Não importa se você é flamenguista, vascaíno ou tricolor. Seja torcedor do Corinthians ou Palmeiras, Bahia ou Vitória, Fortaleza ou Ceará, você carrega outro time em seu sangue. Ele está presente dentro e fora de campo: está nas vacinas que você tomou ao longo da vida, na fiscalização dos alimentos que consome, na qualidade da água, na prevenção e promoção à saúde ou ainda quando surge alguma emergência ou acidente na rua e é preciso chamar uma ambulância. Ele não nega assistência para torcida rival, nem deixa de fora do campeonato as agremiações pequenas do interior. Faz jogo limpo com todo mundo. Por isso é chamado carinhosamente de SUS da gente, a maior torcida do Brasil, presente em nossa vida, mesmo nos momentos em que a gente não se dá conta. Porém, será que vestimos a camisa e fazemos do SUS o nosso time do coração?
No ano em que completa 30 anos de sua regulamentação, com a lei 8.080 de 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) se depara com o maior desafio de sua história: a pandemia do novo coronavírus. Mesmo com bola dividida e torcida contra, o SUS entrou em campo e mostrou o quanto é imprescindível para garantir o direito à saúde para a população brasileira. Nenhuma outra instituição no país teve um aumento de confiança tão grande, durante a pandemia, quanto o sistema público de saúde. O SUS cresceu onze pontos no Índice de Confiança Social (ICS), entre julho de 2019 e setembro de 2020, segundo pesquisa nacional feita pelo Ibope Inteligência, desde 2009. Foi o patamar mais alto de confiança no sistema público já registrado, em um momento em que ele ganhou destaque no noticiário e principalmente no cotidiano da população.
Mesmo com a pandemia, a torcida do SUS levou um susto quando o governo federal lançou o Decreto 10.530 (26/10), que previa parcerias com a iniciativa privada nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, o decreto pretendia incluir o setor de atenção primária à saúde no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) sob responsabilidade do ministro da Economia, Paulo Guedes. A medida liberava a elaboração de estudos para construção, modernização e operação das UBS pela iniciativa privada. Na prática, abria caminho para a privatização do setor considerado o coração do SUS: a atenção básica. Imediatamente a torcida reagiu: a hashtag #DefendaoSUS ganhou os corações e as redes sociais, o que levou ao recuo do governo federal e à revogação do decreto (28/10), ainda que o presidente tenha afirmado, em sua página no Twitter, que “Em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos o mesmo poderá ser reeditado”.
A mobilização foi um golaço: mostrou a força que o SUS tem no imaginário da população, independente de partidos ou governos. Após analisar mais de 150 mil menções ao SUS e às unidades de saúde no Twitter, ao longo do dia 28/10 (por coincidência, dia do servidor público), a consultoria Arquimedes concluiu que 98,5% das publicações foram desfavoráveis ao decreto e em defesa da saúde pública. Foi a pior reação negativa ao governo federal na plataforma desde o seu início, em janeiro de 2019, como noticiou O Globo (28/10).
Outras manifestações de carinho e defesa do SUS foram vistas ao longo de 2020: no início da pandemia, janelas de diversas cidades brasileiras aplaudiram trabalhadores e trabalhadoras da saúde que estavam na linha de frente contra a covid-19. O apoio também chegou aos gramados. Em confronto com o Náutico, em julho, o Esporte Clube Bahia estampou a logo do SUS na camisa dos atletas que entraram em campo como homenagem ao sistema público de saúde. A iniciativa foi um sucesso e o time teve que liberar a versão especial do uniforme para venda. “Atendendo a pedidos (muitos, muitos mesmo) de todos que se orgulham do SUS, o EC Bahia venderá até amanhã camisas oficiais modelo Torcedor com a marca deste patrimônio brasileiro”, anunciou Guilherme Bellintani, presidente do clube (23/7), que afirmou ainda que o lucro com a venda seria revertido para uma unidade do SUS em Salvador. A ideia também foi adotada pelos times da primeira divisão do campeonato inglês (Premier League), no retorno dos jogos após o início da pandemia: as equipes registraram em suas camisas mensagens de apoio ao NHS (National Health Service), o sistema público do Reino Unido, no qual o SUS é inspirado.
