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Menos recursos na atenção básica, menos acesso à saúde. Essa é a conclusão de um estudo realizado em Manaus e São Paulo, que mostra que há perdas expressivas para os municípios brasileiros com a implantação do Previne Brasil, programa que mudou o financiamento da Atenção Primária à Saúde (APS). Criado pela Portaria nº 2.979, de 2019, o Previne Brasil propõe — na teoria — “a estruturação de um modelo de financiamento focado em aumentar o acesso das pessoas aos serviços da Atenção Primária e o vínculo entre população e equipe”; na prática, porém, ao dificultar a execução orçamentária, o novo modelo cria mecanismos que ferem o princípio da universalidade do SUS e mudam a lógica da atenção básica, em um contexto agravado pela pandemia de covid-19.

“É uma contradição: quando mais gente precisa do Sistema Único, público, universal, gratuito, baseado na interprofissionalidade, com todos os seus atributos consolidados, em vez de fortalecer o que precisa ser fortalecido, promovem o desfinanciamento para abrir oportunidades de negócio dentro do sistema público”, afirma à Radis Leonardo Carnut, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos três autores do estudo, ao lado de Áquilas Mendes e Mariana Alves Melo. O artigo, publicado no Cadernos de Saúde Pública em fevereiro de 2022, aborda o primeiro ano de implantação do Previne Brasil. Os pesquisadores analisaram três cenários diferentes da capitação ponderada, que é o repasse calculado pelo número de pessoas cadastradas, e registraram perdas significativas para os dois municípios a partir de transferências recebidas e projetadas para o exercício de 2020 em comparação aos valores transferidos em 2019. Em qualquer simulação, os municípios perdem dinheiro.

Com o Previne Brasil, o dinheiro repassado aos municípios para prover a Atenção Primária passa a ser calculado com base na quantidade de pacientes cadastrados na Estratégia Saúde da Família (ESF) e nas unidades básicas, e não mais de acordo com o número de habitantes (Radis 207). “Não foi feita uma reestruturação, como dizem. Essa é uma estratégia de desmonte da atenção primária e traz embutida uma visão seletiva da política de saúde”, avalia Leonardo. A perda de recursos é evidente. Manaus é o único município que receberia R$ 10,2 milhões como medida atenuante e perderia R$ 4,4 milhões e depois R$ 21 milhões, respectivamente. Já São Paulo, em qualquer situação, perderia recursos da ordem de R$ 10,5 milhões, R$ 164,5 milhões e R$ 256,7 milhões em cada um dos cenários estudados. “É um volume de recursos bastante considerável que demonstra o processo de desfinanciamento no repasse”, ressalta Leonardo.

O artigo alerta que esta tendência deve ser repetida em outros municípios, inclusive nos de grande porte, que dispõem de um corpo técnico razoável para gerir o novo modelo. Os pesquisadores entendem ainda que o Previne Brasil acena para a lógica do “SUS operacional”, que se baseia na lógica de desempenho e considera apenas as pessoas cadastradas, “destruindo o princípio de universalidade e abrindo espaço para o capital privado”.

Leonardo critica também a transição improvisada do modelo anterior para o vigente. “Foi feita na base de tentativa e erro. Ao longo do processo, eles viram que alguns municípios ganham, mas a grande maioria perde recurso”, afirma. O improviso, para ele, resultou em medidas atenuantes, como a criação do per capita temporário, em novembro de 2021. “Eles identificaram que a alocação de recursos tem que ser minimamente per capita e ganharam a adesão política de vários secretários municipais de saúde, que acham que podem estar ganhando. Mas não estão”, alertou o pesquisador em entrevista à Radis por plataforma de vídeo.

Municípios brasileiros devem perder recursos com a adoção do Programa Previne Brasil, aponta estudo. (Foto: Cristine Rochol/Arquivo PMPA.)

