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“A gente ainda está longe de conhecer a profundidade do processo de desmonte da saúde indígena e da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] nos últimos anos”, argumenta Ana Lúcia Pontes, sanitarista que coordenou o Centro Operacional de Emergência (COE) instalado em Boa Vista, Roraima, logo que o governo federal reconheceu e passou a interferir na crise, no início de 2023. 

Questionada por Radis sobre quais ações (ou omissões) da gestão anterior à declaração da Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional (Espin) ainda repercutem na garantia de saúde em território, ela avalia que a situação de penúria enfrentada pelos Yanomami reflete um contexto maior, de tentativas de desestruturação do sistema de saúde indígena no Brasil, que se acentuou nos quatro anos de governo do ex-presidente Bolsonaro. 

Integrante do GT de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), há anos a pesquisadora se dedica à interlocução entre academia e movimentos sociais, tendo participado da construção de documento lançado em 2022, em que diversas entidades científicas denunciavam o risco de genocídio na Terra Indígena Yanomami e Ye’kuana. 

Ana Lúcia Pontes, coordenadora do COE: a prioridade das ações, neste primeiro momento, é evitar as mortes de crianças Yanomami. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Ana Lúcia Pontes, ex-coordenadora do COE. — Foto: Eduardo de Oliveira.

O documento se somou às inúmeras denúncias anteriores feitas pelos próprios indígenas, que levaram os casos de violência e invasão de terras à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ao Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou, em 2021, que o governo brasileiro garantisse a proteção integral do povo Yanomami e a retirada dos invasores. 

Nada foi feito até a declaração de emergência, em 2023, quando Ana Lúcia foi convocada para assumir o COE Yanomami. Ela conta que a “paralisia” de processos administrativos e de organização no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei Yanomami) já repercutiam nas ações de saúde naquele momento.

O Dsei é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). O Dsei Yanomami é responsável pela gestão de um território de mais de 9 milhões de hectares, situados nos estados do Amazonas e de Roraima, e pelos equipamentos de saúde que atendem a cerca de 31 mil indígenas, como informa a Sesai. 

Quando foi instalado o COE, em 2023, o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) havia registrado, entre 2019 e 2022, um total de 538 óbitos em menores de 5 anos no território do Dsei Yanomami; 495 destas mortes poderiam ter sido evitadas, segundo o MS. Matérias jornalísticas expuseram o quadro de dor e morte em curso, mobilizando a atenção da sociedade.

A sala do COE, em Boa Vista, é como o cérebro de uma operação que busca salvar a vida dos Yanomami. — Foto: Eduardo de Oliveira.
A sala do COE, em Boa Vista, é como o cérebro de uma operação que busca salvar a vida dos Yanomami. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Os números divulgados naquele momento repercutiam a falta de planejamento do Dsei nos anos anteriores, avalia Ana. “A gente encontrou um serviço que não funcionava regularmente”, diz hoje. Não havia rotinas de aquisição e monitoramento de insumos essenciais. Ela cita como exemplos a falta de licitação de medicamentos, desde 2018; a ausência de rotinas para compra e manutenção de motores de barco e distribuição irregular e insuficiente de gasolina — essenciais para ações de controle de doenças no território, como a malária. Itens básicos como fogões não eram comprados há 10 anos, exemplifica.

Além da ausência de processos gerenciais definidos e regulares, havia também uma grande rotatividade de profissionais, comprometendo a qualidade do trabalho. “Tudo era feito em regime emergencial, mesmo antes de ser declarada a Emergência. Esperava-se faltar para se correr atrás, o que é muito ruim para o serviço”, avalia. “Um serviço de saúde regular deve ter e tem uma rotina de planejamento e monitoramento de insumos e equipamentos, mas isso não funcionava regularmente, o que gerava insuficiências a todo momento”, relata.

Segundo ela, não havia um pregoeiro no distrito; os fiscais de contratos não atuavam regularmente e estavam sobrecarregados; além disso, havia limitações da capacidade técnica da equipe local para instrução processual. Esse ambiente favoreceu a improbidade administrativa, diz a ex-coordenadora. Em 2022, dois coordenadores do Dsei foram investigados por fraudes na compra de remédios; em 2023, a Polícia Federal investigava desvio do contrato de aquisição de oxigênio que envolvia chefias do serviço.

