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No apagar das luzes de 2020, o Ministério da Saúde preparou um grande pacote para revogar quase 100 portarias sobre saúde mental, editadas entre 1991 e 2014, atingindo diversos programas e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). A notícia provocou indignação e rapidamente tomou conta de redes sociais e grupos de WhatsApp do campo da saúde mental e de direitos humanos. Entidades da sociedade civil, conselhos, associações, universidades, fóruns e coletivos de trabalhadores e usuários e a Frente Parlamentar da Reforma Psiquiátrica mobilizaram suas redes e convocaram atos de repúdio em todo o país. Em notas oficiais e abaixo-assinados, houve consenso de que o revogaço, como foi logo chamado, foi a maior ofensiva do governo para desmontar a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), e as políticas de álcool e drogas e para pessoas vulnerabilizadas, como as que vivem em situação de rua, que já vinham sendo fortemente atacadas nos últimos cinco anos. 

A medida avança com voracidade sobre a PNSM [lei 10.216/2001], conhecida como Lei Paulo Delgado, que instituiu um modelo de tratamento humanizado às pessoas com transtornos mentais e promoveu mudanças estruturais na organização dos serviços e nas formas de cuidado e atenção em saúde mental, conquistadas com a Reforma Psiquiátrica. A PNSM busca acabar com instituições fechadas e centradas na doença ao prever o cuidado à saúde mental com serviços abertos, humanizados, comunitários e de base territorial, que garantam a inserção e a livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, pela comunidade e pela cidade, enquanto a proposta do ministério sugere a criação de Ambulatórios Gerais de Psiquiatria e de Unidades Especializadas em Emergências Psiquiátricas. Segundo informações do Conselho Nacional de Saúde (CNS), todas as portarias desta política foram construídas com ampla participação popular, sendo debatidas e aprovadas nas conferências nacionais de saúde mental de 1987, 1992, 2001 e 2010.

As revogações e revisões foram baseadas no documento “Diretrizes para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, apresentado em reunião entre o MS e os conselhos nacionais de Secretários de Saúde estaduais e municipais (Conass e Conasems), em 18/11. Dali saiu um Grupo de Trabalho para estudar as mudanças, que foram apresentadas em reunião, em 3/12, que contou com representantes da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e do Conselho Federal de Medicina (CFM). A informação foi divulgada pela revista Época (6/12) e deu início à mobilização nacional. Leonardo Pinheiro, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), afirmou em entrevista à Radis que a ABP atuou “à sombra” como a grande formuladora de um processo que não contou com qualquer consulta pública. “Na prática, essa proposta vai tirar o dinheiro do SUS e destinar para as clínicas privadas e os hospitais psiquiátricos”, denuncia Leonardo.

“Temos um governo que é contra a Constituição e a lei. Mas a política de saúde mental não é de um governo ou partido. É uma política de Estado dentro do SUS e deve ser respeitada”, observa o presidente da Abrasme. Para ele, a proposta também fere a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção das Pessoas com Deficiência, que tem status constitucional no país. “A Convenção diz que as pessoas não vão ser submetidas a tratamentos desumanos ou degradantes e a proposta traz de volta as estruturas de hospitais psiquiátricos. É o retorno de um tratamento degradante”, sentencia. Ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Leonardo pontua que o tratamento em saúde mental deve ser baseado no cuidado em liberdade. “As internações, inclusive as involuntárias, são dadas em exceção, em meio à crise e dentro de um projeto terapêutico singular. A internação não ocorre a priori como se dá em hospitais psiquiátricos e nas comunidades terapêuticas, defendidas na proposta”, pontua.

Uma planilha do MS mostrou que o “revogaço” afetaria o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS, as equipes de Consultório na Rua, o Serviço Residencial Terapêutico Unidades de Acolhimento e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa, além de revogar portarias que estabelecem procedimentos ambulatoriais e implicam na revisão do financiamento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Além disso, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), destinada a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, também seria atingida pela revisão. Os Caps seriam de responsabilidade da assistência social, e não da saúde, e passariam a fazer apenas reabilitação, deixando o atendimento psiquiátrico para outro serviço, mudando a rotina de atenção que já foi retratada por Radis (Radis 202).

Programas afetados

O documento que propõe o “revogaço” vem sendo reeditado pela ABP, que busca formalizá-lo desmontando uma política pública reconhecida no Brasil e fora dele. A proposta é capitaneada pela ABP e pelo CFM e foi referendada por outras entidades médicas. O documento foi formalmente apresentado em 13/8, dia do Psiquiatra, em um encontro que reuniu Maria Dilma Alves Teodoro, então coordenadora das Políticas de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (SAPS), Antônio Geraldo, presidente da ABP, e secretários nacionais.