No meio do ano, cerca de 600 organizações e entidades se reuniram em uma marcha (9/6) que resultou na criação da Frente pela Vida, todas motivadas pela necessidade de propor ações efetivas em resposta à pandemia. Além de cobrar do governo um plano de enfrentamento da crise sanitária, o grupo também publicou uma carta, em novembro, onde reivindicava a recuperação do orçamento do SUS, “que segue em desfinanciamento constante” e reafirmava a importância de assegurar o financiamento, fundamentais para a continuidade das ações do sistema em 2021 (Saiba mais sobre a Frente em https://frentepelavida.org.br/ ).
Você já deve ter se deparado com alguma crítica de que o “SUS não funciona”, ou que as unidades estão sucateadas, há filas ou falta remédio. Mas talvez ainda não tenha parado para refletir sobre o quanto o sistema público brasileiro está presente na sua vida: do Programa Nacional de Imunizações (PNI) até o dia a dia dos serviços de saúde, passando pela vigilância sanitária e epidemiológica, oferta de medicamentos, desenvolvimento de pesquisa e por ações de promoção e prevenção (veja quadro na página 16). Diante do desafio de garantir assistência à saúde em meio à pandemia, o SUS esbarra no gargalo do desfinanciamento, agravado com os cortes e a Emenda Constitucional (EC) 95, de 2016, e com a persistência das desigualdades, o que compromete o futuro do maior sistema público de saúde do mundo.
SUS das famílias e comunidades
No Morro dos Macacos, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, Alisson Sampaio Lisboa se deparou com o sonho e as dificuldades em ser médico de família e comunidade. Formado em Medicina pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 2016, ele passou a maior parte da graduação ouvindo dos professores que era preciso ter uma boa formação técnica para “fugir do SUS” e ocupar os melhores postos de trabalho na iniciativa privada. Um estigma presente na formação médica brasileira, segundo Alisson, que decidiu desconstruir na prática, ao se especializar em Medicina de Família e Comunidade. “O SUS precisa não só de médicos de família e comunidade, ele precisa de todas as especialidades. Mas talvez o que tenha me afetado mais foi compreender que a atenção primária à saúde é que vai conseguir universalizar o acesso e coordenar os níveis de atenção”, explica.
Dois anos de trabalho na atenção básica da segunda maior cidade brasileira, o Rio de Janeiro, em um momento em que o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) anunciava o fechamento de Clínicas da Família e o atraso nos salários de profissionais da saúde, fizeram com que o médico entendesse o tamanho dos desafios colocados ao SUS. Por outro lado, deram a ele um olhar mais humano e empático sobre o cuidado. “A gente compreende que as doenças não existem, o que existem são pessoas concretas doentes, que têm histórias de vida, formas de encarar o adoecimento e expectativas, com toda a sua subjetividade”, avalia Alisson, que também é integrante da Rede de Médicos e Médicas Populares (RMMP) e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Como médico do SUS, ele aprendeu a ouvir. “Na atenção primária, quando fui para o chão de fábrica, eu vi que as pessoas gostavam da minha forma de atender, diziam que eu sabia escutar mais do que julgar”, relata. Ao ouvir e se colocar no lugar do outro, é possível entender melhor o processo de adoecimento e gerar vínculos que ajudarão no plano terapêutico. “A habilidade de comunicação e alguns princípios da Medicina de Família deveriam ser mais ensinados nos cursos de graduação. Você não nasce com empatia, você aprende a ser empático”, considera.
