– Sou estudante universitária e não tive a minha bolsa renovada. Sem renda mensal e com minha mãe desempregada, comecei a fazer entregas. Eu não nutria nenhuma ilusão de ser empreendedora com isso, mas achei que fosse receber o suficiente para me sustentar. Imaginava que seria algo em torno de 40 reais por dia via aplicativo. Não é verdade. Eu fazia em média 15 reais, o que é muito pouco. E olha que tinha dias que eu pedalava até 50 quilômetros.
Tirza Ferreira, entregadora em Porto Alegre
Tirza Ferreira, 21 anos, é mineira, mas mora em Porto Alegre. Estudante de Pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz parte de um número cada vez maior de brasileiros que buscam alternativas de trabalho nas plataformas digitais – em 2019, eram quase quatro milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quando se viu sem os 400 reais mensais da assistência estudantil e preocupada com as contas em casa, Tirza não pensou duas vezes. Tirou a bicicleta speed da garagem e tentou cadastro nos serviços de delivery – ficou na lista de espera de um deles; não conseguiu completar a ficha no outro; foi aceita por um terceiro. Ignorou a condromalácea patelar [problema que gera um desgaste na cartilagem do joelho] e deu início à rotina de entregadora. No domingo em que Radis conversou com Tirza, a lesão havia se agravado por conta dos muitos quilômetros pedalados diariamente e ela estava há uma semana sem poder trabalhar. São dela os depoimentos que você vai ler ao longo desta reportagem.
Tirza não sabia que, para começar como entregadora de App, teria gastos. As plataformas digitais não se responsabilizam nem mesmo pelos custos das bags – aquelas caixas térmicas de cores chamativas que os entregadores carregam feito mochilas. Como precisou pagar 100 reais por uma usada, teve de adiar a compra do capacete, item que pode custar de 50 a 1.200 reais, dependendo do modelo. Só recentemente passou a circular com a proteção na cabeça – depois que usou as redes sociais para pedir um capacete emprestado, foi surpreendida com a doação do equipamento por uma desconhecida. Saía de casa pela manhã e trabalhava de seis a oito horas, seis dias por semana. Sabia reconhecer o cheiro de cada comida que levava nas costas, mas não recebia do aplicativo qualquer ajuda para alimentação. “Ou ficava com fome até voltar pra casa ou comprava algo bem barato para comer na rua”, disse. “Não temos nenhum direito ou qualquer relação com o App. Você apenas abre a plataforma e fica ali, rodando na cidade, a espera de pedidos. Eu juro. É um desamparo absurdo”.
Foi contra essas condições e em busca de melhoria nas relações de trabalho que os entregadores iniciaram recentemente um movimento conhecido como “Breque dos Apps”, quando as redes sociais foram tomadas por relatos e imagens que alertavam para a precariedade de suas rotinas em aplicativos como Ifood, Uber Eats e Rappi, para citar os principais serviços de entrega por aplicativo no país. A enxurrada de postagens funcionou como ensaio para os dois dias de paralisação nacional das atividades da categoria, que aconteceram em 1º e 25 de julho, com atos e protestos pelas ruas. Nos outros dias, os entregadores passaram a circular com slogans estampados nas bags e capacetes. “Nossas vidas valem mais que o lucro deles”, alertava um adesivo que acabou virando a síntese do movimento. “Arriscando a minha vida para matar a sua fome – e a minha!”, dizia outro.
A mobilização por direitos acontece em plena pandemia de covid-19, momento em que houve um crescimento no número de entregadores, quando os pedidos em domicílio ficaram mais frequentes e a atividade assumiu um papel essencial no auxílio à quarentena nas grandes cidades. Toda a articulação nas redes fez com que as hashtags #brequedosapps, #grevedosapps e #grevedosentregadores estivessem entre os cinco assuntos mais comentados do Twitter em alguns dias do mês de julho. Mas não foi só isso. Acabou chamando a atenção para um fenômeno ainda mais complexo que já atinge inúmeras outras categorias e recebeu a sugestiva denominação de “uberização do trabalho” – numa referência ao aplicativo de transporte Uber, um dos pioneiros desse modelo que, apoiado nas tecnologias móveis, se caracteriza pela ausência de vínculo empregatício e cujos riscos e custos das atividades ficam a cargo do trabalhador.
