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Brasil, março de 2022. Faz exatos dois anos que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a covid-19 uma pandemia. Naquela quarta-feira (11/3/2020), mais de 115 países tinham constatado casos de infecção pelo novo coronavírus e uma tragédia sanitária estava apenas começando. Não era a notícia que Radis gostaria de ter dado. Muito mais encorajador foi comunicar que a vacina chegou ao braço da primeira brasileira em 17 de janeiro de 2021. Agora, convidamos nossos leitores para escrever cartas a um mundo em transição. Há sempre algo a ser dito. Para um amigo que mora em outro país, uma amiga de trabalho que perdeu a mãe, aos pais, ao filho que ainda não nasceu ou aquele que dividiu com a mãe a dura rotina de uma quarentena prolongada por meses. À Maria, trabalhadora responsável pela limpeza em um hospital do Sistema Único de Saúde. Para a senhora História, no futuro, ou para o ilustríssimo senhor Oswaldo Gonçalves Cruz, que nos anos 1900 já anunciava que vacinas salvam vidas. Destas correspondências, somos todos destinatários.

“Não era uma gripezinha, Eduardo!”

Belém, PA, 26 de fevereiro de 2020

Olá, Eduardo,
Como estão as coisas por aí, com a covid, meu irmão?

Por aqui, a covid-19 chegou em março de 2020. No início, começaram a dizer que seria uma gripezinha. Não teríamos problemas sérios no Brasil. No estado do Pará, pensou-se, essa doença seria ainda mais inofensiva. Estamos acostumados com os vírus vindos da floresta tropical e úmida que cerca as cidades. Mas logo apareceram os primeiros casos. Meu tio Raimundo, homem forte, negro, de 65 anos, que conheceste no Círio, foi levado às pressas ao hospital, no início de abril. Não havia leito. Ele morreu no carro na porta do hospital, sem conseguir respirar, esperando atendimento.

Como deves lembrar, meu tio era da comunidade quilombola do Caeté, no município de Moju. Os quilombolas de lá fecharam todas as entradas da comunidade. Tentei visitar uma prima. Não pude. A estratégia de se isolar não funcionou. Como eles têm de comercializar a produção da farinha, o açaí, comprar alimentos, muitos foram infectados nas cidades próximas e trouxeram o vírus para suas casas. E, como nas comunidades tradicionais as sociabilidades são intensas, a propagação do vírus foi rápida. Se as perdas foram poucas, muito significativas foram para as famílias.

Eduardo, a doença chegou também à casa da minha mãe. Meu irmão gripou. Minha mãe logo adoeceu também. Minha irmã, a mais forte, teve manifestações leves. Meu irmão teve falta de ar séria. Não havia hospital. Não havia remédios na farmácia. Mamãe, religiosa, intensificou as orações, era o que restava a fazer naquele momento. O comércio, as escolas e os bares começaram a ser fechados pelo governo, para que o vírus não circulasse. Na casa da mamãe, o quadro piorou, meus sobrinhos foram infectados, e aí a preocupação aumentou.

No início de abril, comecei a sentir febre. Pensei, nada sério, minha temperatura não passava de 37 graus. Pedi para minha esposa, Nádia Fernandes, sair de casa. Disse-lhe que fosse para a casa da mãe dela e lá ficasse. Não sabia em que estado me deixaria a doença. Não queria que morrêssemos juntos. Ela se negou. Brigamos. Ela entristeceu-se porque somos muito grudados, e eu não a queria nem perto de mim. Não deixava que se aproximasse. Começamos a nos separar até na hora das refeições. Nunca fiquei tão triste por não poder ficar perto de quem amo. Falei, certa vez, áspero com ela, para convencê-la a sair de casa: “Não quero que faça nada para mim, quero que vá embora, que suma desta casa!” Ela chorou e, mais uma vez, recusou-se a sair. Logo foi infectada com o vírus também. Começou a ter febre. Os sintomas foram leves, mas fiquei apreensivo. Toda hora pensava que ela pioraria e morreria.

Eu, com o passar dos dias, comecei a ter febre alta, falta de ar. Numa tarde, estava mal, peguei o carro, mesmo sem respirar direito, fui ao médico. Ele mandou fazer exames. Depois concluiu que eu precisava ser internado. Não havia leito, então me mandou para casa, como se dissesse: “Vá e morra entre os seus”. Eu e Nádia fomos a todos os hospitais de Belém, estavam lotados. Chegamos uma hora da manhã em casa. Minha respiração, cada vez pior. Nádia estava ao meu lado, sem medo, sem máscara e sem álcool. Eu, sem respirar direito, ela se deitou ao meu lado, me acariciou, pediu calma, então choramos. Pensei em meu filho. Não queria deixar, naquele momento, os meus amores. Amanheci ainda com a respiração ofegante, mas com menos medo, com menos certeza do fim.

Com o passar dos dias, melhorei. Nádia recuperou-se antes de mim. Diante da morte, da incerteza, ela não saiu do meu lado. Tenho certeza de que ela não foi a única a agir assim no mundo. Muitas mulheres e homens colocaram seus sentimentos acima de suas próprias vidas.

É isso, meu amigo! Espero vê-lo logo.

Abraços,
Luís

Luís Fernando Cardoso é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). Suas origens estão nas comunidades quilombolas, de onde saiu aos 9 anos para estudar em Belém. A carta destina-se a Eduardo Rivail Ribeiro, linguista, que vive nos Estados Unidos.