Perda de recursos

Para o pesquisador, o novo modelo de alocação faz parte de um pacote mais amplo de medidas e mostra o alinhamento do governo federal e de seus representantes a uma nova dinâmica do capitalismo contemporâneo. “O projeto do governo visa ampliar o avanço do capital por meio do desfinanciamento e a consolidação de modelos privatizantes de gestão. Tudo isso converge em um único projeto. Para os países que consideram a saúde como um direito, entre eles o Brasil, isso tem afetado a estruturação dos sistemas de saúde no asseguramento dos direitos sociais”, considera. Leonardo explica que o avanço do capital se deu, primeiro, mediante a incorporação tecnológica na média e alta complexidade. “Esgotadas essas possibilidades, passaram a buscar a atenção primária como uma nova forma para drenar gasto público em gasto privado”, esclarece.

Segundo ele, o Previne Brasil mudou a lógica do sistema universal, ao extinguir os Pisos de Atenção Básica (PAB) Fixo e Variável, que eram as linhas de transferência que destinavam de forma automática repasses mensais e regulares ao conjunto dos municípios (Radis 207). Pelo antigo modelo, os recursos eram dirigidos para o custeio das ações e serviços de saúde de acordo com a quantidade de habitantes residentes no território do município e por adesão de estratégias. Em seu lugar, foram instituídos os componentes de financiamento de capitação ponderada, com o cadastro de pessoas; pagamento por desempenho, que exclui indicadores e programas relevantes; e incentivo para ações estratégicas. O cadastro passou a ser a via de inserção no sistema e condição para as pessoas acessarem os serviços ofertados pelo SUS, o que, segundo os pesquisadores, fere o princípio constitucional e compromete as ações coletivas de promoção da saúde, como imunização e vigilância em saúde.

A mudança de modelos foi feita sem o aval do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e, desde o seu lançamento, tem sido bastante criticada por especialistas que previam que ela iria fragilizar e desmontar a Saúde da Família. Leonardo explica que sistemas de saúde universais necessariamente precisam partir do total per capita, com base em critérios populacionais. “A gente pode até criticar que o per capita é pouco, mas ele é dirigido para toda a população do município. O município recebe o montante para aquele habitante independentemente de fazer uso da assistência direta do SUS”, explica. Para ele, os critérios estabelecidos pela Portaria nº 2.979 reduzem a transferência porque estão relacionados à oferta do serviço no território. “Municípios sem oferta ou equipe instalada não têm o cadastro de toda a população e receberão menos. Eles só vão receber o que a equipe é capaz de cadastrar”, afirma.

Ênfase gerencialista

A chamada “contrarreforma” da política de saúde não só desmontou a lógica do financiamento como seus efeitos estão descaracterizando os princípios do SUS e os atributos da APS. Segundo Leonardo, o Previne Brasil dá ênfase a ferramentas gerencialistas, como no caso do “desempenho”, que reforça o lado operacional do sistema. “Ao invés de universalizar, o Previne cria um novo tipo de focalização, que volta sua lógica de prestação de serviços para as pessoas ditas mais vulneráveis. Só que o SUS é para todos”, reforça. Para ele, isso cria uma nova seletividade nas políticas públicas, que haviam ampliado cobertura e acesso e agora passam a ser dirigidas para determinados grupos por meio de condições de atendimento. “Tudo isso está relacionado à racionalização dos recursos e ao desfinanciamento da atenção primária”, conclui. 

Entre tantos pontos, a proposta mudou também a composição das equipes de saúde e flexibilizou a carga horária semanal de médicos e enfermeiros. O pesquisador alerta ainda que a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), criada em 2020 como um serviço social autônomo para operacionalizar o programa Médicos pelo Brasil (em substituição ao Mais Médicos), vai também afetar a formação médica no país. “Isso é muito sério porque retira das universidades essa prerrogativa. Acho que parte da categoria não está ciente de que a formação médica será realizada por uma entidade privada”, observa.

“Os planos privados assistiram de camarote à pandemia”

Na visão da pesquisadora Bernadete Perez, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), é preciso entender o contexto dessas mudanças na Atenção Primária, diante da crise política em meio a uma contrarreforma trabalhista e previdenciária, da expansão da informalidade, do crescimento da população em situação de rua, do aumento da fome e do número de pessoas em insegurança alimentar e nutricional. “Tudo isso está associado à descontinuidade de programas habitacionais e do Mais Médicos e bate na porta da atenção primária com muita força”, salienta. Contudo, ela ressalta que até hoje nenhum governo investiu fortemente nessa área fundamental do SUS. “Havia estagnação e agora enfrentamos uma interrupção”, analisa.