Do lado dos aplicativos, o argumento é que as plataformas apenas intermediam a ligação entre os clientes e aqueles que fornecem o serviço e que funcionam antes como parceiros das categorias. Já os trabalhadores reclamam das condições desiguais que se manifestam em gestões pouco transparentes, nas baixas taxas de remuneração e na falta de segurança e proteção que, segundo afirmam, teriam ficado ainda piores com a covid-19 à espreita.
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Márcia Teixeira explica que a relação desses trabalhadores com os aplicativos é baseada no conceito de “parceria”. “O trabalhador assina um ‘termo de uso’, não um contrato de trabalho”, diz. “Isso é novo e foge do enquadramento legal de uma relação de trabalho, o que acarreta inúmeros problemas e provavelmente aumenta a exploração”.
A pesquisadora integra um grupo de pesquisa que discute as condições de saúde e trabalho em plataformas digitais e, desde o ano passado, vem investigando mais detalhadamente a situação de motoristas e entregadores de aplicativos. Para dar uma ideia da precariedade desse modelo, Márcia destaca o caso dos motoristas, cuja regulação do trabalho por App até bem pouco tempo ainda tinha base na mobilidade urbana. “Ou seja, era a Lei de Trânsito que abrigava esse assunto, que só recentemente vem sendo tratado como uma questão trabalhista”. Mal resolvida do ponto de vista jurídico, a parceria isenta a empresa de responsabilidades e abre brechas que deixam o trabalhador muito vulnerável, aponta Márcia, acrescentando que o processo de trabalho por plataforma digital gerenciado por algoritmo está presente nas mais diferentes áreas – ultimamente, até na medicina, com serviços de atendimento domiciliar também chamados de “uber da medicina”.
Para Renato Bonfatti, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Fiocruz), que também integra o grupo da pesquisa, esse modelo de organização é “nefasto” por representar novas e radicais formas de expropriação do trabalho. “Você coloca nas costas do trabalhador o peso de arcar com o ônus tanto dos meios de produção como dos riscos do trabalho, sem nenhum tipo de proteção”. Assim, cabe ao entregador de aplicativo, por exemplo, se responsabilizar por equipamentos como bicicleta, mochila e celular. “Mas se um ciclista se acidenta”, continua Renato, “ele não tem seguro de acidente nem nenhuma forma de garantia trabalhista, direitos conquistados historicamente, a duras penas, no país”. Segundo Renato, tudo se torna ainda mais grave com o gerenciamento dos serviços feito por meio de uma plataforma “de maneira impessoal e autoritária, embora com disfarces de diálogo”.
Uma parceria assimétrica
– Conversei com um senhor de 50 anos que foi demitido do trabalho onde tinha carteira assinada e, depois disso, entrou para um aplicativo. Ele me disse que pedalava 100 quilômetros por dia, que já tinha conquistado a categoria Diamante [a mais alta na escala de um dos aplicativos, acima dos níveis Ouro e Platina] e que nós, a gurizada, reclamamos porque não queremos nada com nada. Ele estava achando bom o trabalho, me falou que recebe muitos pedidos, só faz entrega em bairro de gente rica e que o App sempre lhe dá retornos.
Com um misto de tristeza e frustração, Tirza conta à Radis a conversa que teve com um colega entregador. Para ela, a categoria reúne muita gente que ainda “compra o discurso” de que, ao entrar para um aplicativo, o sujeito se transforma em empreendedor, com total controle sobre a jornada de trabalho e remuneração certa ao fim do mês. “Mas não é bem assim”, sustenta. Da forma como acontece hoje, em meio à informalização extrema, ela não vê como esse modelo pode ser considerado um bom negócio para o trabalhador. “O que acontece é que o processo é tão complexo que a precarização acaba sendo naturalizada”. No caso do seu interlocutor, ela lamenta que, aos 50 anos e sem nenhuma perspectiva de aposentadoria, ele tenha que pedalar sete quilômetros para ganhar quatro reais e ache que “isso tudo é normal”.