Radis 212 - Nós, os vulneráveis - Moradias precárias, desrespeito a direitos básicos e ausência de proteção social: medidas contra a covid-19 esbarram em realidades marcadas pela desigualdade

Nós, os vulneráveis

Desde o início da pandemia de covid-19, os desafios para a prevenção e o controle revelaram-se imensos. Em um cenário de desigualdades, medidas como uso de máscaras e álcool em gel, higienização das mãos e mesmo a recomendação para ficar em casa esbarravam em realidades em que não havia sequer água tratada ou saneamento. Nossa reportagem de capa, ainda em maio de 2020, quando as dúvidas eram muito maiores do que as respostas, discutia os obstáculos para moradores de favela e periferia, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pessoas em situação de rua, refugiados, trabalhadores informais e outros grupos que, diante das dificuldades de acesso a direitos básicos como saúde, emprego e moradia, se tornavam ainda mais vulneráveis. Leia aqui: https://bit.ly/3HQ5gPu

“Recordações da linha de frente”

Rio Claro, RJ, 20 de fevereiro de 2022

Queridos pais, noiva, filhos e amigos,

Escrevo esta carta para lembrar o quanto foram difíceis os dias de pandemia de covid-19, causada pelo novo coronavírus, e que nos trouxe muitos momentos de aflição, angústia e ansiedade, entre outros sentimentos. Acho que o medo foi pior de todos. Enquanto atuava na linha de frente, quando apareciam alguns sintomas gripais, meu pensamento só ia ao encontro dos seguintes questionamentos: Será que é covid ou não? E se for? Como será que o meu corpo vai reagir? Será que infectei algum dos meus familiares?

Essas foram as inquietações que senti a cada vez que me vi exposto ao vírus, quando cuidava de algum paciente com o diagnóstico suspeito e/ou positivo para a doença. Mas, mesmo com medo e com todas essas aflições, tive que me manter forte para fazer o melhor para a saúde da população do meu município. Enquanto nós, profissionais da saúde que atuamos na linha de frente, assistíamos a cada dia pacientes perderem a sua vida para essa doença extremamente devastadora e de curso rápido, ficávamos ainda mais assustados.

Foram dias difíceis, com a esperança de ter uma vacina para que todos fossem imunizados e pudéssemos superar esse momento obscuro pelo qual o país e o mundo estão passando. Foi quando a vacina Coronavac foi aprovada pela Anvisa para o uso emergencial que aquele sentimento de alívio começou a surgir aos poucos, com a divulgação de cada notícia. Quando ajudei a receber o primeiro lote de vacinas, e fui um dos primeiros profissionais de saúde a receber a primeira dose, foi difícil esconder as lágrimas de alegria.

Talvez vocês não entendam o motivo dessas lágrimas, mas eram uma mistura de alívio, de dor e de revolta. Por causa do negacionismo, perdemos amigos, familiares e conhecidos para a covid-19. Mas esse momento também me deu o conforto de saber que eu estaria imunizado, ainda que atuando na linha de frente, e me deu a certeza de que em algum momento vocês também estariam.

Em outros momentos, quando me deparei com o diagnóstico positivo, uma série de preocupações surgiram na mente. No decorrer do isolamento, me deparei com o agravamento do quadro, quando constatei a queda da saturação; a preocupação aumentou, o que me fez procurar novamente o atendimento. Após a avaliação, a observação e o olhar crítico do médico, soube que estava tudo normal. Foram inúmeros sentimentos misturados naquele momento, mas o alívio em saber que estava tudo bem foi o maior de todos.

Depois de todos esses dias de pandemia ainda temos todas as preocupações em relação às novas variantes e ao andamento da campanha de vacinação, mas principalmente em relação às crianças. Minha maior preocupação é com os meus filhos. Sigo lutando por vocês, por mim e por todos que necessitam e carecem de uma melhor assistência em saúde. Vivemos esperando por dias melhores!

Rafael

Rafael Francisco Teixeira é enfermeiro e coordenador de Vigilância Epidemiológica na Secretaria Municipal de Saúde de Rio Claro (RJ). Filho de José Maria Teixeira e Nircéia Aparecida Francisco Teixeira, é noivo de Kélita Jorge de Oliveira, pai da Maria Flor e de gêmeos que estão a caminho.

Radis 213 -  Trabalho humano - Na linha de frente no combate à covid-19, profissionais de saúde revelam rotinas em que enfrentam incertezas, solidão, riscos e trabalho exaustivo

Trabalho humano

Nenhuma palavra parecia suficiente para agradecer aos trabalhadores da saúde, que se desdobravam incansáveis na linha de frente do combate à covid-19. Nós tentamos. Em mais de uma edição, trouxemos reportagens que revelavam as rotinas de incerteza, solidão, risco e muito cuidado com o outro, por meio de relatos e testemunhos. Era uma maneira de dizer muito obrigado a médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde e da vigilância sanitária — e também maqueiros, técnicos de raio-X, analistas de laboratório, recepcionistas, pessoal das áreas de limpeza, recepção e segurança, trabalhadores e trabalhadoras do SUS. Leia aqui: https://bit. ly/3hNykwO

Dose de esperança

Radis 216 - A corrida pela vacina - O longo caminho da ciência para a vacina contra a covid-19 chegar até você

