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Não me segure, meu bem / Estou aqui! / No Loucura Suburbana / Onde vou me divertir!

Ao andar pelas ruas do subúrbio carioca, nos dias de carnaval, o que se vê é alegria, libertação e um momento de extrapolar os sentimentos. Além disso, é possível encontrar um bloco carnavalesco cheio de loucos, loucos foliões. Afinal, a palavra “folia” em francês significa loucura. Mais especificamente na Rua Ramiro Magalhães, Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio Janeiro, quem faz os cortejos, com direito a estandartes, porta-bandeira, mestre-sala, samba do ano, cartazes e muito mais, é o Loucura Suburbana. Nascido em 2001 e criado dentro do Instituto Nise da Silveira, o Loucura é o primeiro ponto de cultura e bloco de carnaval em Saúde Mental da cidade do Rio de Janeiro. O bloco foi um marco e, ainda hoje, desfila nos arredores do Engenho de Dentro para felicidade dos foliões.

O atual Instituto Municipal Nise da Silveira nasceu em 1911, como Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, e recebeu os registros de pacientes daquele que foi considerado o maior hospício do Brasil, o Hospital Psiquiátrico Pedro II, um lugar de tortura e de internação de pessoas que precisavam de suporte psicólogico, subjugadas pelos preconceitos e pelas antigas práticas utilizadas na época. Graças a profissionais como Nise da Silveira, que depois foi homenageada com o nome do instituto, a luta antimanicomial venceu alguns obstáculos e ganhou espaço desde então. 

A humanização dos pacientes, a proibição de tortura e maus tratos, a implementação da cultura e arte foram fundamentais nesse processo que ainda está em andamento. Para relembrar essa luta, um elemento tem presença garantida no bloco: a boneca de Nise da Silveira desfilando no Loucura Suburbana. 

Pode-se dizer que o Loucura é parte da história dessa luta por direitos e contribui para o instituto se tornar um espaço seguro para os pacientes, e onde eles possam expressar suas vontades. Ariadne Mendes, psicóloga do Ministério da Saúde e fundadora do bloco carnavalesco, conta que nenhum dos destaques do bloco aconteceu por concurso, todos foram uma autoescolha. “Um dia a porta-bandeira não pode vir e a Elisama, atual porta-bandeira, disse que queria ser e ocupa a função até hoje. Assim foi com o mestre-sala, o intérprete e a passista. É interessante como o bloco passa a ser também um local de expressão de desejo e uma possibilidade de realização”, reflete. O protagonismo é dos pacientes: são eles que escolhem e escrevem o samba, que fazem parte das oficinas e se elegem como destaques do carnaval.

Estandartes e cartazes quebram os estigmas da loucura com trocadilhos divertidos. — Foto: Luíza Zauza.
Estandartes e cartazes quebram os estigmas da loucura com trocadilhos divertidos. — Foto: Luíza Zauza.

Protagonistas do Loucura

Esperei o ano inteiro pelo seu calor / Que loucura, meu amor!

Na sede do bloco, quando se entra no pátio principal, há registros por todos os lados: no centro, há uma placa bem colorida escrita Loucura Suburbana, tradicionalmente carregada no dia do desfile, e no canto esquerdo tem uma estátua de um homem loiro com cabelo cacheado e óculos redondos. É o professor de música e responsável pela parte musical do bloco, Abel Luiz. A filha da enfermeira Julia, que trabalha no Nise, fez quando ainda era pequena.

Abel conta à Radis uma história do compositor Adilson Tiamo: um dia, ele chegou com a polícia no Nise e foi Fernando Mesquita, da bateria, que assinou um papel para liberá-lo. A polícia o havia detido enquanto andava na Linha Amarela [linha expressa onde só é permitido transitar automóveis], vindo de Jacarepaguá, bairro da Zona Oeste. Adilson achava um absurdo: o caminho para chegar mais rápido vindo de Jacarepaguá é a Linha Amarela. Ele estava sem grana, sem moto, aí iria ter que fazer um desvio a pé até Madureira. A reflexão era: “Eles constroem via expressa para todo mundo, menos para o pedestre, menos para bicicleta. Não tem nada pra gente. Eu quero o meu direito de ir e vir.” 

Adilson Tiamo é o atual compositor do Loucura com o samba do ano “Te Amei, Te Amo, Te amarei…”. Abel lembra quando ele ganhou o samba “Que Loucura, Meu Amor”, em 2014. “Ele chegou e falou: ‘Abel, mostrei lá na Colônia [Juliano Moreira, em Jacarepaguá]. Todo mundo falou que esse samba ia envergonhar, mas mesmo assim decidi trazer. Ele começou a cantar. ‘Esperei o ano inteiro pelo seu calor, que loucura’ e eu na hora disse que o samba é bom para caramba e que ia explodir no carnaval. Ele gravou e virou o hino do Engenho de Dentro. Ganhou o samba em 2014 e sempre pedem quando cantam as músicas antigas do bloco”, conta Abel.