Com quase o dobro da idade de Tirza, o moço não quis ouvir seus argumentos. “Gostaria de dizer a ele que ele estava reproduzindo algo entranhado na sociedade, como se, pelo fato de pedalar muito, merecesse ter uma relação diferenciada com a empresa”. Nos aplicativos, o trabalhador obedece a um sistema de pontuação que funciona basicamente em círculo: quem faz mais entregas, recebe mais pontos; e quem recebe mais pontos, tem mais entregas a fazer. “Para quem está começando, é muito difícil”, constata Tirza. “Às vezes, a gente fica o dia inteiro e não recebe pedidos”. Além disso, para pontuar mais é preciso estar disposto a trabalhar todos os dias. “Sem folga”, ressalta. “Se por algum motivo você para um ou dois dias, pode ter certeza que, no terceiro, nem vai receber pedido”.
Durante a pesquisa “Saúde e Direitos dos Trabalhadores em Tempos de Plataformas Digitais: um olhar sobre a atividade” – feita em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e cujos resultados ainda estão em análise –, os pesquisadores da Fiocruz identificaram vários dos problemas apontados por Tirza. É o caso justamente do sistema de pontuação e ranqueamento. “Aqueles entregadores mais cascudos, como eles chamam na gíria, recebem mais pedidos nos horários de pico. Os novatos, que não estão acostumados com os processos de trabalho, são agraciados nos horários de menos pico, quando a demanda é menor”, completa Renato. Formação, não há nenhuma. São os próprios entregadores que constituem grupos informais e por meio das redes sociais dão dicas e trocam informações entre si, explica ainda a pesquisadora Letícia Masson, também do Cesteh/Fiocruz e integrante do grupo de pesquisa.
“Há ainda os bloqueios aleatórios e autoritários e até a eliminação de motoristas e entregadores sem justificativas”, explica Letícia. Por meio do gerenciamento de dados, o algoritmo permite que a empresa monitore os percursos e controle os indicadores diários de cada motorista ou entregador. Se for verificada alguma alteração no padrão, eles podem aplicar o que chamam de ‘castigo’, deixando os trabalhadores sem receber nenhuma corrida por até 12 horas, continua Letícia. “Além disso, tem o chamado ‘bloqueio branco’, que não é um bloqueio declarado, mas quando o trabalhador simplesmente não consegue acessar a plataforma”. Ela cita o conceito de “autogerenciamento subordinado”, da socióloga Ludmila Costhek Abilio, uma especialista no assunto. “Significa que, até certo ponto, o trabalhador consegue fazer o gerenciamento de suas atividades na medida em que ele tem a possibilidade de escolher em que horário vai trabalhar, se aluga ou compra um veículo”, explica. “Mas na verdade ele está subordinado a essa empresa, com quem teria uma suposta relação de parceria, por meio de inúmeras formas de manipulação”.
Para a pesquisadora do Cesteh/Fiocruz, Simone Oliveira, uma outra estudiosa do tema, a relação que se estabelece entre empresa/aplicativos e trabalhadores trata-se de uma “parceria desigual e assimétrica”, que se manifesta também no recurso do “preço dinâmico” – uma outra estratégia das plataformas. “De repente, os trabalhadores são estimulados a se dirigir para um determinado local, como se o preço estivesse mais alto naquele perímetro e, consequentemente, eles fossem ter direito a tarifas mais altas, mas na realidade, isso não acontece”, afirma. Ela lamenta que estes sejam elementos que ainda não ficaram claros para muitos. No grupo de trabalhadores de aplicativos que respondeu ao questionário para a pesquisa, ainda no ano passado, Simone identificou que a relação entre aqueles que consideravam o trabalho por aplicativo uma forma de empreendedorismo e aqueles que viam a atividade apenas como uma alternativa de trabalho – ou como a única possível numa realidade de mercado em retração – manteve-se meio a meio.