Enfim, a esperança. A primeira dose de vacina contra a covid-19, no Brasil, foi aplicada na enfermeira Mônica Calazans, em 17 de janeiro de 2021. De lá para cá, o país assistiu ao esforço dos profissionais de saúde para que a imunização chegasse a todos — como mostraram as imagens enviadas por nossos leitores e publicadas na edição de abril de 2021. Em nossa cobertura ao longo destes dois anos, mostramos o caminho da ciência até a chegada do imunizante; escutamos os apelos de médicos, cientistas, pesquisadores contra o movimento antivacina e o tratamento precoce; e acompanhamos os rumos da Comissão Parlamentar de Inquérito que pediu o indiciamento de 78 pessoas e duas empresas. Contra todo o negacionismo e a despeito das omissões oficiais no enfrentamento da covid-19, chegamos a março de 2022 com cerca de 75% dos brasileiros totalmente imunizados (com duas doses ou dose única), enquanto segue a aplicação das doses de reforço. Confira reportagem de fôlego publicada ainda em setembro de 2020 que explica o que estava em jogo na corrida pela vacina. Leia aqui: https://bit.ly/34kA9hs

“Para Oswaldo Cruz, com estima e consideração”

Fortaleza, CE, 6 de março de 2022

Ilmo. Senhor Doutor Oswaldo Gonçalves Cruz,

Espero que esta missiva o encontre bem, em raro momento de apaziguamento. Quem sabe te esquecendo de tua doença, enquanto aprecias as flores do solar da rua Montecaseros, que tanto te encantaram ao longo dos verões petropolitanos passados.

Escrevo-te do futuro para alcançá-lo após renunciares ao cargo de prefeito da antiga cidade imperial.

Especulo que, dada tua paixão pela fotografia, tenha se interessado pelos filmes dos irmãos Lumière em seus tempos de Paris. Pois, mais de 120 anos depois, vejo, em uma tela que transmite imagens, Petrópolis destruída por mais uma enchente, cujas trezentas mortes e estragos materiais eram evitáveis. Recordo a não implementação do teu ambicioso plano de urbanização e saneamento para a cidade. A nefrite te afastou da gestão municipal, não sem antes ouvires, como sempre, a gritaria dos infames, daqueles refratários às mudanças, dos que têm ojeriza ao novo e ao povo.

Doutor Cruz, estamos na terceira década do século 21, a Terra está esquentando a cada ano, eventos climáticos extremos se multiplicam. As consequências nefastas da falta de planificação urbana se concretizam periodicamente. Setores da sociedade continuam a vociferar justificativas fatalistas para as calamidades associadas aos fenômenos naturais e às epidemias. Sempre eximindo a humanidade e culpando os céus, autoridades se omitem. Esperam o próximo verão, não se sabe se pedindo a Deus que a última catástrofe tenha sido a derradeira. Até alguns pesquisadores, apesar das múltiplas evidências, refutam o que se tem chamado de aquecimento global.

Ficarás surpreso em saber que aqueles que negam a ciência se multiplicaram. Atualmente são alcunhados “negacionistas”. Não, professor Oswaldo Cruz, a ciência não triunfou completamente, como esperavas.

A Revolta da Vacina, de novembro de 1904, parece hoje um prenúncio. Embora a reação da população excluída à autoritária obrigatoriedade da imunização, cujos princípios eram desconhecidos da maioria naquele momento, fosse compreensível, não perderei a oportunidade, no entanto, de dizer que o senhor tinha razão. As vacinas viriam a ser a principal estratégia de controle das doenças transmissíveis no século 20. Também estavas certo ao tentar combinar ações específicas de prevenção para as diversas enfermidades infecciosas, com reformas urbanas que propiciassem melhores condições de vida.

Apesar dos enormes ganhos de saúde proporcionados pelas campanhas de imunização, o senhor ficará perplexo com a informação de que movimentos antivacina se expandem em todo o mundo e que ganharam impulso, veja só, durante a maior tragédia sociossanitária vivida pela humanidade. Vivemos uma terrível epidemia causada por um novo vírus respiratório que atravessou continentes, com quase 500 milhões de casos e 6 milhões de vítimas fatais registradas em todos os países.

O invento do seu patrício Santos Dumont vingou. Existem hoje meios de transporte que se deslocam voando, como o 14-bis provavelmente o fez antever, levando gente para toda parte em velocidade supersônica. Hoje no Brasil, amanhã poderás estar no Japão. Difícil de acreditar, eu sei. Mas esse intenso fluxo humano e o aumento das trocas comerciais consolidaram um processo que se chamou de globalização. A população mundial passa de 8 bilhões. As pessoas se movimentam rapidamente, carregando também, de um lado para o outro, os micro-organismos que tanto o fascinaram no começo da carreira.

Na vigência dessa emergência, profissionais de saúde da linha de frente do atendimento correram para se atualizar sobre as terapêuticas mais eficientes, epidemiologistas esforçaram- se para propor as melhores medidas de contenção, a partir de modelos que predissessem a evolução da epidemia nos vários países. Por outro lado, companhias farmacêuticas e institutos de saúde pública (como o que leva teu nome), desenvolveram, em colaboração, vacinas em tempo recorde, que se mostraram eficazes e seguras.

