Imagine passar pela falta de água para cozinhar, tomar banho, lavar roupas e, principalmente, para beber. Atualmente, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), quase 50% da população mundial sofre com a escassez de água pelo menos uma vez ao ano. A água, recurso fundamental para a sobrevivência da vida na Terra, permeia vários assuntos que devem ser debatidos durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Conferência das Partes), a COP30, a ser realizada em Belém (PA), em novembro de 2025.
E quando se fala em um direito humano, o acesso à água potável também se alinha a discussões sobre saneamento básico e as desigualdades que atingem parte dos brasileiros e de bilhões de pessoas no mundo. Segundo a ONU, cerca de 46% dos habitantes do planeta não possuem serviço de saneamento seguro. Em relação à população brasileira, quase um quarto vive sem condições adequadas de saneamento, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, divulgado no início de 2024 — ou seja, são aproximadamente 49 milhões de brasileiros nesta situação.
Nas páginas de Radis, este tema aparece sempre com um olhar que pensa em como as ações humanas e as políticas públicas podem impactar no futuro. Relembre algumas delas.
É preciso água para ter saúde
As águas foram capas de Radis por três vezes na década de 2010. A primeira delas foi em 2014 com a capa “Água, bem de todos” (Radis 147, dezembro de 2014), que aborda a contradição existente entre a grande disponibilidade dos recursos hídricos no Brasil (com 12% das reservas de água doce no mundo) e o enfrentamento de problemas de distribuição, acesso e saneamento para a população. Na época, eram 40 milhões de brasileiros e brasileiras sem acesso à água potável; este número caiu para 32 milhões atualmente, mas ainda assim uma quantidade gigantesca de pessoas.
Especialistas falaram sobre o mau cuidado com os recursos hídricos, o desperdício por parte da população, os problemas do poder público com os planos de contingenciamento e outras medidas. Também trataram dos problemas da distribuição desigual, dos fatores naturais e eventos climáticos extremos (como secas e enchentes), da devastação e do aquecimento global consequente de ação humana.
A relação entre água e saúde fica evidente com o grande número de casos de doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI). Segundo o pesquisador Paulo Barrocas, do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), “o consumo de água de qualidade protege a saúde, previne doenças e determina a qualidade de vida”. A reportagem de Ana Cláudia Peres mostrou ainda a luta pelo controle da água, debate com tendência a se tornar cada vez mais forte entre os que enxergam esse recurso como um direito humano e diante dos grandes grupos privados que querem transformá-lo em mercadoria para gerar lucro.



Quase três anos depois, com narrativa inspirada livremente na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, a Radis 177 (junho de 2017) trouxe nova reportagem de Ana Cláudia Peres para mostrar o impacto da transposição do Rio São Francisco no Sertão Pernambucano, na divisa com a Paraíba. Apesar da abundância de água, na barragem de Campos, os moradores da região sofriam com a falta de acesso e as obras da transposição e, ao mesmo tempo, viam o crescimento do interesse do agronegócio e de grandes indústrias na localidade.
A história de Sr. Lídio, na época com 74 anos, que viu o pedaço de terra onde nasceu ser dividido ao meio pelas obras, mostra o desamparo dessa população: “Aqui a gente tinha paz, tinha terra pra criar os bichos e tinha seca, que eu não vou mentir. Mas também tinha a nossa água de poço, cacimba, a cisterna abastecida pelo carro-pipa. Essa transposição acabou com tudo. E pra quê? Pra fazer esse riacho que entra por debaixo da terra”, referindo-se a um túnel que levava as águas a Monteiro (PB).
A reportagem destacou que aquilo que deveria ser política pública para os aldeados da região, como a construção de casas, unidades de saúde e áreas de irrigação, tornou-se objeto de barganha e de novas promessas com a transposição.
Água em disputa
Dois eventos ocorridos no Brasil em 2018, o Fórum Mundial das Águas (FMA) e o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), foram temas da edição 188 de Radis (maio de 2018), com a capa “Água, um direito, não um privilégio”, que refletiu sobre as contradições em torno de duas visões: a água como fonte de riqueza ou como direito. Na época, os dois encontros foram realizados em Brasília, mas um local muito mencionado pela reportagem foi Correntina, cidade do oeste da Bahia, que faz parte de uma região envolvida em disputa por água. O Fórum Mundial das Águas daquele ano foi o primeiro a ser realizado em uma cidade do hemisfério sul.
Já no Fórum Alternativo, as lideranças se mostravam preocupadas com o consumo excessivo por parte de indústrias e do agronegócio. “Somente esta fazenda [em Corretina] usa 183 milhões de metros cúbicos de água por dia, mais de 30 vezes o consumo da população local, que pratica agricultura familiar. As pessoas estavam vendo diretamente a água secando dos canais de irrigação tradicionais”, disse Abeltânia de Souza Santos, educadora popular da Comissão Pastoral da Terra durante o Fama.
A reportagem traz as contradições presentes no Fórum Mundial da Água e a disputa pelo direito ao acesso, além de mostrar que os debates permeavam outras questões, como raça e gênero, visto que as manifestantes em prol do direito à água eram majoritariamente mulheres, muitas delas quilombolas, indígenas ou ribeirinhas.
A Radis 9, de maio de 2003, também trouxe uma pequena reportagem sobre o Fórum Mundial da Água realizado naquele ano no Japão, em que a previsão era de que faltaria água em 2025. A explicação estava baseada nos dados da época, em que a escassez de água limpa já atingia 30% da população mundial, cerca de 1,4 bilhão de pessoas. A matéria ainda mostrou dados sobre poluição, desperdício e falta de cuidado com este bem necessário à sobrevivência.



