Passados cinco anos da primeira infecção pela covid no Brasil, o país atingiu em fevereiro de 2025 a marca de 714 mil mortos pelo vírus, segundo dados do Ministério da Saúde. Desses, 700 mil ainda nos três primeiros anos — ou seja, a grande maioria por não ter sido vacinada ou ter recebido a vacina tardiamente.
Uma estimativa feita pelo epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em junho de 2021, apontou que cerca de 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas no Brasil, caso a política do governo de então não tivesse atrasado a chegada da vacina e atrapalhado a campanha de vacinação, com a disseminação de notícias falsas, as chamadas “fake news” (Radis 226). Na época, o Brasil contava com 508 mil mortes — o que significa dizer que quatro a cada cinco vidas perdidas poderiam ter sido salvas. [Leia matéria sobre a memória da pandemia clicando aqui]
Em busca de responsabilização e justiça, pelo menos duas grandes associações foram criadas na época: a Vida e Justiça e a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico). Nascidas em 2021, a partir de um clamor social, para assistir e apoiar milhares de pessoas que estavam totalmente sem rumo, ambas se tornaram porta-vozes de famílias vitimadas pelas perdas de seus entes queridos.
Passado todo esse tempo, Radis procurou saber como está essa luta. Houve avanços concretos na ajuda aos familiares e aos órfãos das vítimas, e àqueles que tiveram sequelas da doença, a chamada covid longa? Alguém ainda responde pelo crime de omissão? As autoridades foram responsabilizadas? A memória dos que sofreram está sendo devidamente resguardada?
Em busca dessas respostas, ouvimos Paola Falceta, vice-presidente da Avico, e Rosângela Dornelles, coordenadora geral da Vida e Justiça. A primeira já havia concedido uma entrevista emocionante à repórter Liseane Morosini em 2023 (Radis 249).
Na ocasião, ela contou que a perda da mãe, Dona Itabira, vítima da covid-19, foi sua principal motivação para iniciar a luta por reparação e justiça. Ela testemunhou e sofreu de perto a dura “escolha de Sofia”, em que pela falta de recursos e leitos os médicos tinham que decidir quem viveria e quem seria deixado à própria sorte.. Aos 81 anos, sua mãe foi preterida no acesso a respiradores, kit de intubação e vagas na UTI, caso precisasse, por pessoas mais jovens. Ela veio a falecer no dia 2 de março de 2021, no Hospital Conceição, em Porto Alegre. “Quando fundamos a Avico, estávamos preparados para uma década de luta, isso era nossa expectativa. Sabíamos que seria muito difícil, mas não tinha ideia que em cinco anos a gente iria caminhar tão pouco”, lamenta.
Paola confirma que desde a posse do presidente Lula o canal de diálogo com a associação foi realmente aberto, “mas não avança”, diz. “Conversamos diretamente, mas quase nada anda pra frente. De concreto, não vemos ações para reparar e responsabilizar os envolvidos na pandemia. Milhares de famílias ainda sofrem pela perda de seus entes, sem qualquer tipo de assistência do Estado. As conquistas foram mínimas, ainda que tenhamos atualmente no governo federal uma gestão progressista”.
“Não há qualquer política pública de assistência para os familiares das vítimas da covid-19, nem tampouco uma política de saúde mental.”
Paola Falceta, fundadora e vice-presidente da Avico
Dentre essas poucas vitórias, Paola ressalta a participação na 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), onde atuou como delegada pela Avico. “Todas as nossas diretrizes propostas na Conferência foram acatadas e aprovadas. Mas, na prática, não temos nada. Não há qualquer política pública de assistência para os familiares das vítimas da covid-19, nem tampouco uma política de saúde mental”.
A dirigente da Avico lembra ainda que se discutiu muito o apoio aos órfãos da covid —milhares de crianças e adolescentes que perderam seus pais ou provedores durante a pandemia —, mas que até hoje nenhuma das esferas de governo levou adiante um plano de ajuda econômica para essas pessoas. De acordo com levantamento da Fiocruz, nos dois primeiros anos da pandemia, quase 41 mil crianças e adolescentes perderam suas mães por covid-19 no Brasil.
“Fizemos inúmeras discussões no Legislativo, Executivo e Judiciário. E cadê as diretrizes para os estados? Não temos uma política nacional de apoio aos órfãos da covid, assim como não temos para os sobreviventes, aqueles que amargam as sequelas do vírus”, critica.
Nos dois primeiros anos da pandemia,
quase 41 mil crianças e adolescentes
perderam suas mães por covid-19 no Brasil.