Por incrível que pareça, em outra frente, estavam governos, como o nosso, uma proporção importante de médicos (estranho, mas creia) e segmentos sociais que desacreditavam tanto as vacinas, quanto publicações relevantes e dados apresentados pelas instituições comprometidas com a ciência. Não muito diferente do que enfrentaste, utilizaram-se de mecanismos de desinformação. Propuseram o uso de fármacos ineficazes e ignoraram as recomendações, como o uso de máscaras e de se evitar aglomerações, que visavam desacelerar a transmissão.

Centenas de milhares de brasileiros perderam a vida, mas, quero crer, a ciência no fim das contas está prevalecendo. É um equilíbrio delicado que conhecestes bem. É uma luta que nos faz às vezes desesperançar. Mas está sendo travada, quero garantir. Parecida com a sua, mesmo que nos separem décadas, nessa contenda seguiremos nos agarrando ao paradigma científico, pela certeza de que, fora deste, a prática médica, principalmente, adentra um terreno pantanoso, onde vicejam as crenças.

Por fim, o que devia estar nas primeiras linhas. A razão da correspondência. Tampouco sei exatamente eu. Mas arrisco que seja um testemunho de agradecimento. Participando do combate à pandemia, vez em quando me ocorrem sua trajetória e dos pioneiros, desde meu conterrâneo Rodolfo Teófilo até seu amigo Carlos Chagas. A vocação pela obscuridade de uma parcela da sociedade, em meio às crises, sempre existirá. Quanto a nós outros, que agora somos tantos, nos cabe estar sempre por aqui, tentando clarear a caminhada.

Por favor aceite meus protestos de elevada estima e consideração,
Antonio

Antonio Silva Lima Neto é médico epidemiologista e professor do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor). Gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza, integra hoje o Comitê Estadual de Enfrentamento do Novo Coronavírus, no Ceará.

A negação dos fatos

Radis 223 - A negação dos fatos - Como o negacionismo atrabaplha a busca da humanidade por saúde e conhecimento
Como o negacionismo atrabaplha a busca da humanidade por saúde e conhecimento

Ao longo destes dois anos, ficou evidente o mal que o negacionismo pode causar à humanidade. Em nossas páginas, contamos muitas histórias de como a desinformação e postura anticiência confundem pessoas e prejudicam a busca por conhecimento. Como a do cientista que precisou andar com escolta armada depois de receber ameaças de morte por estar à frente de um estudo que indicou que a cloroquina não apenas era ineficaz contra a covid como poderia apresentar riscos aos pacientes infectados pelo novo coronavírus. O médico infectologista Marcos Vinicius de Lacerda, especialista em saúde pública do Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), foi um dos entrevistados para a reportagem “A bolha negacionista”, publicada em nossa edição de abril de 2021. Leia aqui: https://bit.ly/35XoJAx.

Entre amigas

Rio de janeiro, 28 de fevereiro de 2022

Minha amiga Paloma,

Ano de 2020 fomos pegos de surpresa por uma pandemia que até então estava só do outro lado do mundo. A gente entende, se preocupa, mas de longe. Até que chegou ao Brasil… Nós, profissionais da saúde, ficamos com medo, apreensivos, cheios de dúvidas, medo do que estava por vir, medo de morrer, de contaminar nossos familiares, um turbilhão de coisas. E chegou a nossa clínica. Quase todos fomos nos infectando, várias pessoas afastadas, familiares também infectados. Como agentes de saúde, tivemos nossas atividades praticamente paradas porque nosso trabalho de vigilância no território não podia ser feito, somente com os grupos prioritários. Ficávamos mais na clínica, empenhados em serviços internos. Mudou tudo.

Na verdade, nossas dúvidas eram as mesmas de quem acessava a unidade, só que nós tínhamos que estar aqui todos os dias, com medo mesmo. Eu encontrei uma forma de combater essa pandemia me envolvendo como voluntária em trabalhos sociais com os quais a clínica fazia parceria — um projeto chamado “Jaca contra o Corona”, que ajudou muitas famílias — e assim ia seguindo, me esquivando, confusa entre o que era certo ou errado em relação à pandemia. Vivendo um dia de cada vez. Muitas vezes, sendo parada nas ruas, sendo questionada por várias coisas, sobre vírus, auxílio emergencial, atendimento, muitas perguntas para as quais, às vezes, nem tinha respostas.

Mas ninguém de nós, da Anthidio, sentiu tanto quanto você, Paloma. Sua mãe adoeceu, quase todos da sua família, também. Lembro que foram dias tensos, porque ficávamos dando notícias uns dos outros no grupo, até aquele dia em que Dona Nete veio a clínica, chegando bem mal, e você, em casa, pois estava se recuperando do vírus, me mandando mensagem para dar um auxílio à sua irmã e perguntando como ela estava. Eu não sabia o que falar, não tinha coragem de responder. Sabia da gravidade que ela se encontrava. Até que o pior aconteceu. Perdemos uma paciente que todos nós conhecíamos, mãe de uma amiga. Olha, foi meu pior dia de 2020. Foi quando vi de perto o que o vírus era capaz de fazer a muitas pessoas.

Esse vírus me fez repensar muita coisa, sabe, e ser grata por tudo, porque em mim, ele passou quase batido. Na verdade, o intuito dessa carta, é relatar um pouco o que passei nesse período, e te dizer, Paloma, o quanto você foi forte, está sendo. Eu sei o quanto sua mãe faz falta. Mas siga em frente, seja forte e corajosa, pois vai dar tudo certo na sua vida. Deus é com você e sua mãe estará sempre presente. Espero que esse pesadelo chamado covid-19 esteja chegando ao fim. E que todos possamos viver tempos melhores. Isso é o que espero e desejo.