Em um vídeo disponível no Canal da Psiquiatria, que mostra o momento como um “marco” na política de saúde mental, Antonio Geraldo passa por cima de toda a construção histórica da luta antimanicomial ao dizer que a proposta é “um sistema privado ofertado para o sistema público”.

Em matéria publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, de 8/12, o presidente da ABP detalha como entende a atenção em saúde mental e reforça a centralidade médica e o papel preponderante do psiquiatra no processo de atenção. “O que você faz no sistema privado? Você pega, liga, marca consulta e vai lá. Por que o sistema público não pode imitar o sistema privado?”, perguntou. Além disso, enfatizou que “ninguém precisa passar um dia dentro de Caps”. “Como é no meu consultório? Alguém passa o dia lá comigo? Não. A pessoa faz uma consulta e vai tocar a vida”, pontuou. Não à toa, em sua introdução, o documento explicita que a política de saúde mental dominante no Brasil “adota como premissa a desvalorização do saber psiquiátrico” e tem colocado “o psiquiatra como um profissional secundário”.

Protestos e repúdio

As redes de saúde mental se mobilizaram e reagiram de imediato em todo o país. As entidades e os movimentos sociais promoveram um encontro (7/12) com a Frente Parlamentar da Reforma Psiquiátrica, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e representantes do Alto Comissariado da ONU no Brasil para apresentar denúncias na agenda de retrocessos. Como resultado, o ministério assumiu o compromisso de ampliar o GT e ouvir as demais categorias nacionais, além de outros atores do controle social. “O SUS se baseia no pacto federativo. Se a coordenação nacional do MS quer fazer mudanças, ela deve ouvir os coordenadores estaduais de saúde mental”, afirma Leonardo.

A pressão externa levou também ao pedido de demissão (8/12) da coordenadora das Políticas de Saúde Mental, Maria Dilma. Em seguida, o governo federal anunciou o investimento emergencial de R$ 99 milhões para ampliar e qualificar o atendimento prestado por 2.661 Caps que funcionam atualmente em 1.790 municípios brasileiros, segundo o ministério. “O valor para os Caps é quase quatro vezes menor que o investido em comunidades terapêuticas, que são privadas, e mostra que o governo quer amenizar a situação. Ele não diz que não está ocorrendo credenciamento de novos Caps. Fica claro que essa é uma disputa pela opinião pública”, critica Leonardo. Ele salienta que não há informações sobre o total de comunidades terapêuticas existentes. “Não há um cadastramento nacional instituído e o número de comunidades terapêuticas credenciadas no Ministério da Cidadania, que participam de editais, é irrisório frente à realidade”, assegura.

Em meio a protestos, a ABP foi questionada em um manifesto assinado por mil psiquiatras, que repudiaram o “revogaço”. Criticando a posição da entidade, os profissionais salientaram que “o modelo proposto, rígido, hierarquizado, psiquiatrizante, opõe-se frontalmente à estruturação territorializada e flexível das redes de atenção psicossocial, assim como à sua busca pela liberdade, autonomia e cidadania das pessoas em sofrimento mental”. Os psiquiatras afirmaram que, “alegando falar em nome da ciência, a ABP o faz de forma tão precária que mal disfarça os interesses corporativos e mercadológicos que a movem”.

Para Paulo Amarante, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fiocruz, existe em curso um processo de desmonte do Estado de direito. “Não vendemos nossos princípios ou negociamos nossas ideias. O que está em jogo não é o modelo de assistência psiquiátrica, não é a luta antimanicomial, é a democracia, são as nossas liberdades, é isso que eles estão querendo destruir em várias áreas. A sociedade vai resistir’, garantiu o psiquiatra na abertura do 7º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, organizado pela Abrasme, entre 9 a 11 de dezembro.

No mesmo evento, a sanitarista Lúcia Souto convocou os participantes para lutar contra a agenda de austeridade que faz com que o Brasil não cumpra os direitos previstos na Constituição de 1988. Lúcia lembrou a luta exemplar da Reforma Psiquiátrica brasileira. “Estamos num contexto de desmonte e de destruição de tudo o que conquistamos do ponto de vista de direitos da sociedade brasileira. O projeto de devastação do ‘revogaço’ é para revogar o SUS”, afirmou. A sanitarista disse que a intenção do governo é transformar tudo em mercadoria e negócio. “Saúde é democracia, democracia é saúde. A luta antimanicomial é uma coluna vertebral do SUS. Não vamos abrir mão dessa conquista. Saúde é um bem pelo qual devemos lutar e não podemos nos submeter aos interesses da ABP e da indústria farmacêutica”, sentenciou.