A expansão da cobertura da Saúde da Família para cerca de 70% da população é considerada uma das principais conquistas do SUS em 30 anos, com resultados positivos para a redução da mortalidade infantil e o controle de doenças cardiovasculares. Contudo, Alisson aponta problemas como a falta de um plano de carreira para os profissionais do SUS, que garanta boa remuneração e estabilidade no emprego, e evite atrasos salariais e vínculos frágeis mediados por organizações sociais (OS). “No Rio de Janeiro, trabalhei de 2018 a 2019 e cheguei a passar dois meses ininterruptos sem receber salário. Como você fixa um médico de família no SUS dessa forma?”, questiona. “Apesar dos avanços, ainda temos grandes dificuldades relacionadas à precarização dos vínculos de trabalho e à terceirização, e nos pequenos municípios tem a questão do assédio de prefeitos e vereadores que acabam loteando as áreas para conseguir facilidades para seu eleitorado”, ressalta.
O médico lembra que o modelo brasileiro de Saúde da Família é referência no mundo, pois se baseia em uma atenção primária com foco na orientação territorial e comunitária, participação dos agentes comunitários de saúde (ACS) e dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (Nasf) e trabalho multiprofissional. “Outra conquista importante foi o programa de HIV/aids, cujo tratamento é feito todo no sistema público de saúde. Pacientes do setor privado, com plano de saúde, vão se tratar no SUS”, pontua. O tratamento da tuberculose, os transplantes e a Política Nacional de Medicamentos são outros pontos importantes, ele destaca. “O SUS, apesar de todos os desafios, não possui copagamento. Existem sistemas universais de saúde na Europa em que nem tudo é 100% público, em que você tem que pagar por alguns tipos de medicamentos ou procedimentos. No SUS não, é tudo 100% gratuito para os pacientes”, comenta.
Tamanho família
O SUS é considerado o maior sistema público e universal de saúde porque é o único que atende mais de 200 milhões de pessoas. Entre os países que possuem esse tipo de sistema, como Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha, Portugal e Cuba, o mais populoso é o Reino Unido, com cerca de 66 milhões de pessoas. Com exceção do Brasil, nenhum país com mais de 200 milhões de habitantes possui um sistema com atendimento universal e integral à população. Porém, o SUS atende mais com menos recursos: de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil gastou 9,2% do PIB em saúde em 2017, sendo 3,9% (42%) gasto público e 5,4% (58%) gasto privado. Nos sistemas universais, a participação de gasto público fica em torno de 75%, de acordo com documento recente publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco, em 28/10) — quase o dobro da proporção que é investida pelo setor público no Brasil.
“O que a gente investe no público é muito aquém do que o necessário para ter um sistema universal. Isso gera precarização dos serviços e insuficiências”, afirma Alisson. Um dos principais desafios do SUS ainda são os procedimentos de média e alta complexidade. “O que fazer quando a atenção primária não consegue resolver, quando precisa fazer uma cirurgia, uma consulta especializada ou um exame mais caro?”, indaga. Ele também aponta que não existe uma relação harmônica entre os setores público e privado. E cita um exemplo cotidiano: alguém jogando futebol machuca o joelho. Ele procura um ortopedista numa clínica particular, mas o plano de saúde não cobre a ressonância, então acaba recorrendo ao SUS para fazer o exame. “Está previsto na Constituição, no artigo 199, que a saúde é livre à iniciativa privada e o privado deve atuar de forma complementar ao público. Mas o que aconteceu na prática, ao longo desses 30 anos, foi uma complementaridade invertida: o público complementa o privado”, avalia.
O subfinanciamento do SUS foi agravado pela aprovação da EC 95, em 2016, o chamado Teto dos Gastos, que congelou os gastos públicos por 20 anos. “A população brasileira está crescendo e demanda mais serviços de saúde, mais médicos, enfermeiros e outros profissionais, mais medicamentos e hospitais. E também está envelhecendo. Estamos num processo de transição epidemiológica nos últimos 40 anos, com cada vez mais prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, câncer, hipertensão, diabetes e infartos”, analisa. Em outras palavras, os recursos para a saúde deveriam aumentar e não diminuir; e a falta de investimentos afeta diretamente o serviço prestado à população, pontua Alisson.