Um forte abraço, cheio de carinho, força e boas energias.

Da sua amiga,
Aline

P.S.: Ah, vacinas salvam vidas, sim!

Aline Reis é agente comunitária (ACS) da Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira, no Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. Filha de Gelcina Reis e Adilson Zacarias, é mãe das gêmeas Ana Luiza Reis e Ana Lara Reis — ou somente “minhas Anas”, como ela gosta de chamar.

Um novo luto

Aline Reis

O distanciamento do doente, a falta de acompanhamento em seus últimos dias de hospital, as restrições a velórios e enterros, a ausência dos rituais de despedidas e o cumprimento a todas as medidas sanitárias necessárias acabaram por alterar o processo de construção de sentidos em torno da compreensão da morte de um parente ou amigo próximo. “Estamos vivendo um novo luto?”, indagava-se a psicóloga Maria Helena Franco, uma das maiores referências em luto no país, numa entrevista à Radis em junho de 2020. Ela nos alertava de que vai haver um período de luto coletivo denso, “um sofrimento que talvez vá durar mais que a pandemia, porque necessita de um tempo de elaboração maior”. Segundo a psicóloga, o luto pela perda de uma pessoa amada é a experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais particular, desorganizadora e assustadora que o ser humano pode viver. “Mas ele existe para nos lembrar que, ainda que a vida não seja mais como costumava ser, o vínculo com aqueles que perdemos permanece em um novo jeito de viver e em cada recomeço”. Leia aqui: https://bit.ly/3vSy7Rd

À Maria, uma trabalhadora do SUS

Porto Alegre, RS, 8 de março de 2022

Maria,

Escrevemos esta carta para lhe agradecer por seu trabalho e por sua perseverança nestes dois anos de pandemia. Enquanto nós, que trabalhamos de casa, protegidos pelo isolamento social, assistíamos perplexos a esta crise humanitária, seu trabalho salvou vidas em hospitais e serviços de saúde. Das janelas, algumas poucas vezes aplaudimos nossos heróis: os profissionais da saúde. Você também mereceu cada um desses aplausos, embora as instituições não lhe dediquem este status profissional.

Você arriscou sua vida e desempenhou com zelo e competência tarefas das mais importantes, um serviço cauteloso e que envolve protocolos detalhados e rigorosos. Apenas conseguimos imaginar sua dor na linha de frente, presenciando tanto sofrimento dos pacientes em recuperação, mas também dos familiares que perderam seus entes queridos. Nós nos pegamos pensando, Maria, quantas vezes você tentou, em vão, tirar as marcas dessas dores de cada ambiente e seu esforço para amenizar o cheiro do medo que pairava no ar. Não era possível, pois tudo isso estava entranhado em cada um dos corpos e almas ali presentes, inclusive em ti, não é mesmo?

Só lembramos de você na ausência, mas logo esquecemos. Para muitos, seu trabalho é invisível. Lidar com essa invisibilidade já é difícil, mas revoltante mesmo é experimentar o negacionismo de quem “passou pano” para todas as recomendações de cuidados enquanto você se mantinha na linha de frente, enfrentando um cotidiano de incertezas e o temor de adoecer e de contaminar os seus. Por mais que tentássemos esclarecer as pessoas, e não estávamos sozinhos, aquele gosto amargo de tragédia anunciada dos primeiros meses de pandemia não acendeu a prudência em alguns corações.

Queríamos acreditar que todo esse trauma trouxesse uma nova perspectiva social e institucional para o seu trabalho e que, para além dos aplausos merecidos, você tivesse melhores condições laborais, apoio emocional e valorização profissional. Fomos ingênuos, pois agora a situação segue a mesma e sabemos que não é nada fácil. As pessoas não percebem que você é a primeira a entrar em cena quando alguém morre ou quando temos algum tipo de infecção, higienizando e esterilizando os espaços para proteger os demais trabalhadores da saúde e os usuários do serviço, garantindo a segurança de todos. Sabemos que os procedimentos curativos salvam vidas e são muito importantes, mas todo mundo deveria constatar que sem o seu trabalho muitos mais ficariam doentes ou não resistiriam.

As pessoas precisam saber que vocês são muitos e precisam ser reconhecidos. Temos no Brasil mais de 2 milhões de trabalhadores de nível técnico e auxiliar cujo trabalho é fundamental para a saúde da população. A maior parte de vocês é terceirizada, recebe baixos salários e luta contra condições adversas no trabalho, sofrendo discriminações e com pouco ou nenhum apoio institucional. A cada dez, oito chegam a trabalhar 60 horas por semana e estão sofrendo desgaste profissional relacionado ao estresse, ansiedade e esgotamento mental. Se não bastasse tudo isso, durante a pandemia soubemos do preconceito e das agressões que vocês sofreram na comunidade, nas ruas e no ambiente de trabalho, pois as pessoas viam em vocês um risco potencial para se infectarem.

Queríamos que você soubesse, Maria. Depois que te conhecemos, sempre que entramos em serviços de saúde lembramos imediatamente que sem vocês nada ali estaria funcionando. O seu trabalho é a base para o trabalho de todas as equipes. Durante essa pandemia, ao menos em pensamento, nos revoltamos juntos por muitas coisas, mas também vibramos juntos por cada vitória, pela vacina, pela diminuição do número de óbitos, por aqueles que sobreviveram. No futuro, esperamos poder comemorar juntos melhores condições de trabalho e de remuneração para você e seus colegas e o amplo reconhecimento da importância do trabalho que realizam.

