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A aventura cotidiana do SUS

Expedição da Fiocruz Rondônia mostra desafios para pesquisa e assistência à saúde na Amazônia

Fotos e vídeos: Adriano De Lavor

Os dois carros da Fiocruz Rondônia partem do Laboratório de Virologia Molecular, em Porto Velho (RO), às 9 horas da manhã de domingo, 23 de junho. O destino da nossa expedição é Lábrea, cidade no sul do estado do Amazonas onde vivem cerca de 47 mil pessoas, de acordo com o Censo 2021. 

Situado entre os rios Madeira e Purus, o município amazonense fica longe da capital, Manaus (800 km), e faz limite com capitais de dois estados: Rio Branco, no Acre, e Porto Velho, em Rondônia. A cidade é conhecida por se situar no ponto exato onde acaba (ou começa) a BR 230, a famosa Transamazônica. O outro extremo da estrada, a cidade paraibana de Cabedelo, fica a 4.260 km dali.

A distância entre Porto Velho e Lábrea, pouco mais de 400 km, é desafiadora: depois de duas horas transitando no asfalto da BR 319 — e de uma breve parada em Humaitá, já no estado do Amazonas — a viagem se estende por, no mínimo, mais cinco horas pela Transamazônica, trecho de estrada de terra que parece sem fim. 

Os desafios logo se apresentam. O primeiro deles é seguir por terra em uma área densa de mata, mesmo em um período sem chuvas. Enxerga-se pouco diante de uma nuvem constante de poeira. A floresta parece não permitir que a rodovia se mostre. Entre as duas cidades, são 13 pontes sobre córregos e igarapés. Em uma delas, sobre o rio Mucuim, é preciso usar uma balsa para atravessar de carro.

No intervalo entre as pontes, as cercas coloridas que adornam propriedades rurais contrastam com a aridez da poeira e dos buracos, tão selvagens quanto a floresta. Quando chove, viram crateras de lama, comenta Carlos Soares, um dos motoristas da equipe, segurando com força o volante para impedir que o carro derrape, mais uma vez.

Devastação no caminho

O segundo desafio imposto é constatar in loco o que mostram pesquisas e reportagens sobre a região. Situado na Amacro (nome que engloba os territórios de Acre, Rondônia e Amazonas), já considerada a nova frente de desmatamento do Brasil, o município de Lábrea foi eleito, em 2022, campeão em derrubada de árvores no país, segundo o Relatório Anual de Desmatamento (RAD), realizado pelo MapBiomas. [Acesse os relatórios do mapbiomas aqui: https://bit.ly/3WdY2hA]

Apesar de o RAD 2023 indicar avanço do desmatamento em direção ao Cerrado, é possível ver muitas cicatrizes da devastação no caminho. Além disso, uma breve busca na internet mostra notícias e artigos que revelam conflitos recentes relacionados à grilagem de terras, ausência de fiscalização e incentivo desenfreado à pecuária e à extração de madeira. Matéria publicada no site Repórter Brasil (24/3) aponta Lábrea como “laboratório do crime, marcado por roubo de terras, desmatamento e ausência do Estado”.

Na estrada, os desníveis de ocupação do espaço são visíveis, parecendo acompanhar a morfologia dos buracos. Plantações a perder de vista, amplos espaços desmatados, alguns ainda com vestígios de fumaça; aqui e acolá, suntuosas residências estruturadas com aparato de comunicação e muitos carros estacionados nas garagens; vez ou outra, modestas casas de madeira e suas pequenas hortas.

No caminho entre Porto Velho e Lábrea (AM), são 13 pontes e muita poeira na Rodovia Transamazônica.


O trânsito intenso de tratores, caminhões, carros, ônibus e motos contrasta com grandes vazios. Números do IBGE registram no Amazonas uma das menores densidades demográficas do país (2,53 habitantes por quilômetro quadrado). Parece terra de ninguém, mas as pessoas estão lá: equilibrando-se em um pé nas motos que param para esperar (literalmente) a poeira baixar para prosseguir viagem, jogando sinuca nos poucos botecos vistos à beira da estrada, banhando-se nos sinuosos igarapés que se oferecem como oásis em um deserto de poeira e distâncias. É domingo, e o calor convida quem está de folga a um bom mergulho.