Para o médico de família e comunidade, os desafios colocados ao futuro do SUS “são essencialmente políticos e econômicos”, mas ainda é possível reverter esse placar desfavorável. “Vai ser muito importante que a academia continue produzindo ciência, mas que esteja na luta junto com os movimentos sociais, em diálogo com a população, para que o projeto histórico da Reforma Sanitária possa voltar a ter protagonismo na sociedade”, defende.
SUS é nosso e ninguém tira da gente
Gastão Wagner foi testemunha e um dos artífices do movimento brasileiro da Reforma Sanitária, que levou à idealização do Sistema Único de Saúde, na Constituição de 1988. “O SUS existe porque se criou no Brasil, ainda na ditadura, um movimento social com participação inédita de setores da sociedade civil, em defesa da saúde e do direito ao acesso”, relembra. Mulheres e moradores da periferia, movimentos ligados aos grandes agravos e à saúde mental e pessoas envolvidas na luta pelo direito de quem vive com aids, pela humanização dos hospitais e pela defesa das pessoas com deficiência foram alguns dos protagonistas que deram vida ao SUS, ao lado dos trabalhadores da saúde. A luta para que o sistema público fosse implementado não terminou com as chamadas leis orgânicas da saúde (8.080 e 8.142 de 1990). Ao contrário, continua até o presente. “Se o SUS não fosse defendido de forma permanente, constante, ele não teria sustentabilidade. O SUS é mais forte onde houve mais pressão social”, ressalta o sanitarista, formado em Medicina pela Universidade de Brasília (UnB) em 1975, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Abrasco.
A pergunta “O SUS é pra sempre? Veio pra ficar? É patrimônio nosso e ninguém tira da gente?”, para Gastão, não tem uma resposta simples. “Depende da nossa capacidade, de uma parcela grande da sociedade, de fazer essa defesa em cada bairro, no cotidiano dos serviços, nas eleições e nas mobilizações”, considera. O sanitarista ressalta o ideal de solidariedade que inspirou a criação do SUS, que prevê os princípios de equidade e universalidade — em que cada um recebe o cuidado de acordo com suas necessidades e o Estado deve prover o direito para toda a população. “Revendo a história do SUS e olhando o conservadorismo do Estado brasileiro, a pergunta que temos que fazer é a seguinte: Como o SUS existe num país tão elitista e conservador?”
Por ser uma política de caráter solidário, a defesa do SUS precisa acontecer cotidianamente, na avaliação de Gastão, na disputa de afetos e valores em todos os espaços da sociedade. “O SUS é baseado na solidariedade. É uma norma, uma lei muito generosa, mais generosa do que a cultura brasileira. Então temos que apostar em uma mudança da sociedade. E a sociedade pressionar partidos políticos, gestores, a mídia, a opinião pública, e apresentar argumentos e evidências contra esse discurso de que o SUS é ineficiente”, pontua. Gastão reforça que o SUS vai na contramão das políticas neoliberais e do princípio de que cada um pode se defender por si mesmo “com violência” e de que não precisamos de solidariedade. “O pensamento de que grande parte das saídas são coletivas depende do protagonismo de cada um, de cada grupo, cada coletivo e cada bairro. Ninguém resolve a saúde somente por si mesmo. Ninguém resolve a pandemia somente com sua família. Se resolver, é somente para a elite, que se tranca nos condomínios e aparentemente está resolvido”, reflete.
As consequências da covid-19 no Brasil mostraram, de acordo com o sanitarista, a necessidade de um sistema público e universal como o SUS. “A pandemia chamou a atenção da população e fez emergir na consciência de grande parte das pessoas, nos vários estratos sociais e regiões do Brasil, que, em um momento de desespero, a maior parte da população vai ter que se socorrer do SUS”, afirma. Segundo ele, em um momento de grande necessidade, o SUS “em alguma medida respondeu”, apesar de todos os problemas. “Mesmo os setores mais conservadores, que nunca apoiaram o SUS, passaram a reconhecer que sem ele seria a barbárie”, aponta.