Já em ato virtual (14/12) promovido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em defesa de uma política de saúde mental baseada no cuidado em liberdade e em uma sociedade sem manicômios, a deputada Érika Kokay, da Frente Parlamentar, reforçou que as comunidades terapêuticas em grande medida perpetuam a lógica manicomial. “O Brasil tinha que superar esse holocausto e os campos de concentração que representavam os hospícios. Nós, trabalhadores e trabalhadoras, e também as pessoas assistidas, construímos uma nova política e conseguimos superá-lo. Temos que criar uma grande resistência para cuidar em liberdade, porque se não há liberdade, não há cuidado, e a liberdade é muito terapêutica”, disse. “Loucura não se prende, loucura não se tortura, nem um passo atrás, manicômio nunca mais”.

Interesses da chamada “indústria da loucura” foram também criticados pela Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, instituída em 7/12, e com representações em todo o país. Em seu manifesto, o coletivo destaca que o retorno da lógica do confinamento e do abandono fere a todos, principalmente aos mais vulnerabilizados. “Como fechar serviços de saúde em plena pandemia? O fato é que se verifica hoje uma total submissão da PNSM aos interesses da iniciativa privada, o que coincide com a presença corporativista da ABP junto ao Ministério da Saúde. A agenda capitaneada pela ABP apenas se sustenta neste cenário necropolítico que ameaça a democracia conquistada pela Constituição de 1988”, aponta o texto do abaixo-assinado do movimento, que tinha quase 60 mil assinaturas em 17/12.

Repercussão no país

O Conselho Nacional de Saúde repudiou (4/12) as pro – postas e reafirmou que os retrocessos são sustentados pela visão do modelo biomédico psiquiátrico centralizador e hospi – talocêntrico. O CNS lembrou ainda que os ataques às políticas acontecem desde sua elaboração, mas foram aprofundados com o “fortalecimento de políticas segregadoras, marcadas pela ascensão das comunidades terapêuticas e edição de nor – mativas e de financiamento público voltados à internação da população em situação de rua e de adolescentes”. O Conselho reafirmou sua posição contrária “às investidas de retrocesso” e “modernização de velhas instituições e práticas que ameacem a dignidade humana, os direitos humanos e o cuidado em liberdade no campo da saúde mental e atenção psicossocial”.

Em nota conjunta, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Rede Unida e a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) repudiaram (9/12) veementemente toda e qualquer tentativa de retrocesso no modelo comunitário de assistência à saúde mental. Segundo as entidades, os signifi – cantes “moderno” e “baseado em evidências científicas”, re – petidos à exaustão na minuta apresentada pelo MS, tornam-se “patéticos” na intenção de convencimento de que essa “nova política” se opõe a uma política anterior que seria arcaica e ideológica. “Quem são os arcaicos e ideológicos que querem fazer o país andar para trás ‘20 anos em dois’?”, questionam.

As associações lembraram, ainda, que o aumento de manifestações de angústia e sintomas de mal-estar psíquico na pandemia de covid-19, inclusive com expressões mais graves e com ideação suicida, não deve ser submetido “a um furor patologizante e medicalizador”. “Essas pessoas precisam de escuta e, algumas, de cuidado especializado. Para tanto, o SUS e a saúde mental precisam, sim, e urgentemente, de mais recursos”, observaram. Um alerta do Conselho Regional de Psicologia do Paraná mostra que, no campo da atenção às pessoas que usam drogas, as alterações propostas pelo Governo Federal consolidam a “guinada à abstinência e ao manicômio”. “Elas aprofundam o estigma de que todo e qual – quer uso de substância psicoativa causa sofrimento psíquico e social, precisa ser medicado e ter tratamento segregado nos hospitais psiquiátricos ou ambulatórios especializados, em detrimento da lógica da autonomia do sujeito em seu uso e, se necessário, do cuidado no território e em liberdade”, diz a entidade em nota.

Também por meio de nota (8/12), o Ministério da Saúde re – bateu as críticas afirmando que “muitas portarias” sobre saúde mental estão “obsoletas”. O órgão também declarou que dis – cute a transferência do programa de Residências Terapêuticas para a pasta da Cidadania, e que “não há sugestão de fecha – mento dos Caps e dos Consultórios de Rua”, embora esses ser – viços constem da planilha apresentada pelo grupo de trabalho do próprio ministério [ver quadro ao lado]. Já a ABP emitiu uma nota em que afirma que as informações são inverídicas e divulgadas de forma irresponsável e defende a importância de Ambulatórios Especializados. A entidade reforçou também que não há sugestão de fechamento dos Caps e dos Consultórios de Rua.

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