CPI apontou crimes, mas não houve punições
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aprovado em 26 de outubro de 2021 no Senado, recomendou o indiciamento do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, além de outras 79 pessoas por crimes contra a saúde pública durante todo o período da pandemia de covid-19.
O documento sugeriu possíveis dez delitos, entre eles crimes de responsabilidade e contra a humanidade. Foram seis meses de investigação, após requerimento do senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), que juntou dezenas de petições apresentadas por outros parlamentares, partidos políticos e entidades sociais, todas apontando uma série de delitos, desde atrasos injustificados na aquisição de vacinas à acusação de uma estrutura organizada no governo para a disseminação de notícias falsas (fake news).
Apesar da conclusão, não houve avanços nas investigações e muito menos nas responsabilizações dos crimes cometidos. O relatório foi encaminhado à Procuradoria Geral da República (PGR), órgão competente para investigar o presidente e os ministros. “Em termos de justiça, reparação e responsabilização, até agora nada. Nenhuma das denúncias contra a gestão Bolsonaro foi aceita pela PGR na época”, comenta Paola.

Nova denúncia à PGR
Segundo Paola, a Avico move, junto a outras entidades da sociedade civil e o Ministério Público Federal (MPF), um processo contra a União buscando indenização às vítimas da covid-19 e seus familiares. “Essa ação prevê também um fundo para políticas públicas no enfrentamento de possíveis novas crises sanitárias”, afirma.
Paola disse também que, em outubro de 2024, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, a Avico e a Vida e Justiça se juntaram para fazer nova denúncia à PGR. “Como mudou a gestão e houve a troca do procurador [Augusto Aras deixou o cargo em setembro 2023, sendo substituído por Paulo Gonet], esses dois conselhos de controle social e as duas associações das vítimas resolveram apresentar nova denúncia. Solicitamos que a PGR dê continuidade aos trabalhos realizados pelos senadores e investigue se houve negligência e responsabilidade por parte do governo por milhares de mortes evitáveis. Vamos acompanhar de perto o andamento desse processo”, conta.
“Nossa luta é pela responsabilização daqueles que conduziram a política catastrófica na gestão da covid-19.”
Rosângela Dornelles, coordenadora da Vida e Justiça
A médica Rosângela Dornelles, coordenadora geral da Associação Vida e Justiça, disse que a expectativa é de que, com esta iniciativa dos conselhos nacionais, cesse a omissão dos órgãos e controles federais. “Esperamos que o relatório final da CPI da pandemia, que juntou e comprovou inúmeros crimes à época, seja realmente apreciado, tanto pela PGR como pelo STF. Nossa luta é pela responsabilização daqueles que conduziram a política catastrófica na gestão da covid-19”.
Entre as acusações apresentadas nessa nova denúncia à PGR, estão: omissão no fornecimento de vacinas, promoção de tratamentos sem eficácia comprovada e desinformação deliberada sobre a gravidade do vírus. “Tais condutas resultaram em um número maior de mortes e em um colapso do sistema de saúde que poderia ter sido minimizado”, diz a coordenadora da Vida e Justiça.

Corte Internacional de Direitos Humanos
Mesmo com a reapresentação de uma nova denúncia à PGR e com a expectativa de que dessa vez o processo terá um andamento totalmente diferente do anterior, quando o então procurador Augusto Aras arquivou, ainda em 2022, o pedido de investigação — por entender que não havia indícios suficientes sobre as responsabilidades do governo federal no período da pandemia —, as duas principais associações em defesa dos familiares e vítimas da covid 19 articulam encaminhar uma ação à Corte Internacional de Direitos Humanos.
Avico e Vida e Justiça fazem reuniões periódicas com seus departamentos jurídicos e discutem também em conjunto, com outras entidades civis, apresentar um processo fora do território nacional. “Talvez a judicialização internacional seja a única solução. Estamos caminhando para isso. Provavelmente vamos entrar com uma denúncia na Corte Internacional de Direitos Humanos”, diz Paola.
Rosângela ressalta que, enquanto os responsáveis pela trágica gestão da pandemia no Brasil não forem responsabilizados e punidos, e não houver a devida reparação às vítimas e seus familiares, “o Estado democrático de direito não estará plenamente restabelecido”.