Um forte abraSUS!
Janaína Liberali e Frederico Machado

Janaina Liberali é enfermeira da Fundação Municipal de Saúde da cidade de Canoas/RS e mestra em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Frederico Viana Machado é psicólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva de Saúde Coletiva da UFRGS.

Notórios anônimos

Notórios Anônimos

Um estudo inédito da Fiocruz revelou que 80% de trabalhadores e trabalhadoras, de nível técnico e auxiliar, vivem situação de desgaste profissional relacionado ao estresse psicológico, à sensação de ansiedade e esgotamento mental. Em setembro de 2021, conversamos com Maria Helena Machado, a coordenadora da pesquisa “Os trabalhadores invisíveis da saúde: condições de trabalho e saúde mental no contexto da covid-19 no Brasil”. São “invisíveis” não porque inexistam, mas porque muitas vezes não são percebidos como deveriam no cotidiano, ela nos disse. Para essa reportagem intitulada “Notórios Anônimos”, também conversamos com Sarah Gabriela dos Santos, que assim como Maria – a destinatária da carta de Janaina e Frederico – é uma trabalhadora do serviço de limpeza em um hospital da covid-19. [Leia aqui: https://bit.ly/3IZPaV6].

Falta de oxigênio e outros horrores

Manaus, AM, 1 de fevereiro de 2022

Meus irmãos, sobrinhos e sobrinhos-netos,

Escrevo esta carta para refrescar a memória de todos, neste momento em que nossa mãe diagnosticou positiva para covid-19, no último domingo. Para isso, gostaria de me remeter a março de 2020. Pois vamos lá. Naquele momento, eu estava assustado, como todos no mundo, depois da declaração dos novos casos de coronavírus espalhados pelo planeta. Eu estava em uma área de fronteira em uma atividade de campo, quando tive que suspender tudo e tentar pegar um voo de volta a Manaus, sem saber exatamente o que estava acontecendo — ou se corria risco de ser infectado no voo.

Assim foi o início da pandemia. Depois disso, fiquei uns dois meses em casa, trancado e recebendo notícias de pessoas afetivamente próximas e vizinhos adoecendo, ruas inteiras, casa após casa com casos confirmados. Nesta altura, hábitos foram bruscamente modificados. As idas à feira — como sempre digo, meu espaço preferido de interação social — já não eram mais possíveis. Passamos a adotar compras com entregas. Daí a somatizar os sinais e sintomas e achar que estava infectado foi um pulo. Na época, eu chamei isso de covid psicológica.

A sensação de incapacidade, de não poder ajudar a conter a pandemia, passou a tomar conta de mim e de meus colegas de trabalho. Foi quando aceitei participar de um grupo que elaborou um projeto para captação de recursos e insumos para enfrentamento da covid-19 junto à população indígena e outros povos vulneráveis na Amazônia e obtivemos sucesso.

Meu primeiro contato com pessoas infectadas foi quando fomos treinar agentes indígenas e outros profissionais de saúde para detecção do vírus por meio do teste rápido. Nunca tinha passado por isso e o susto foi enorme ao constatar que algumas pessoas estavam infectadas. Naturalmente que pensei: “Lasquei-me, vou adoecer”. Mas, assim como esta e outras vezes, sempre voltava “limpo” para casa e com sentimento de missão cumprida: ajudava as pessoas e voltava sadio. E assim foi-se o ano de 2020, vivido com angústia e medo de morrer. Foi um ano de muitas perdas. Nesta época, não tínhamos vacinas e os cuidados tinham que ser verdadeiros e não “faz de conta”.

Em janeiro de 2021, o barulho de sirenes nas ruas recomeçou, e desta vez com muito mais intensidade. A cidade novamente virou deserto e logo o número de casos aumentou assustadoramente. A partir de 14 de janeiro, iniciamos o período mais triste que vivemos desde o início da pandemia, quando faltou oxigênio nos hospitais de Manaus. Também não se achava oxigênio para vender, lembram? Aí começaram a chegar as notícias sobre amigos, parentes de amigos, indígenas e não indígenas, adoecendo e perecendo para a covid. O desespero, o medo, a paranoia aumentavam absurdamente a cada dia. Foram dias muito difíceis.

Nos últimos dias de janeiro de 2021, nossa mãe foi vacinada. Logo no primeiro dia de vacinação em Manaus, pela questão da idade e pela data de seu aniversário. Que alívio! Em meio ao desespero, a primeira dose da vacina era uma excelente notícia. Depois veio a segunda dose, em 19 de abril, e depois a dose de reforço, em outubro do mesmo ano. Foram três doses de vacina contra covid-19 e mais uma contra a influenza em apenas um ano. Daí nossa vida voltou o mais próximo à normalidade por alguns meses.

Mas aí, a partir de final de novembro, dezembro, uma nova onda de influenza começou a aparecer em Manaus, associada ao surgimento de nova variante do coronavírus na África. As primeiras notícias que chegaram é que possuía alta capacidade de transmissão, o que ficou comprovado pouco depois. Nos primeiros dias de 2022, os casos de covid voltaram a aumentar e de influenza também, muitas vezes as duas juntas. A sensação de “já vi este filme” foi inevitável. Um frio voltou a esfriar a coluna.