Com o movimento dos entregadores ganhando força nos últimos tempos, a pesquisadora acredita que há algo de novo se desenhando. “Há muito desconforto e insatisfação na categoria, mas também uma maior clareza do que acontece nessa relação com as plataformas”, diz. Todos esses pontos destacados pelos pesquisadores estavam na pauta de reivindicações do “Breque dos Apps” – movimento que nasceu de forma espontânea em um perfil no Instagram denominado Treta no Trampo que, no final de julho, contava com cerca de 30 mil seguidores. Na pauta dos protestos, estavam: remuneração maior por serviço, seguro em caso de roubo, acidente e morte, auxílio-saúde dentro e fora da pandemia (com liberação de Equipamentos de Proteção Individual – EPIs) e ainda o fim das retaliações e dos bloqueios indevidos. Nos dias de paralisação, os entregadores também orientavam os clientes a não fazer pedidos, avaliar negativamente os aplicativos e ajudar a compartilhar e repercutir notícias sobre a greve.
Na véspera da primeira paralisação, o programa “Resenha Trabalhista” (30/6), transmitido pelo YouTube, quis saber “pelo que lutam os entregadores e o que temos com isso”. A live contou com a participação do procurador do Ministério Público do Trabalho e professor da UFRJ, Rodrigo Carelli, que chamou de “realidade moranguinho” a percepção romantizada de que o trabalho por plataformas digitais é um mundo de maravilhas e a redenção para todos os males da classe trabalhadora. “A plataforma aparece como um senhor Deus que dá as ordens e, ao mesmo tempo, torna invisível quem o desenhou e o modifica, ou seja, quem realmente determina e explora as condições de trabalho”, sintetizou. Para Rodrigo, aqueles que se vangloriam da condição de ter um algoritmo como patrão, esquecem que o algoritmo é, “no máximo, o capataz, o supervisor do trabalho alheio”. “No fim das contas, quem controla as plataformas são empresários que têm nome e rosto”.
Ao analisar a questão para a Radis, o pesquisador da Fiocruz Renato Bonfatti reitera que o gerenciamento dos trabalhos por algoritmo é feito sistematicamente e que isso só é pouco percebido por conta da natureza “opaca” da relação entre plataforma e trabalhadores. “Uma relação que só existe enquanto inexistente”, elabora. Dessa maneira, o trabalhador não apenas trabalha para um patrão, mas o faz para um patrão que concentra poderes. “Um patrão onipotente e onipresente”, resume Renato. Para Márcia Teixeira, trata-se de um novo patamar de precarização que atualiza o conceito clássico do termo. “Agora, você perde direitos trabalhistas. Ou seja, chegou-se a um modelo de trabalho em que nem sequer a relação de trabalho é reconhecida”.
Na saúde e na doença?
– Se a gente pega coronavírus agora na pandemia, para ter direito a algum auxílio-doença, tem que tem feito uma quantidade “x” de entregas durante um determinado período de tempo. O mesmo acontece em relação a outras doenças. Se sofre um acidente, a mesma coisa. Tem que cumprir vários requisitos para conseguir o suporte. São vários entraves. Eu conheço pelo menos um caso, de um entregador que sofreu um acidente fazendo uma entrega e que cumpria todos os requisitos, mas simplesmente ignoraram e ele foi bloqueado da plataforma permanentemente. É surreal. Os caras acham que a gente é só um lixo descartável.
Com o problema no joelho, Tirza suspendeu as entregas. Ela conta que não recebeu qualquer auxílio nem mesmo para os anitiinflamatórios. “Eles nem sabem, eu acho. Não tem nenhum lugar para recorrer. Simplesmente, tive que parar. E daí, se você não trabalha, não recebe”. Antes disso, pedalava diariamente, apesar do frio de 5 graus do inverno de Porto Alegre e do medo do novo coronavírus, principalmente porque mora com a mãe hipertensa. Como pedalava de máscara – “meu Deus, é horrível!” –, muitas vezes precisava tirar o equipamento do rosto para conseguir respirar, sem contar as vezes em que era recebida por clientes mais relaxados, que não usavam nenhuma proteção. “Eu me sentia superculpada, mas como é que conseguiria me cuidar pedalando no meio de uma pandemia?”, indaga sem esperar uma resposta. “Parece que a gente está vivendo em um universo paralelo: todo mundo tentando ficar em casa e a gente, na rua. É difícil até de explicar. É só como se nada estivesse acontecendo”.