No entanto, o SUS também “deixou a desejar”, na avaliação do sanitarista: por ser um sistema interfederativo, a coordenação é muito difícil e depende do governo federal, que orienta e repassa recursos aos estados e municípios. “Com a postura do presidente da República, essa coordenação ficou praticamente impossível. Ele trocou de ministro duas vezes e depois, com os militares, praticamente paralisou o Ministério da Saúde, bloqueou todo o papel de coordenação em relação à atenção primária e ao provimento de material e imunobiológicos para fazer os testes e está dificultando ao máximo a coordenação de uma campanha nacional de imunização como é tradição nossa fazer”, pontua.
Muito com pouco
Ao entrar em campo, o time do SUS precisa suar a camisa para reverter um placar desfavorável de 7 a 1. “O SUS é um sistema público. Apesar de haver muita privatização e terceirização, o Estado é responsável. E o Estado tem sido cruel com a maioria da população brasileira”, afirma Gastão. Segundo o sanitarista, a organização da administração pública e o uso do orçamento têm favorecido muito mais a elite do que a maioria da população negra e pobre. “Temos uma história que vem desde a escravidão em que as pessoas aprenderam a desconfiar do Estado, da segurança pública, dos representantes do poder e dos políticos. O SUS sofre por isso, ainda que seja uma parte do Estado brasileiro que tem uma política que está mais próxima da população”, reflete.
Outro adversário em campo — nem sempre declarado — é o setor privado. “Como em grande medida a população quer o SUS, ele é querido, apesar de ser criticado, a gente não ouve o discurso ‘vamos privatizar o SUS’ ou ‘vamos vender o SUS’”, explica Gastão. Por outro lado, de forma que ele considera “hipócrita”, setores ultraliberais e conservadores “maltratam” a saúde pública com subfinanciamento, terceirização e fragmentação da gestão. “O SUS foi criado num contexto de políticas neoliberais. Ao longo desses 30 anos, ele foi subfinanciado”, avalia o sanitarista. Segundo ele, o sistema único despertou a “sanha” de seus adversários desde o nascimento. “O argumento é de que o SUS é pouco produtivo e eficiente. O SUS gasta muito bem o pouco recurso que tem”, considera. Gastão destaca o PNI, a Estratégia Saúde da Família, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os cuidados a pessoas com diabetes e aids. “Nenhum convênio garante isso”, afirma.
Ainda há grandes obstáculos a enfrentar. Um dos maiores, segundo Gastão, é a desigualdade entre as regiões. “O SUS vem se implementando de forma desigual e heterogênea. Agora na pandemia isso ficou evidente: a população de Manaus ou Fortaleza tem uma oferta de serviços muito menor do que Campinas e São Paulo”. Outra questão a ser superada é a falta de uma política de pessoal, que resguarde os profissionais da terceirização e precarização. “É heroica a dedicação e responsabilidade ainda existentes dos profissionais de saúde com o SUS, apesar do mau trato que recebem”, ressalta Gastão. Apesar das dificuldades, esse ainda é o time que faz o SUS dar certo. Segundo o sanitarista, também é preciso superar o pessimismo e apontar soluções concretas: “Se queremos mais dinheiro para o SUS, precisamos dizer para onde: para aumentar a cobertura de Saúde da Família e construir mais centros de referência”. Ele acredita que somente as críticas não ganham o coração da população — é preciso mostrar o quanto o SUS faz diferença na vida de brasileiros e brasileiras. “O SUS depende muito do caráter, da generosidade e da solidariedade da população brasileira”, completa.