Pela memória das vítimas
Se há um consenso de que pouco ou nada se avançou na questão de responsabilização dos agentes protagonistas da tragédia sanitária que resultou na morte de milhares de pessoas durante a pandemia de covid-19, e tampouco na reparação e assistência aos familiares das vítimas do vírus, há algumas iniciativas quando se fala em resguardar a memória daqueles que se foram.
Tanto a dirigente da Avico quanto da Vida e Justiça consideram que nessa linha existem movimentos interessantes acontecendo. “A luta pela memória continua e está mais viva do que nunca. Recentemente, tivemos a promessa do Memorial da Pandemia”, ressalta Paola.
No dia 20 de dezembro de 2024, os ministérios da Saúde e da Cultura assinaram acordo de cooperação para a criação do Memorial Covid-19 — um espaço destinado à memória e reflexão sobre causas, consequências, enfrentamento e superação desse grave acontecimento, na perspectiva de se estabelecer novos parâmetros e protocolos científicos de atuação do Estado brasileiro em situações de risco sanitário similar.
Também em 2024, a Fiocruz lançou concurso nacional para a apresentação de um projeto arquitetônico e paisagístico do futuro memorial que será construído dentro da Fundação. Paulo José Tripoloni, Pablo Mora Paludo, Gabriel Costa Dantas e Fernanda Macedo Haddad tiveram a proposta escolhida, prevendo a criação de uma praça na sede do campus Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Em 10 de dezembro de 2024, Dia Internacional dos Direitos Humanos, Paola participou da inauguração do “Jardim Sentinela”, um memorial físico e virtual da Universidade de Brasília (UnB) em homenagem às vítimas da covid-19. “São iniciativas pontuais, mas também muito importantes”, declara Paola.
Rosângela lembra que o direito à memória é uma das principais bandeiras e missões da Vida e Justiça. “Defendemos o direito à memória, à verdade, à vida e à justiça para as famílias atingidas diretamente pela covid-19, sempre na defesa da necessidade de manter viva a memória dos acontecimentos durante a pandemia e o reconhecimento das suas consequências sociais, econômicas e culturais”, ressalta. Segundo ela, a Vida e Justiça, desde sua fundação, trabalha na produção da memória. “Estivemos, junto ao Ministério da Saúde, na organização do Seminário para Concepção do Memorial, em março de 2024”.
Ambas lembraram o dia 12 de março como a data oficial para homenagear as brasileiras e brasileiros que perderam suas vidas por causa do coronavírus. A criação de um Dia Nacional em Memória das Vítimas da Covid 19, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2023, foi uma das reivindicações e bandeiras das duas associações.
Rosângela enfatiza também a importância do movimento para garantir a participação social nos fóruns pertinentes. Ela destaca que a Vida e Justiça passou a compor a nova gestão do Conselho Nacional de Saúde em dezembro de 2024. “A presença da sociedade civil no CNS é essencial para que o SUS continue a ser um modelo de saúde pública universal, gratuita e de qualidade”, afirma. Segundo ela, as entidades civis desempenham um papel crucial na fiscalização, no monitoramento das políticas de saúde e na garantia de que os direitos dos cidadãos sejam respeitados.
“Com a sua representação, a Associação Vida e Justiça reforça o compromisso com a defesa do SUS e com a luta por uma saúde pública cada vez mais inclusiva e acessível, especialmente para as populações mais vulneráveis. E ainda nos mantemos na Frente pela Vida, que conquistou representação no Conselho de Participação Social do atual governo”, conclui.
Ministros na pandemia

Luiz Henrique Mandetta
Período: de 1º de janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020
Gestão: defensor das medidas de isolamento social e das orientações da OMS. Permaneceu no cargo pouco tempo após o início da pandemia.
Nelson Teich
Período: 16 de abril de 2020 a 15 de maio de 2020
Gestão: Não ficou nem um mês no cargo. Chegou a propor lockdown (confinamento total) para cidades com maior taxa de transmissão do coronavírus. Discordou do ex-presidente Bolsonaro sobre o uso da cloroquina como medicamento para a covid-19.


Eduardo Pazuello
Período: 15 de maio de 2020 a 15 de março de 2021
Gestão: recomendou o uso da cloroquina como protocolo de tratamento para covid-19. Foi acusado de negligenciar a compra de vacinas e de omissão na crise sanitária do Amazonas.
Vítimas: deixou o governo com cerca de 300 mil mortos pelo vírus.
Marcelo Queiroga
Período: 23 de março de 2021 a 31 de dezembro de 2022
Gestão: foi um técnico bolsonarista, como ele mesmo se definiu. Decretou o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) vinculada à covid um ano antes da OMS declarar o fim da pandemia.
Vítimas: sua gestão termina com quase 700 mil mortos pela covid-19

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