À Radis, os pesquisadores da Fiocruz apontaram as doenças mais comuns e as principais queixas relativas à saúde que têm identificado ao longo da pesquisa. Entre os entregadores, é quase unânime a preocupação com os riscos de acidente. “Se você pensar na bicicleta, principalmente, há a fadiga física relacionada às longas jornadas. É esfalfante ficar acima de oito horas pedalando, como muitos ficam”, diz Renato, considerando ainda o agravante da pandemia, quando o nível de exposição aos riscos aumenta. “Os entregadores ainda carregam uma certa ambiguidade. Ao mesmo tempo em que são necessários e até considerados essenciais, também são potenciais vetores de transmissão do vírus”.
Simone Oliveira chama a atenção para os riscos emocionais e fatores psicossociais que esse tipo de atividade impõe. Como os trabalhadores de aplicativos trabalham com metas que precisam atingir para serem melhor avaliados, o nível de autoexigência é altíssimo, ela comenta. “Com a possibilidade de poucas corridas, muitas vezes eles acabam ultrapassando o limite do suportável”. A pesquisadora cita relatos de motoristas que estão trabalhando acima dessa margem de segurança e por isso não dormem nem se alimentam direito, o que coloca em risco não só a sua saúde como também a dos próprios passageiros. “O ritmo de trabalho e a exigência para alcançar uma qualidade cada vez mais elevado também gera problemas de saúde como ansiedade e depressão”.
Já Márcia lembra de muitos relatos relacionados ao medo da violência e insegurança das ruas – algo também muito mencionado tanto por entregadores quanto motoristas. Além disso, ela cita problemas de colunas agravados pelo tempo de permanência na direção. “Em São Paulo, é comum motoristas até dormirem no carro por dois ou três dias seguidos”. Ela lembra o caso de um trabalhador que contou ter praticado esportes a vida inteira, mas que, desde que começou a dirigir para aplicativos, desenvolveu problemas de coluna. “Certa vez, ele precisou ser retirado de dentro do veículo sem conseguir se mexer”.
Um levantamento realizado com 252 pessoas em 26 cidades brasileiras, em abril, pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir) demonstrou que trabalhadores de aplicativos têm ganhado menos e trabalhado mais: 60,3% dos entrevistados relataram uma queda na remuneração, comparando o período de pandemia ao momento anterior; e mais da metade deles (56,4%) disseram trabalhar nove horas ou mais por dia (Veja pesquisa completa aqui: https://bit.ly/30DDmmx). “Conversei com um motorista que cozinha seis ovos para ir comendo ao longo do dia porque precisa conseguir trabalhar 14 horas sem parar”, relata Márcia.
As pessoas por trás dos capacetes
– Como em qualquer relação de prestação de serviço, acho que ainda existe muito a noção de que o prestador de serviço é um ser inferior. É surreal. Às vezes, a gente vai fazer entrega e não recebe nem um “boa tarde!”, um “boa noite!” ou um “muito obrigada!”. Ou seja, não recebe o mínimo. E tudo piora ainda mais porque sou mulher. Uma vez, ouvi de um cara: “Ah, se eu soubesse que era mulher, teria dado gorjeta”.
Imagine ouvir essa fala de alguém que, em seguida, vai lhe atribuir uma nota, levando em conta, entre outros critérios, sua postura e profissionalismo durante a entrega. Quando aconteceu com Tirza, foi constrangedor, ela conta. Ficou em silêncio, sentindo-se refém de uma situação que não lhe dava muitas opções. “A gente não sabe o que fazer. Minha vontade era dar uma resposta dura, mas ia ganhar uma avaliação ruim e, se isso acontecesse, ficaria sem receber pedido por conta da suspensão que a gente recebe da plataforma no caso de notas baixas”, justifica. “Mas esse tipo de assédio ou comentário indevido acaba nos abalando e tornando o trampo mais degradante do que já é”.
