrou como governos de extrema-direita podem ameaçar a saúde global, além da democracia em si. Para a sanitarista e cientista política, o rompimento do governo dos Estados Unidos com importantes instâncias e tratados multilaterais — como a retirada do país da OMS e do Acordo de Paris para o clima — colocam o próprio país em uma situação vulnerável e o mundo sob incógnita.
Ela lembrou que tradicionalmente os Estados Unidos têm um conhecimento avançado em áreas como a ciência biológica e a saúde, agora colocados em xeque, com sua postura de isolamento. “Como consequência desse rompimento, imaginem vir uma pandemia agora, com essa desorganização no mundo em relação ao conhecimento e ao controle [de doenças]. São coisas muito sérias que já estão acontecendo”, advertiu, antes de ressaltar que a situação abre uma oportunidade para que países como o Brasil exerçam maior protagonismo e liderança política em temas mundialmente importantes.
Para ela, o avanço desenfreado do capitalismo — sob a forma do “capitalismo canibal”, conceituado pela filósofa Nancy Fraser — gera condições favoráveis ao surgimento de novas pandemias, como indicam as emergências climáticas. “As pandemias devem voltar, todas as pessoas da área dizem que a questão é de tempo, não é se vai ter ou não vai ter, porque há uma agressão à natureza e ao ambiente enorme, que afeta a sociedade de formas diferentes, mas afeta todo o mundo”, discorreu.
Sônia, que também é coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, falou ainda sobre o cenário propício que a covid-19 encontrou em 2020 no Brasil, país que sozinho concentrou 10% das mortes oficiais pelo coronavírus SARS-CoV-2 no mundo. “A pandemia coincide com o pandemônio, que é o governo negacionista, que desrespeita totalmente direitos e as instituições democráticas”. E abordou o impacto social decorrente dela, ainda presente em nossa sociedade após cinco anos:
“Nós sabemos que os reflexos da pandemia estão aí até hoje, as mudanças enormes na estrutura do trabalho, todos esses meninos fazendo entregas, isso tudo foram coisas que surgiram fortemente na pandemia, o trabalho dentro de casa, fora as próprias questões da saúde da população”, avaliou Sônia. “Mas essa individualização, essa concentração nas redes sociais [na internet], tudo isso foi muito potencializado por um período muito duro que ainda estamos vivendo”, completou.
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