Acolhimento e familiaridade do Engenho de Dentro

Engenho de Dentro me alucina / Meu primeiro amor…

O músico que tem o prazer de ter uma estátua no saguão do bloco conheceu o Nise da Silveira por ter nascido nas proximidades do Engenho de Dentro. Desde criança, Abel Luiz brincava dentro do instituto, fazia parte do Centro de Apoio a Crianças e Jovens e jogava futebol e capoeira. É um exemplo da comunidade externa que faz parte do bloco e das atividades do instituto. Para ele, essa interlocução entre comunidade e pacientes é fundamental. 

“A música é um idioma cristalizado comum entre diferentes pessoas, diferentes trajetórias e diferentes complexidades. O som é essa coisa comum que reúne pessoas”, reflete. Essa interação entre a comunidade e os pacientes, por meio das oficinas e dos blocos, “desconstrói o ordinário construído pela sociedade”. 

A blusa do Bloco de 2024 tinha a frase de Michel Indiano [um dos compositores que disputa samba no bloco] estampada: “Quem não sabe o que é loucura, não entende o que é amar”. Ariadne entende que a participação da comunidade vai se dando pouco a pouco, mas surgiu desde o primeiro ano. Um evento em específico marcou a psicóloga: um dia, uma vizinha do instituto perguntou se queriam ajuda. O bloco tinha apenas três anos. Para ela, aquele momento foi simbólico: a comunidade estava chegando e se propondo a ajudar, iniciando uma interação. Os pequenos núcleos de atividades já começavam a acontecer com pessoas que frequentavam o hospital e viviam nos entornos do bairro.

Emoção, alegria e libertação

A liberdade é a loucura de amar!

Márcia Marzioni Viceconte, coordenadora do ateliê de adereços e fantasias do Loucura Suburbana, veio também da comunidade, conheceu um curso de corte e costura quando trouxe seu marido para fazer um tratamento no Instituto. Já tinha feito o curso antes, mas tinha interesse em aprender sobre as máquinas industriais. E hoje é apaixonada pelo bloco: o ateliê é onde passa a maior parte do tempo. Ele funciona de segunda a sexta, de dezembro até o dia do desfile. São feitas as fantasias dos destaques do bloco, da porta-bandeira e do mestre-sala. 

O grupo de pessoas que frequenta as oficinas e alguns voluntários são responsáveis por colorir o bloco do subúrbio. Márcia conta que não é fácil, mas no final tudo vale a pena. “Embora seja estressante, é muito gostoso, porque quando o bloco sai eu sempre digo isso: a gente vê um trabalho realizado através do nosso sacrifício. A gente vê as pessoas felizes, né? Todos estão ali sendo aplaudidos”, descreve. No restante do ano, quando passa o carnaval, o ateliê produz tiaras, miniestandartes e bolsas para venda. Segundo Márcia, já fizeram dois estandartes grandes até para o Museu do Amanhã, no Centro do Rio.

Fernando Mesquita, de 40 anos, mestre de bateria da Insandecida – com I mesmo, desafiando a gramática -, como é chamado o conjunto de instrumentistas do bloco, conta que desfilam mais de 40 pessoas. Na bateria, o Loucura Suburbana representa também um momento de emoção, de pura catarse, muitas pessoas chegam ao final do desfile chorando. As oficinas de percussão acontecem com os usuários que frequentam o Instituto e outras pessoas que demonstram interesse; nelas são trabalhados exercícios de coordenação, velocidade e resistência. 

O músico lembra que, em uma das oficinas, levaram um dos pacientes que estava em crise e, por incrível que pareça, o samba que é superacelerado, acabou sendo calmante para ele. “Não sei como definir o que aconteceu, não posso dizer qual é o efeito, mas o ritmo acelerado acalmou o cara. A música é isso”, diz.

No dia do desfile, usuários e profissionais da rede de atenção psicossocial, familiares e vizinhança tornam-se uma só multidão. “Eu acho que o carnaval, em primeiro lugar, é uma festa democrática e é o lugar em que todo mundo pode ser o que quiser. Os loucos podem ser o que quiser e quem não é louco pode ser louco também. É uma festa em que há igualdade”, conclui Ariadne.

 Estágio Supervisionado
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