Mesmo que por longos períodos não seja possível vê-las, sob a nuvem constante de poeira, as pessoas estão lá, enfrentando cotidianamente demorados deslocamentos e distâncias por vezes intransponíveis. As dificuldades não são enfrentadas somente por quem mora, mas também por quem faz pesquisa ou promove saúde neste lado do mapa. Como parece distante este Brasil.

Diagnóstico em plena floresta

Pesquisadores e profissionais do SUS em ação: barco, perrengue, muita dedicação e visuais incríveis

Felizmente ainda é possível presenciar, em alguns breves trechos da rota, a resiliência e a resistência da floresta, imponente diante das tentativas humanas de contê-la. Passa do meio-dia quando os carros margeiam o Parque Nacional do Mapinguari — área em que resiste uma ampla área de vegetação nativa. 

É como se a figura mítica das lendas indígenas que dá nome ao parque conseguisse proteger parte da floresta, às margens da rodovia. Castanheiras e outras árvores frondosas derramam-se pela estrada, cores inúmeras salpicam os diferentes tons de verde, açaízeiros enfileirados criam molduras incríveis para o pôr do sol. O céu de diferentes tonalidades definitivamente parece mais baixo. O calor úmido tempera os sons da vida que não se vê.

Nos dois carros, os breves cochilos de cansaço da equipe se alternam com a conferência do material de pesquisa e com o planejamento da extensa programação a cumprir. Ao todo, são cinco pesquisadores, uma médica e dois jornalistas, além de dois motoristas. Empolgados com a experiência em campo, os pesquisadores Jackson Queiroz e Adrhyan Araújo explicam como o trabalho do grupo une produção de ciência e assistência à saúde.

Biomédico de formação, Jackson é pesquisador no laboratório, onde desenvolveu, em sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Experimental (PGBIOEXP) da Universidade Federal de Rondônia (Unir) em parceria com a Fiocruz Rondônia, o teste molecular para quantificação da carga viral de hepatite delta — o mesmo que tem sido utilizado pela equipe no rastreamento de novos casos. 

Ele diz à Radis que a metodologia “extremamente sensível e reprodutível” possibilita o rastreio da doença em indivíduos que poderiam passar anos sem um diagnóstico — e não terem o devido tratamento — diminuindo assim o número de casos em que a hepatite delta só é identificada em estado mais avançado, com quadro de cirrose ou mesmo de um câncer. [Saiba como funciona o teste de carga viral aqui]

Também biomédico, Adrhyan é mestrando no mesmo programa, onde avalia quais fatores influenciam a evolução de pacientes diagnosticados com hepatite delta. A expertise em virologia e em imunologia genética, segundo ele, pode ajudar a compreender um perfil de suscetibilidade diante do HDV.  

Jackson e Adrhyan são orientados por Deusilene Vieira, pesquisadora-chefe do laboratório e vice-coordenadora de Ensino, Comunicação e Formação da Fiocruz Rondônia. Quando voltamos a ter sinal de internet, ela avisa pelo celular que ao chegar à cidade nos encontraremos no porto, onde um barco já aguarda o material de trabalho que será levado às comunidades ribeirinhas. A ideia é partir rio acima ainda na madrugada seguinte.

Na fronteira entre a rodovia e o Purus

O porto de Lábrea, no Sul do Amazonas, cidade onde acaba a Rodovia Transamazônica

É somente às 4 e meia da tarde que entramos em Lábrea e seguimos ao porto, onde o sinuoso rio Purus emoldura um monumento que marca o fim da Transamazônica. O fim de tarde revela a majestade plácida do rio, que nasce no Peru e serpenteia pela floresta cortando 21 municípios do Acre e do Amazonas até desaguar no Solimões — antes de este se juntar ao Negro e receber o nome de Amazonas. 