Direito ao saneamento básico
O acesso ao saneamento básico está no cerne das desigualdades e impacta a ocorrência de doenças provocadas por situação de pobreza. Como mostra reportagem da edição 227 (agosto de 2021), a esquistossomose permanece endêmica em algumas regiões do país por falta de saneamento.
A enfermidade é considerada uma doença negligenciada, ou seja, em que é sabido todo o processo de transmissão, adoecimento e consequências, mas ainda assim faltam ações efetivas para seu combate. O ciclo da doença acontece com a eliminação das fezes de uma pessoa infectada em valões totalmente abertos, esgoto nas ruas e quintais, por exemplo.
Já na edição 189 (junho de 2018), o foco foram as raízes do problema de falta de acesso ao saneamento. Com o título “Mais caro, menos eficaz”, o texto mostrou que os serviços que foram privatizados no Brasil eram ineficientes, custavam mais caro e eram seletivos na hora de atender a população. Essa conclusão se baseava no estudo “Quem são os proprietários do saneamento no país?”, realizado pelo Instituto Mais Democracia.
Com a privatização e a internacionalização do serviço, a conta de água passou a ser mais cara para o consumidor e as áreas mais pobres foram excluídas dos contratos, mostrava a reportagem. A professora Ana Lúcia Brito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse que a grande questão é que o saneamento deveria ser entendido como um direito social. “Serviço público de água não pode ser um negócio”, observou. Ela afirmou ainda que o Brasil estava seguindo o caminho oposto observado no resto do mundo, não cumprindo o direito humano à água e ao saneamento.
A partir da crise de abastecimento de água no Sudeste do país em 2015, Radis trouxe o título “O saneamento é básico” em sua capa da edição 154 (julho de 2015), mostrando que o acesso a esgotamento sanitário, abastecimento de água, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais urbanas eram atravessados pela situação de pobreza.
A repórter Liseane Morosini entrevistou, na época, o relator especial da ONU para o direito humano à água segura e ao esgotamento sanitário, Léo Heller. Engenheiro civil e pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou (Fiocruz Minas), ele destacou a necessidade de se passar a ver a questão pela ótica do direito humano: “O direito humano ao esgotamento sanitário assegura a todos, sem discriminação, soluções física e economicamente acessíveis, em todas as esferas da vida, de forma segura, higiênica, social e culturalmente aceitável, promovendo privacidade e dignidade”, afirmou.
Com o título “O primo pobre do saneamento básico”, a reportagem de capa da edição 102 (fevereiro de 2011) sobre lixo levantava a questão de um problema ainda sem solução: o destino dos resíduos sólidos no país. Na época, metade das cidades brasileiras possuía lixões a céu aberto. Segundo a reportagem, somente no final dos anos 1980, a questão do saneamento ambiental passou a ser mais discutida, englobando todos os componentes como água, esgoto, lixo e drenagem.



Crise, seca e cólera nos anos 1980 e 1990
Nos anos 1980, quando Radis se dividia em quatro publicações e ainda não existia o SUS no Brasil, nas páginas de Súmula 7 (maio de 1983), víamos o destaque para a seca rigorosa no Nordeste do país e as soluções de políticas públicas para a questão ainda eram ineficientes, gerando grandes problemas para a população atingida. Já na Súmula 10, de abril de 1984, a crise econômica e política comprometeu as metas para o saneamento básico, com o bloqueio de recursos que seriam destinados a essa questão.
Nos anos 1990, o Brasil passou por uma epidemia de cólera, que esteve presente tanto nas páginas de Súmula (edições 41 e 45, abril de 1991 e de 1993, respectivamente) como do Jornal Proposta (edição 32, maio de 1993). As publicações detalharam como estava a situação no país em relação ao contágio, os sintomas, as características, além de explicarem como a falta de saneamento adequado ajudava a espalhar a doença.
No Jornal Proposta, a matéria assinada por Rogério Lannes, a partir de entrevista com os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) Ernesto Hoffer (na época, coordenador do Laboratório de Referência Nacional em Diagnóstico de Cólera da Fiocruz) e Carlos André Salles, falava da importância da educação sanitária para ajudar no combate à doença. “Fornecimento de água tratada em quantidade para a população interrompe o ciclo de transmissão da doença”, alertava Carlos André Salles.




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