Quando percebeu que, além de tudo, o aplicativo não lhe garantiria renda suficiente, Tirza passou a fazer entregas também por conta própria em contato direto com os clientes e para restaurantes por fora dos Apps. Segundo ela, nesses casos, a relação tem sido pautada por mais respeito, e os valores das corridas são incomparavelmente maiores. Fazendo cálculos, explica que há maior liberdade na definição dos preços por quilometragem. “Além disso, alguns restaurantes tem um valor fixo por entrega, o que significa que, ainda que a distância percorrida seja pequena, você ganha o mesmo valor das distâncias maiores”. Numa dessa, já recebeu 12 reais de uma pizzaria por pedalar apenas dois quilômetros, considerado um valor alto para entregas – algo que não acontece nos aplicativos, quando até metade da taxa paga pelo cliente fica para as plataformas.
Durante o programa Resenha Trabalhista (30/6) no YouTube, o procurador Rodrigo Carelli quis saber do outro participante da live se os entregadores têm consciência dos instrumentos de controle utilizados pelas plataformas. Seu interlocutor era Paulo Lima, mais conhecido como Galo, o nome à frente do “Movimento dos Entregadores Antifascistas”, que se soma ao “Breque dos Apps” na luta por direitos. “Ainda há quem ache que a gente faz nossos próprios horários. Quem faz nossos próprios horários é a nossa dívida”, respondeu ele. “Para pagar minhas dívidas, eu vou trabalhar até 16 horas, se for preciso. O capitalismo não existe sem dívida”. O moço de 31 anos, que comprou uma moto para fazer o trabalho e ainda estava pagando as prestações quando foi bloqueado dos aplicativos, afirma que trabalhadores por aplicativo são descartáveis. “Não se engane: a Revolução Industrial suprimiu empregos. A uberização vai suprimir direitos”, disse ainda durante a live, repetindo o que vem afirmando nas dezenas de entrevistas concedidas na imprensa.
Galo se tornou conhecido depois de participar dos protestos antirracistas e antifascistas que aconteceram no país início de junho (7/6). Organizados inicialmente por torcidas de futebol para defender a democracia, os atos acabaram reunindo dezenas de entregadores, personagens marcantes em um país com um número cada vez maior de desempregados – entre março e maio, 7,8 milhões de pessoas perderam seus trabalhos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Durante manifestação no Largo da Batata, em São Paulo, Galo fez uma fala firme para denunciar a precarização de seu trabalho. O vídeo viralizou. Começava ali uma das frentes do movimento dos entregadores que hoje conta com integrantes em diversas regiões do país. Tirza Ferreira é uma delas. “Não fazia sentido ficar de fora de um movimento que luta por melhores condições de trabalho de uma categoria que faço parte”.
Há diferenças entre o “Breque dos Apps” e os “Entregadores Antifascistas”? Tirza diz que sim. Embora ambos batalhem por uma causa comum, os primeiros defendem uma pauta específica e a melhoria imediata nas condições de trabalho, como detalhado nas reivindicações para os dias de greve. “Enquanto isso, nós do ‘Movimento de Entregadores Antifascistas’ entendemos que esses aplicativos são uma ferramenta de exploração que acontece dentro da lógica do sistema capitalista e isso é importante ser pontuado”, comenta Tirza. Para Galo, o que está em jogo é também uma disputa ideológica. “O que une todos nós, entregadores, é um sofrimento comum. Mas é preciso ir além e valorizar a luta histórica e as conquistas daqueles que vieram antes de nós”.
Seja como for, se os movimentos de julho não chegaram a paralisar totalmente os Apps e também evidenciaram algumas divergências dentro da própria categoria, eles colocaram a luta dos trabalhadores em evidência, mobilizaram a opinião pública e conquistaram avanços. Na Câmara dos Deputados, há pelo menos quatro projetos de lei em tramitação que tratam exatamente dos direitos desses profissionais. No Rio de Janeiro, o Movimento dos Entregadores Antifascista criou o “Despatronados”, uma página na web que se apresenta como feita “por entregadores/as
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