A visão de muitas embarcações — pequenas, grandes, de pesca, de passeio ou de serviço médico — mostra o quanto os deslocamentos fluviais são determinantes para o sucesso de qualquer ação de saúde que se planeje na Região Amazônica. Ao lado de uma Unidade Básica de Saúde Fluvial do município de Lábrea — ancorada, mas em funcionamento — está a pequena ambulancha que nos levará à viagem e que é carregada com material de trabalho, combustível, água e mantimentos. 

Quando o carregamento termina, o sol já está a caminho de se pôr, no mesmo ritmo lento em que navega a pequena voadeira que traz uma família à cidade. O tempo do rio não é o tempo do relógio, lembro do que me disse uma vez uma profissional de saúde indígena.O dia termina com uma visita rápida ao Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de Lábrea, onde no dia seguinte, a médica hepatologista Eugênia de Castro e Silva, do ambulatório especializado em hepatites virais do Centro de Pesquisa de Medicina Tropical de Rondônia (Cepem), irá atender moradores da região já diagnosticados com hepatites. [Leia entrevista com ela aqui].

Nove horas contra a corrente

O sol ainda não nasceu e já estamos todos a caminho do rio. A cidade dorme, mas já é possível ouvir a movimentação na região portuária, onde os faróis dos carros da Fiocruz iluminam a descida até o cais. Como é época de seca na Amazônia — e o município de Lábrea é um dos cinco mais afetados pela escassez de chuva no estado — forma-se um barranco muito alto e íngreme entre a cidade e o nível da água. Qualquer deslize é queda na certa!

Coletes distribuídos, equipe completa, o barco parte às 5 horas da manhã de segunda-feira, ainda no escuro, em direção à comunidade de Várzea Grande, que fica “a mais ou menos nove horas de viagem”, como informa o piloto Deca. “Vamos subir contra a correnteza”, diz, olhos concentrados à frente, vez ou outra deslocando um facho de luz para iluminar as curvas do rio que mal se vê.  

No barco que ele conduz, estão a equipe do laboratório de virologia — que além de Deusilene, Jackson e Adrhyan, também conta com a biomédica Ana Maísa Passos da Silva e a universitária Kátia Ingrid da Silva Maia — o jornalista José Gadelha, assessor de comunicação da Fiocruz Rondônia, e uma equipe de saúde do CTA de Lábrea. A gerente Keith Ellen Quintino, a enfermeira Débora Rocha e a técnica de enfermagem Nailucia Santos de Lima seguem com o objetivo de aplicar testes rápidos de HIV, sífilis e hepatites nas comunidades. A tripulação se completa com o apoio do ex-agente comunitário de saúde Raimundo Lopes (ou Jheimisson, como ele prefere), que diz conhecer a região como a palma da mão.

O clarear do dia vai revelando as nuances da floresta, cada curva do Purus refletindo as primeiras luzes da manhã. Pouco a pouco, é possível ver praias alvíssimas e o sol a iluminar discretamente as pequenas e esparsas comunidades, formadas por casas suspensas de madeira, algumas coloridas com as cores dos majestosos ipês amarelos. 

As águas seguem tranquilas, quase sem banzeiro — termo regional que descreve a ondulação do rio — e as horas correm devagar, empurradas lentamente pelo barulho monótono do motor do barco, entrecortado pelo vento que aplaca o calor da floresta tropical. Perto do meio-dia, o tempo vira e o céu desaba em forma de chuva, que algumas curvas depois, desaparece sem deixar quase vestígios. Um jacaré toma sol em uma das praias rio acima, alguém reclama não ter lembrado de levar uma garrafa de café. 

É quase meio-dia quando fazemos uma parada para abastecer o barco e cuidar de uma pequena avaria, rapidamente resolvida. Enquanto isso, a pausa é bem-vinda para que cada um possa “se aliviar” (no barco não há banheiro), esticar as pernas, fazer algumas fotos. No aplicativo de mapas do celular, Jackson olha com frequência o tempo que falta para a chegada. Parece perto, mas as curvas do rio enganam. Há momentos em que dá impressão que não se sai do lugar, tão sinuoso é o trajeto que descreve.