Quando, neste domingo, confirmou-se a positividade da covid em nossa mãe, eu não quis buscar culpados. Foi um vacilo que não deveria ter existido. Todos estávamos informados sobre a gravidade do momento, tínhamos a experiência de 2020 e 2021, tínhamos conhecimento sobre a condição de comorbidades de nossa mãe, tínhamos testagem disponível em vários pontos da cidade. Mas ainda assim vacilamos.

Se mamãe não está caminhando para agravamento, dada sua idade e suas comorbidades, não tenho a menor dúvida que é devido à vacina. Portanto, incentivem seus filhos a vacinar seus netos e vocês também continuem com as medidas protetivas de vacinas atualizadas, higienização das mãos e o uso de máscaras. Este foi o vacilo que adoeceu nossa mãe. É isso! Continuo negativo e assim espero continuar.

Um beijo, Sully

Sully Sampaio é cientista social e trabalha no Laboratório de Situação de Saúde e Gestão do Cuidado às Populações Indígenas e outros grupos vulneráveis (LSAGESPI), no Instituto Leônidas e Maria Deane (Fiocruz Amazônia). Atualmente, compõe a equipe do Projeto Qualifica SUS, atuando em cursos de atualização para Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Combate a Endemias no Amazonas.

Sem respirar

Sem Respirar

Os dias de terror vividos por Manaus em janeiro de 2021 — com a morte de pacientes por asfixia devido à falta de oxigênio nos hospitais, à ausência de vagas em UTIs e à chegada de uma nova variante mais transmissível do vírus — são uma tragédia difícil de esquecer. Foram muitos os relatos de desespero e incontáveis as imagens de dor daqueles que tentavam buscar por conta própria cilindros de oxigênio para que seus familiares não morressem sufocados, enquanto equipes de saúde no limite da exaustão precisavam decidir quem receberia oxigênio suplementar, levando em conta as chances de sobrevivência. A tragédia revelou a falta de coordenação e as decisões erradas das autoridades, como mostraram as reportagens exibidas em rede nacional. Em meio ao caos, a solidariedade veio por parte da sociedade civil organizada, artistas, jornalistas, gente famosa e anônima, que se mobilizou para ajudar. [Leia aqui https://bit.ly/3vHSj83]

Da sua mamãe, Cláudia

Salvador, BA, 6 de março de 2022, Lua Nova, Noite chuvosa

Meu querido Pepeu,

Me dei conta de que essa é a primeira vez que te escrevo uma carta. São muitas coisas a dizer meu filho, nem sei por onde começar… A sua chegada na minha vida pode ser simbolizada por um breve tsunami. Uma profusão de sentimentos tomou conta de mim naquele 2013: ansiedade, afeto, cansaço e uma inquietação dolorosa ao ser surpreendida pelo que significa maternar em uma sociedade fortemente estruturada pelo patriarcado.

Muita coisa mudou na minha rotina e até que a gente se conhecesse melhor, não foi fácil. Sua chegada me levou a um caminho de volta ao encontro com a minha criança toda machucadinha e assustadinha. Mas como não me faltam coragem e desejo de viver, aos poucos consegui transformar o medo e o cansaço em beleza, mergulho, gratidão e amor. Estes sentimentos mais serenos brotaram depois de muita ralação, contando com ajuda de profissionais incríveis e também me deixando guiar pelos saberes do corpo/memória. Hoje, me sinto muito honrada em ser sua mãe.

Nos últimos dois anos, muita coisa aconteceu no Brasil e no mundo. De repente, de um dia para o outro, com a chegada do novo coronavírus, nos vimos trancados em casa, só eu e você. Sem escola, sem parque, sem casa de coleguinha, de vovó, sem maracatu, futebol, capoeira e tanta coisa legal que a gente gosta de fazer junto ou separado. As telas invadiram nosso cotidiano, e o que antes era uma exceção virou regra. Das duas horas de TV por dia, passei a criar intervalos sem TV ou computador e, mesmo assustada com esse novo cenário, a mamãe precisava terminar a tese. As culpas maternas que teimam em acompanhar as mães, chegaram forte nesse momento: insegurança, chateação, excesso de presença um do outro e de telas, seu processo de alfabetização, medo e tristeza atravessaram nossa rotina.

Mas você foi incrível, filho, no contexto de isolamento social, com seu jeitinho zen e introspectivo me convidou a segurar a onda, me “obrigando” a dançarmos juntos com o auxílio do justdance, a brincar de ninja (Naruto), a desenhar e pintar com seus “lápis profissas”, a ler pra você na hora de dormir e, o melhor, a chamegarmos infinitamente todas as manhãs. E entre acordos semanais que eram refeitos e planos de adotar um gato e umas plantas, você não soltou a minha mão. Sou muito grata a você por isso, nos tornamos companheiros inseparáveis. Minha gratidão se estende a todos(as) os(as) profissionais de saúde e os(as) cientistas que dedicaram muito de suas vidas para salvar outras vidas. Estarmos vivos e fortes nesse contexto é um privilégio e uma benção.

Agora, vacinados e alimentados, temos muitos desafios pela frente para transformar a realidade injusta desse nosso país, e eu, sua mãe, conto com você, meu ninja capoeira, para seguirmos juntos nessa luta histórica.