A médica sanitarista vê que o lançamento da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), em 2017, explicita a lógica tecnocrata, gerencialista e que visa acabar com as diretrizes que ainda se sustentavam na APS. “Entramos num processo acelerado de privatização, uma política pró-mercado, com focalização e a discussão da cobertura universal diferente do sistema universal de saúde que sempre defendemos”, afirma. Segundo ela, a nova política mudou a diretriz orientada a partir da Estratégia de Saúde da Família. “A consulta pública foi feita para uma cesta de serviços. Não escutamos mais falar dos atributos de orientação familiar e comunitária, projetos de saúde coletiva, educação em saúde, cuidados individuais e coletivos. Falam em resgate da enfermagem a partir de procedimentos, como se isso garantisse integralidade e cuidado territorial”, salienta. Além disso, a nova Pnab não contempla as diferenças internas das regiões ou estados. “Não dá para tratar tudo sem contemplar especificidades”, observa.

Outro ponto que a pesquisadora levanta é a divulgação, que ela considera incorreta, de que a ampliação dos planos de saúde vai desonerar o SUS. Segundo ela, a cobertura regulada tem relação com a financeirização e com a capacidade de pagamento das pessoas, e não com a proteção social. Para Bernadete, essa é mais uma “mentira recontada que ganha ares de verdade”. “O SUS não teve uma consulta a menos, mesmo com a corrida de ampliação dos planos de saúde nos anos 2000”, lembra. “Não é resolutivo porque o acesso não é para todos”. A médica destaca que a população dependente do SUS chega a 70% e os planos limitam o acesso à alta complexidade que carrega a assistência de maior custo. “Os planos privados assistiram de camarote à pandemia. Não houve uma requisição administrativa de leito de UTI ou de enfermaria. A balança sempre está desvantajosa para o público”, reflete.

Bernadete critica também o Programa Cuida Mais Brasil, lançado em 6 janeiro de 2022, para contratar médicos pediatras e ginecologistas. O Ministério da Saúde divulgou que esses profissionais irão reforçar a assistência materno-infantil nos postos de saúde e destinará R$ 194 milhões no primeiro ano do programa. Para ela, “é um aceno conservador aos conselhos e entidades médicas que desconsidera a potência da ESF”. Em sua visão, não basta incorporar especialistas sem pensar na rede como um todo. “Não acho que a incorporação seja um problema, mas tem que considerar a Estratégia de Saúde da Família como orientadora. Como esses profissionais serão incorporados sem os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que foram extintos, sem combinar com a equipe interdisciplinar?”, questiona.

Além disso, ela reforça que a ideia por trás do Previne Brasil preconiza um sistema em que as pessoas vão pagar pela cota de serviços baseado no seu poder aquisitivo, de acordo com a cartilha do Banco Mundial. “Isso vai ser muito desigual. Quem pagar um plano de 200 reais vai ter direito a uma determinada cesta de serviços. Essa cesta parte do pressuposto que a saúde é um produto e não um direito de todos e dever do Estado como nos sistemas universais de saúde. O SUS ainda não se completou e a APS é fundamental para dar essa garantia”, destaca. “Precisamos continuar a perseguir o alcance à universalidade e a concretização do direito à saúde vinculado à atenção primária em que cada brasileiro e brasileira consiga ter uma equipe para chamar de sua”.

Para Bernadete, a legitimidade e a continuidade da atenção primária estão ligadas aos rumos do parlamento e do Estado brasileiro em 2022. “Não é possível pensar na defesa da Atenção Primária à Saúde e dos sistemas universais sem democracia no Brasil. Precisaremos recompor cenários, dobrar o número de equipes de Saúde da Família e ter uma política de pessoal integrada para a APS”, afirma. Para isso, ela diz que é preciso lutar pela volta do PAB fixo, rediscutindo o financiamento por desempenho diante de diferentes realidades vividas no país. “Temos também que pensar em recomposição orçamentária mudando as regras e revogar a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o Teto de Gastos. O SUS nasceu nesse enfrentamento e a gente vai continuar a caminhar na lógica de um sistema que não é privatizante”, finaliza. (L.M.)

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