“Nascida e criada com o SUS”
“Minha relação com o SUS começou antes mesmo do nascimento. Minha mãe realizou o pré-natal na Unidade Básica de Saúde (UBS), nasci em hospital público e sigo como usuária e hoje também funcionária”, conta Laís Ladeia da Rocha, psicóloga de 27 anos que faz questão de divulgar em suas redes sociais que foi “nascida e criada com o SUS”. Moradora de São Bernardo do Campo (SP), ela fez residência em um Centro de Atenção Psicossocial e atualmente trabalha em uma UBS — “lutando pelo atendimento integral”, como descreve. “Eu sempre falo com orgulho que sou psicóloga no SUS. É aquele fato de vida que a gente conta como um feito, sabe?”, afirma.
A foto em seu perfil do Instagram destaca Laís com um jaleco branco e a logo do SUS. “Defendo que todo profissional da saúde deveria passar pelo menos algum período atuando no sistema público. Acredito que trabalhar no SUS é uma forma de retribuir todo o cuidado que recebo dele”, relata. Ela conta que também tem plano de saúde e contraiu a covid-19. “Sabe onde fui melhor tratada? No SUS. Testagem e monitoramento diário por telefone pelo SUS”, conta. Segundo ela, não defender o sistema público abre brechas para que a saúde seja vista como uma mercadoria e não como direito. “Como não defender esse sistema? É uma das nossas maiores conquistas e aqui se faz vida! É onde todo brasileiro recebe atenção independente de qualquer coisa”, ressalta.
O SUS é o nosso futuro
“O SUS é o futuro possível para que a gente tenha de fato saúde no país.” A frase de Luciana Dias de Lima, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) da Fiocruz, mostra que o sistema público brasileiro precisa honrar o seu legado de três décadas e seguir na luta para garantir o direito à saúde da população. “Tivemos avanços do ponto de vista da incorporação de milhares de pessoas que não tinham esse direito assegurado e passam a ter, tanto em relação a serviços de assistência médica individual quanto a ações de natureza mais coletiva que avançam no SUS a partir da Constituição de 88. Isso não é pouca coisa”, considera.
A existência de um sistema público e universal, porém, vai na contramão das políticas de “Estado mínimo”, que de acordo com a pesquisadora estiveram presentes ao longo da história de implementação do SUS. “Podemos dizer que o SUS nadou contra a corrente em vários momentos, com maior ou menor dificuldade”, avalia. No entanto, segundo ela, com todas as desigualdades e especificidades do país, foi possível fazer com que se capilarizasse no território nacional e expandisse o acesso a ações e serviços de saúde. “Dizer que saúde é um direito de todos e dever do Estado coloca nosso patamar de luta política num nível bem mais avançado do que outros países que compartilham dos mesmos problemas que enfrentamos no Brasil, como é o caso de vários países da América Latina”, analisa Luciana, que é também co-editora chefe da revista “Cadernos de Saúde Pública”.
“Certamente a saúde que temos hoje no Brasil é muito superior àquela que tínhamos no final dos anos 80. Não é à toa o reconhecimento que a sociedade dá ao SUS nesse contexto de crise sanitária, econômica e humanitária pela qual estamos passando com a pandemia de covid-19”, reforça. Mesmo com um número expressivo de casos e mortes em consequência do novo coronavírus, há uma percepção favorável ao SUS na sociedade. “A população reconhece que sem o SUS estaríamos numa condição infinitamente pior. É como se a gente estivesse incorporando cada vez mais a ideia de que sem o SUS não há futuro para a saúde no Brasil”, acrescenta. No entanto, segundo Luciana, mesmo com a ampliação da base de apoio social à saúde pública, como mostrou a reação ao decreto que propunha a implementação de parcerias privadas nas UBS, não há priorização da saúde na agenda dos governos da mesma maneira.