Não há como não pensar no desafio que é se deslocar nesta região do Brasil. Mesmo em uma embarcação nova, é somente às 2 horas da tarde que chegamos à comunidade de Várzea Grande, onde os moradores nos aguardam ansiosos. A chegada não finda os desafios: o maior deles é subir um barranco de cerca de 30 metros, com toda bagagem e equipamento, tentando se equilibrar em troncos de madeira que fazem as vezes de degraus em um solo de barro movediço. Com a chuva recente, o perigo de escorregar é iminente; a destreza dos locais, no entanto, desconcerta quem precisa de apoio para se equilibrar.

Na chegada à comunidade de Várzea Grande, o desafio de escalar barrancos que podem chegar a 30 metros.

O SUS no Brasil profundo

Em Lábrea, um monumento mostra que a cidade fica onde termina a Rodovia Transamazônica. — Foto: Adriano De Lavor.
Em Lábrea, um monumento mostra que a cidade
fica onde termina a Rodovia Transamazônica. — Foto: Adriano De Lavor.

É de imediato que o trabalho começa. São muitas pessoas à espera das equipes, que logo se propuseram a encarar a jornada noite adentro. Eles sabem que no dia seguinte uma longa viagem nos espera. Então, mais uma vez, não há tempo a perder. É hora de ver a pesquisa e a assistência do SUS em ação no Brasil profundo.

A noite que se segue traz consigo mais desafios para as equipes: escuridão, mosquitos, bolor. Nada que impeça o bom humor de quem está acostumado ao ambiente. Piadas acompanham a última refeição do dia, preparada com esmero pela dona da casa que nos hospeda. Chama atenção o capricho com que organiza a coleção de panelas brilhantes em sua cozinha. Nem é tão tarde, mas a hora é de dormir, já que o retorno está previsto para madrugada que se segue.

No dia seguinte, a rotina se repete, sem que os desafios desanimem quem está no barco. Neblina, sono, muitas picadas de mosquito, novamente grandes distâncias. “Desta vez é rio abaixo, a gente ainda chega à Lábrea durante o dia”, aposta Deca, mais uma vez com dificuldade de enxergar o que vem à frente. 

Do lado de fora, a natureza recompensa os navegantes com mais um espetáculo, desta vez o nascer do sol. O barco segue devagar, sob a cerração. O planejamento se ajusta ao tempo que é ditado pela floresta e pelo Purus, que alterna praias alvas e barrancos imensos, como se fossem cicatrizes da seca que já chega à região. 

Navegamos por mais algumas horas até chegar a Acimã — onde os “comunitários” nos recebem de portas abertas e novamente seguimos o curso do rio até chegarmos à Lábrea, já no fim do dia. O corpo se ressente do esforço — muito tempo na mesma posição, o banzeiro que ainda nos acompanhará por algumas horas, as marcas dos insetos tatuadas onde o repelente não foi capaz de proteger. Porém, a mente está quieta. 

Em sua primeira viagem ao campo, Kátia Ingrid, graduanda em Biomedicina e gestora técnica do Laboratório de Virologia Molecular, disse à Radis que considera que a experiência de participar das atividades em comunidades de difícil acesso na Amazônia foi significativa em sua formação profissional. “Participar de ações voltadas para a população carente é uma experiência enriquecedora, não só para minha carreira, mas também para minha vida. Ainda mais no mês de julho, que é dedicado à conscientização das hepatites virais”, declarou. 

A sensação de dever cumprido vem emoldurada pela experiência de quase intimidade com a floresta. Um Brasil profundo, onde as desigualdades não estão somente nas margens. Ali, o que para nós parece aventura é o cotidiano de moradores, profissionais de saúde e pesquisadores. Um cenário de adversidades e de potencialidades que mostra o quanto ainda é preciso avançar para que se possa garantir o acesso ao que o SUS oferece e ao direito pleno à saúde.

As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: A aventura cotidiana do SUS
  • 8 de setembro de 2024

    Parabéns pelo trabalho.

    Responder

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