Te amo infinito,

Sua mamãe Cláudia

Cláudia Pereira Vasconcelos é mãe de Pepeu e professora de História na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) de Jacobina (BA). Pesquisadora de sertões, música e brasilidades, é autora do livro Ser-tão baiano: o lugar da sertanidade na configuração da identidade baiana.

CARTA AO FILHO QUE AINDA NÃO VEIO

Balneário Camboriú, SC, 3 de março de 2022

Meu filho,

Resolvi escrever esta carta pois acredito que, nesta vida que é um sopro, é necessário deixarmos algo para quem amamos. Resolvi deixar esta carta. No trabalho de cuidados paliativos, existem as diretivas antecipadas, que são desejos e vontades do paciente descritas para o cuidador. Isso ajuda para que haja dignidade e qualidade de vida em seu cuidado.

Hoje escrevo a você, meu filho, pra te dizer que os últimos anos não foram fáceis. Enfrentamos uma pandemia mundial, uma doença respiratória grave que nos pegou de forma avassaladora. Muitas vidas se perderam rapidamente e esta dádiva de escrever algo não foi uma realidade possível para muitos. Esta pandemia pegou todos nós e nos colocou numa linha única chamada vida. Ficamos cara a cara com a nossa realidade e com o que é essencial.

Você tinha uma bisavó tão linda, filho! Ela nos deixou com idade avançada. No final, foi este vírus mortal que a pegou. Queria que você um dia conhecesse o colo da minha tia amada. Ela também partiu, vítima da pandemia. Como eu a amava, filho! Talvez um dia eu possa reencontrá- la para dizer o quanto você foi esperado com tanto amor. Não tive tempo de me despedir de nenhuma delas. Por isso agradeço a Deus pelos momentos únicos que tive ao lado das duas.

Sabe, filho, nesses meses aprendi a enxergar o próximo com atenção, a saborear cada olhar, cada momento presente. Os princípios do amor ganharam força, meu filho. Você pode estar perdido neste mundo doido, rápido e tecnológico, mas não fique aflito. Quando isso acontecer, vá para o seu quarto, feche os olhos e pense que os dias ruins sempre terminam e que sempre existirá um amor maior te cuidando, meu amor.

Filho, quero que você saiba que em cada casa que eu entrei, para cuidar de vovôs e vovós como fisioterapeuta e capelão paliativo, eu aprendi muito. Então te peço que respeite e cuide dos mais velhos com o seu melhor olhar, o olhar da compaixão!

Eu e seu pai, esperamos que você cresça com estes princípios: cuidar do outro, cuidar de si, com respeito e amor, se colocando no sofrimento outro, vivenciando o presente longe de vaidades e coisas superficiais. Que você descubra que, no final, o essencial será o abraço, o cuidar do outro. Se você crescer com esse ensinamento, ficaremos orgulhosos e realizados, filho.

Te amo!

Do seu pai Vinicius

P.S.: Muitos gostariam de ter escrito esta carta pra seus filhos. Muitos nem chegaram a ter este filho. Eu estou neste momento, ainda não tive meu filho. Em um mundo onde ainda existem pandemia e guerra, e sem saber como será o amanhã.

Vinicius de Souza Lacerda Pinto é fisioterapeuta e capelão paliativo.

Com todo o respeito, Senhora história

Rua do Passado, n. 2022

À História Futura Registrada, Av. Futuro
Senhora História Futura Registrada,

Escrevo-lhe esta carta com o intuito de esclarecer alguns acontecimentos vivenciados na minha época e peço que considere tal relato para evitar a repetição de erros no mundo em que a senhora vive. Em 31 de dezembro de 2019, a organização responsável pela saúde global recebeu algumas notificações sobre diversos casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na República Popular da China. Esses casos estavam relacionados a uma nova configuração de um vírus já conhecido pelos cientistas do mundo inteiro chamado coronavírus. E o que parecia algo isolado, se alastrou por todo o mundo transformando-se em uma longa pandemia.

Muitas pessoas e governantes de alguns países não se importaram com o tal problema e não cumpriram as medidas de prevenção como o isolamento social e a vacinação. Ao invés de apoiarem a melhoria do cenário pandêmico, eles criaram várias mentiras sobre as medidas que poderiam auxiliar a população do mundo a combater tal mal e isso influenciou o negacionismo da ciência, o que aumentou o número de pessoas infectadas e mortas pelo novo vírus.

Com a demora na resolução da pandemia, a situação, que já era ruim no mundo, piorou. Muitas pessoas perderam seus empregos, governantes se aproveitaram dos holofotes dados ao cenário pandêmico para aprovarem medidas e reformas prejudiciais para a maioria da população — e satisfazerem seus desejos e os desejos de uma minoria privilegiada. Problemas como a fome e a desigualdade social aumentaram consideravelmente em alguns países.

Todo o egoísmo humano e a falta de empatia sufocaram ainda mais as esperanças em um mundo melhor e sobrecarregaram aqueles que desde o início tentaram ajudar, como os cientistas e os éticos profissionais da saúde. A pandemia de covid-19 certamente marcou a minha época, Sra. História. Espero que esta carta sirva como alerta para as gerações do Novo Mundo e que os erros cometidos na Rua do Passado não sejam repetidos na Avenida do Futuro.

Desde já, agradeço a atenção concedida.

Atenciosamente,

Juliana Barbosa da Silva

Juliana é nutricionista, especialista em Comunicação e Saúde (IcictFiocruz) e mestranda em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Fiocruz).
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