Um dos indicativos desse descaso, segundo a pesquisadora, é a falta de prioridade da saúde no orçamento público. “Essa é uma questão que precisa ser superada — tanto a EC 95 quanto a política de contenção de gastos e de destruição do próprio Estado. O SUS requer capacidade pública de intervenção. Isso também exige recursos adequados para outras políticas sociais, não só a saúde”, alerta. Luciana considera que ainda há muitos desafios a enfrentar para garantir a universalidade e a equidade no SUS. “Os determinantes sociais que estão na origem das desigualdades não são resolvidos somente por meio do sistema de saúde — ainda que sistemas universais como o SUS permitam reduzir a expressão das desigualdades sociais na saúde”, explica. Em relação às iniquidades, ainda há um placar longo a reverter. “Mais uma vez, a covid nos mostra que a ocorrência da doença e sua letalidade é muito maior para alguns grupos socioeconômicos e isso é expressão das desigualdades históricas socialmente determinadas no Brasil”, reflete.
Organizar um sistema universal em um país com o tamanho e a complexidade do Brasil foi um esforço ambicioso que exige a atenção às necessidades de cada território e região. “Para organizar de modo regional, é preciso uma ação concentrada e colaborativa de diversos entes governamentais”, pontua. O governo federal tem papel importante, mas são estados e municípios, de acordo com Luciana, que dão vida às políticas de saúde. “Isso requer uma maior ênfase no enfoque regional e territorial, para o processo de formulação de políticas”.
Privado ou público?
O alerta acendido com o decreto presidencial que previa parcerias privadas nas UBS — depois revogado — não indica uma novidade: para Luciana, a expansão do setor privado sobre a atenção primária já vinha ocorrendo com uma série de mudanças, como a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) de 2017, o novo modelo de financiamento e a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). “São mudanças que ampliam de forma muito significativa o espaço de atuação do privado na atenção primária”, destaca. A pesquisadora lembra que, desde seu nascimento, o SUS convive com ameaças do setor privado, pois não rompeu com ele na época da Constituição de 1988. “O SUS herda um setor privado bastante desenvolvido na saúde e, ao longo de todo o processo de implementação, houve muito incentivo do próprio Estado para reorganização desse setor que hoje passa por mudanças em decorrência da financeirização da economia e da dinâmica de atuação dessas empresas”, explica.
Se o SUS se expandiu, o setor privado também cresceu e ficou ainda mais dinâmico. “Isso é um desafio que está posto para o futuro do SUS. Se o imbricamento é tão significativo que impede romper totalmente com o setor privado, de que forma podemos fortalecer o caráter público dos serviços? Como fortalecer a regulação pública em prol dos interesses coletivos e do asseguramento do direito coletivo à saúde?”, questiona Luciana. Segundo ela, há uma jogada importante a fazer: fortalecer o Estado e sua capacidade pública de liderança, regulação e organização. “Na pandemia, por exemplo, o limite de atuação do privado ficou muito claro: do atendimento à realização dos testes”, exemplifica. A pandemia também mostrou o quanto a saúde pública é essencial, na avaliação da pesquisadora. “O SUS não pode ser defendido somente por pessoas vinculadas à saúde. Tem que ser valorizado pela população de forma geral e por outras organizações da sociedade civil não ligadas diretamente ao setor”, pontua.
SUS do povo brasileiro
“Eu sou mais velha que o SUS. Ainda sou do período do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] e lembro das restrições de acesso, o quanto era difícil mesmo para mim que constava na carteira de trabalho de meu pai”. O relato de Altamira Simões, psicóloga, conselheira nacional de saúde e representante da Rede Lai Lai Apejo, revela o que era a regra no Brasil pré-SUS: só havia assistência médica aos trabalhadores que contribuíam com a Previdência Social, o que excluía uma parcela considerável da sociedade brasileira. “Não era para todo mundo”, resume Altamira. Além do acesso restrito para a população, antes do SUS, diversas políticas sequer existiam, como a gestão pública de hemocentros e bancos de sangue, o Sistema Nacional de Transplantes e a Estratégia Saúde da Família.
