A cosmogonia nórdica sobressai ante as demais religiões ao retratar um mundo com os dias contados. Os outrora poderosos deuses sucumbem num embate com os rivais gigantes sob uma sucessão de catástrofes naturais que a tudo engolfa e destrói: o Ragnarök. Sucedendo-se a um longo inverno que oculta o sol por três anos consecutivos, a Terra é envolta pela serpente Midgard e consumida num mar de chamas. Não há retorno nem redenção possíveis.
Soa familiar no Brasil de hoje? O mito foi compilado no século 13, a partir de fontes orais mais antigas, que misturam a escatologia pagã com a cristã. A releitura que A.S. Byatt faz no livro homônimo Ragnarök — O fim dos deuses (Cia. Das Letras, 2013, tradução de Maria Luiza Newlands) é especialmente bela e triste. “Quando se escreve uma versão do Ragnarök no século 21, ela é assombrada pelo processo de imaginar um fim diferente das coisas. Somos uma espécie de animal que está promovendo o fim do mundo em que nascemos. Não por maldade ou premeditação, ou não principalmente por isso, mas por causa de uma mistura desequilibrada de inteligência extraordinária, ganância extraordinária, extraordinária proliferação de nossa própria espécie e uma miopia biologicamente incorporada”, registra a autora.
Em 19 agosto de 2019, “o dia virou noite” nos céus de São Paulo. Morando em casa com quintal verde, algo cada vez mais raro na cidade, e coletando água de chuva para reuso, me assustei com nosso Ragnarök tropical. Os rios de chuva da Amazônia, que impedem o Sudeste de ser um deserto, viraram rios de fuligem. Maior ainda foi o susto depois que postei no Instagram um vídeo coletando a água, turva como café e malcheirosa, recendendo a queimado, e deparei com o comentário de uma desconhecida: “Mentiroso!”, escreveu a criatura, ecoando a tresloucada versão de que ONGs teriam ateado fogo à floresta.
Mal sabia eu que era só uma amostra de um comportamento generalizado de negacionismo, uma expressão peculiar de ignorância que parece encontrar terreno fértil por aqui, e seria exacerbada durante a pandemia da covid-19, meses depois.
Continua Byatt: “Todos os dias leio sobre uma nova extinção, sobre o branqueamento dos corais […]. Leio sobre projetos humanos que destroem o mundo em que estão, poços de petróleo engenhosa e ambiciosamente construídos em águas profundas, uma estrada atravessando as rotas de migração dos animais no parque Serengeti, o cultivo de aspargos do Peru, balões de hélio para transportar as colheitas de modo mais barato, emitindo menos carbono, enquanto as próprias fazendas estão gastando perigosamente a água de que as hortaliças, os seres humanos e outras criaturas dependem.”
Há dias, a mesma tragédia ambiental de 2019 vem se repetindo, agora também mais perto, nos limites do estado de São Paulo, com características semelhantes e efeitos agravados. Quero crer que nem o mais ferrenho ‘agrotroglodita’ possa achar que seja uma boa ideia a deliberada intenção de queimar tudo que é verde, até mesmo pasto e lavoura, mas posso estar equivocado. Nos anos recentes, o Brasil se desindustrializou acentuadamente e, mesmo assim, aumentou suas emissões de carbono. A fumaça que agora respiramos não vem de chaminés, mas da mata que arde.
Dias atrás, depois de um intenso período de calor, estiagem e ar irrespirável, seco e poluído, choveu por aqui. Chuvinha tímida, que mal serviu para umedecer o solo e abastecer minhas cisternas de reuso. Voltei a coletar a água, desta vez sem nem me dar o trabalho de registrar em vídeo. Talvez já tenha me acostumado a isso. A água continuava a turva e malcheirosa de antes.
Desde o ano passado, as ondas de calor e secura estão mais severas, frequentes e demoradas numa cidade antes célebre pelo refrigério de sua garoa. Um frio glacial se alterna, horas depois, com um calor escorchante. Os umedecedores não vencem o arranhão na garganta. Em pleno inverno, refém de uma amplitude térmica de mais de vinte graus num dia, me vi ligando ar-condicionado à tarde para, à noite, dormir de edredom. Não há organismo que resista.
“Quase todos os cientistas que conheço acham que estamos engendrando a nossa própria extinção, e cada vez mais rápido”, prossegue Byatt. “De certa forma, a serpente Midgard é o personagem central da minha história. Ela gosta de ver os peixes que mata e devora, ou que mata por diversão, o coral que esmaga e descora. Envenena a terra porque é da sua natureza. Quando comecei a trabalhar nesta história, tinha uma metáfora em mente — via o navio da morte, Naglfar, feito de unhas de homens mortos, como uma imagem daquilo que hoje é conhecido como o vórtice de lixo, o acúmulo de plástico indestrutível que está girando no Pacífico e que é maior do que o Texas. Pensei em como crescera desde que Thor Heyerdahl ficou desolado ao encontrar copos de plástico flutuando no oceano vazio durante sua viagem do Kon-Tiki, em 1947.”
O mito é uma alegoria, uma representação figurativa a que os humanos recorrem para lidar com a realidade. Quando se anuncia o fim dos deuses, a serpente Midgard somos nós, e no confronto com ela não há retorno nem redenção possíveis.
■ Leonardo Pinto Silva é jornalista e tradutor.
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