Também não havia coordenação entre as diferentes áreas — planejamento, assistência, logística — de modo a organizar a atuação no território e a resguardar licitações e contratos do risco de corrupção. Para Ana, não foi possível reverter esse modus operandi, construído ao longo dos anos, em plena intervenção, quando a prioridade era salvar vidas. “Isso não se conserta por meio de mecanismos de uma resposta emergencial de saúde pública, mas fomos dando novos direcionamentos para esses processos”, reflete, indicando a dificuldade de, ao mesmo tempo, reestruturar equipamentos, contratar e qualificar profissionais, criar fluxos e mudar rotinas para garantir assistência às pessoas.

Decisão política

O contexto externo não ajudava: a crise revelou ainda o não cumprimento de atribuições e responsabilidades da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) na gestão Bolsonaro. Para além de ignorar as determinações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério Público em instalar sala de situação para interferir em um quadro que se agravava entre os Yanomami, também havia o entendimento interno de que a Secretaria não seria responsável pela compra de alimentos para as unidades de saúde em território. 

Segundo Ana, em 2023 não havia nenhum contrato regular para aquisição e distribuição de alimentos dentro do território.  “Essa foi uma decisão política, que deixou pacientes internados com desnutrição crônica e malária, além de seus acompanhantes, sem comida”. Tudo isso, segundo a sanitarista, era reflexo de uma estratégia de esvaziamento da Sesai, como relataram a ela antigos servidores da pasta.

Ela conta à Radis que o plano era extinguir a Sesai. “Eles tentaram isso formalmente em 2019, quando o então ministro [da Saúde] Luiz Henrique Mandetta propôs transformar a Sesai em um departamento da Secretaria de Atenção Primária”. Graças à articulação do movimento indígena e à repercussão da pandemia de covid-19 na saúde da população indígena, o plano não foi executado. A estratégia adotada pelo governo então foi fragilizar a estrutura da secretaria, eliminando cargos para inviabilizar a gestão, afirma Ana. “A ideia era deixar minguar”. Ela lembra ainda que o governo bolsonaro fez um corte de 59% do orçamento entre 2022 para 2023.

A fragilidade foi reconhecida pelo ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que em decisão judicial assinada em novembro de 2023 (ADPF 709) determinou que o Ministério da Saúde apresentasse plano de ação para aperfeiçoar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em até 12 meses.  

As decisões políticas também se refletiram na atuação dos profissionais de saúde no território Yanomami. A falta de valorização e qualificação de profissionais, aliada à alta rotatividade de pessoal em território (o que se traduzia em precárias condições de trabalho em campo, denúncias de assédio, falta de retorno salarial digno e falta de infraestrutura nos polos-base) fizeram com que muitos indígenas não recebessem a assistência necessária. “Foi-se construindo uma ideia de precariedade, de que não era direito dos Yanomami ter um atendimento digno, de qualidade”, revela.

— Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Proteção territorial e malária

Um dos exemplos concretos citados por Ana em relação à precariedade diz respeito às ações de combate à malária, um dos problemas que parece ter se tornado crônico nos últimos anos em território Yanomami. Não havia ações de vigilância e nem insumos para o controle da doença, revela a pesquisadora. Subestimaram a demanda, conta ela, informando que não havia lâminas para realização do exame de detecção (e nem programação para isso) e nem uma orientação clara  para o controle de casos em terra indígena. 

O que a equipe do COE observou, segundo ela, é que nem todos os profissionais que atuavam na TIY estavam preparados para fazer busca ativa, diagnóstico e tratamento da malária e nem havia plano de atualização de conhecimentos ou procedimentos. Além disso, a distribuição dos profissionais no território não seguia padrões epidemiológicos, avalia.

Outro ponto para o qual Ana Lúcia chama atenção — e que é um dos contextos que ultrapassa os limites da saúde, mas que incide em todas as causas dos problemas — é a omissão do governo Bolsonaro em relação à proteção territorial. Segundo ela, sob o argumento de combater a pandemia de covid-19, a gestão anterior bloqueou alguns territórios indígenas, o que dificultou a atuação de algumas entidades, como Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Não desenvolver as ações de proteção é que colocou os Yanomami na atual situação de vulnerabilidade”, defende, ressaltando que não havia nenhuma ação concreta do governo de combate ao garimpo, nem para prover segurança alimentar.

Ela sustenta que o problema de base não foi contornado totalmente e volta a se referir a um estado de paralisia nas ações de saúde na TIY. Não havia, segundo ela, profissionais suficientes e direcionamento da gestão, cujo reflexo se vê em um “apagão de dados” sobre indicadores de nascimento, de agravos importantes e de óbitos no território, entre 2019 e 2021. “Muita informação a gente não tem, e não sabe o que aconteceu nos últimos anos. Investigar e descrever o que aconteceu neste período não vai ser um processo simples, mas é necessário”, diagnostica.

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