O amor pelo SUS transformou Altamira em uma militante da saúde pública, colocando o direito à saúde ao lado de outras pautas, como a luta antirracista, o enfrentamento à violência contra a mulher e o movimento antiproibicionista. “A minha experiência pessoal com o SUS está muito ligada ao fato de eu ser uma mulher preta, de Candomblé, lésbica, e poder encontrar em alguns profissionais o acolhimento dessas múltiplas identidades que eu possuo e me atenderem conforme essas especificidades”, narra. Para ela, defender o SUS é lutar pelo bem-viver de toda a população brasileira, “sobretudo as populações que estão à margem da política e do pensar de gestores e gestoras a que hoje estamos submetidos nesse país”.
Na visão de Altamira, que é também coordenadora da Comissão Intersetorial de Políticas de Promoção da Equidade (Cippe) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS é a grande conquista do povo brasileiro. “O SUS é resultado da luta do movimento sanitarista, do movimento negro e de mulheres, enfim, de todos os movimentos sociais que atuavam a favor de uma saúde que trouxesse princípios como equidade, integralidade e universalidade, para que todas as pessoas tivessem acesso a uma saúde pública de qualidade”, aponta. Segundo ela, uma das principais conquistas do SUS foi a implementação de políticas de saúde para grupos populacionais específicos que vivem situações de vulnerabilidade, como a população negra, as mulheres, os povos indígenas e as pessoas LGBTQI+ — no entanto, essas iniciativas vêm perdendo espaço com o desmonte na saúde. “De 2016 para cá, a saúde pública tem sofrido o desfinanciamento e isso gera redução de equipes de Saúde da Família e o esvaziamento da Política Nacional de Atenção Básica, que é a porta de entrada para a população mais carente”, avalia.
A conselheira ressalta que a atenção básica, por estar inserida em territórios com inúmeras ausências de políticas públicas e à margem da gestão, tem um papel importante na inclusão das pessoas que procuram esse serviço — em sua maioria, pobres e negros. “Quando a gente se vê diante da intenção de privatizar esse espaço, isso significa tirar esse equipamento de territórios vulnerabilizados e ficar ainda mais distante da população, que vai precisar de um transporte para buscar o serviço longe de sua moradia”, aponta. A redução de equipes no território, segundo Altamira, tem inviabilizado que famílias tenham assistência à saúde. “A gente vê o resultado no alto índice de contaminação e óbitos na pandemia. A população negra está entre as maiores vítimas da infecção”, analisa.
A luta em defesa do SUS também deve se somar ao combate ao racismo estrutural, na avaliação de Altamira. Segundo a conselheira, a forma como a população negra é acolhida nos serviços de saúde faz com que muitos não retornem para os cuidados de prevenção à saúde e só busquem assistência em casos graves. “Nossos diagnósticos de diabetes e hipertensão são muito tardios. O mesmo para a doença de Chagas, que é muito prevalente na população negra. No próprio pré-natal, enquanto as mulheres brancas conseguem fazer até oito consultas, as mulheres negras têm no máximo cinco, o que é insuficiente para acompanhar uma pessoa que vem com vários acúmulos e reflexos do racismo em sua vida”, pontua. Inserir a luta antirracista na defesa do SUS é garantir vida para todo mundo. “Não são apenas as balas que nos matam. O silenciamento nos mata, assim como a impossibilidade de acessar a política e os espaços de controle social”.
Entusiasta e apaixonada pela saúde pública, ela enfatiza que a defesa do SUS não pode ser uma pauta exclusiva dos profissionais de saúde. O segredo para virar o jogo talvez esteja em incentivar a sociedade a vestir a camisa do SUS. “Defender a saúde é uma agenda única da população. Nesse período da pandemia, a gente vê como esse olhar sobre a saúde foi ampliado. Todo mundo começou a debater e visibilizar suas vozes na defesa da saúde”, ressalta a psicóloga, que lembra a importância de levar a bandeira do SUS para quilombos, aldeias indígenas e acampamentos ciganos. “Que se abram espaços para que as pessoas que utilizam o sistema de saúde e estão na base possam ser escuta
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