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Manhã de janeiro de 2022, a costureira Tutti Fukuda se alivia do calor ao atravessar os jardins que cercam o casarão situado no número 925 da avenida Doutor Arnaldo, no bairro do Sumaré, Zona Oeste de São Paulo. Depois de uma pausa no trabalho na empresa que mantém em casa, ela se dirige ao Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza (CSEGPS) para retirar os pontos de uma pequena cirurgia feita semanas antes, um pouco apreensiva com o aumento de casos de covid-19 causados pela chegada da variante ômicron na cidade.

O casarão é seu velho conhecido. Ela o frequenta desde o início dos anos 2000, quando passou a levar o filho mais velho para se vacinar. Depois disso, buscou atendimentos para ela mesma em áreas diversas, como clínica geral, ginecologia e oftalmologia. Durante a pandemia, chegou a receber ligação telefônica da equipe da Estratégia Saúde da Família para justificar a interrupção nas visitas domiciliares e fornecer informações de prevenção sobre a covid-19.

Naquele dia, a movimentação lembra o período anterior à pandemia: pessoas se dividem em diferentes filas, aguardam para se vacinar, outras buscam testagem para o coronavírus. “Havia um nervosismo no ar”, lembra Tutti, que também precisava marcar exames, naquele dia. Apesar do volume de gente, ela logo é atendida por uma profissional do posto, que a aconselha a não desistir e aguardar: “Não sabemos como estarão as coisas aqui à tarde. Muita gente aqui suspeita de estar com covid”, argumenta. Ela resolve esperar.

Um tempo depois, quando já está em uma sala reservada, a artesã conversa com a profissional que a atende, dizendo que entende a situação, quando é surpreendida por uma informação inusitada, que não só ameniza a tensão vinda da aglomeração externa quanto faz com que se sinta mais relaxada para encarar o procedimento a que será submetida: “Você sabia que aqui nesta casa moraram Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade?” Tutti demonstra surpresa e diz que havia lido que o posto era um dos mais antigos do país. “Do país não, da América Latina!” — responde a enfermeira, puxando mais um ponto da pele de Tutti.

As informações são verdadeiras. Em 2015, quando investigava a origem do imóvel, a historiadora Mariana de Carvalho Dolci descobriu que a casa havia sido doada em 1929 ao estado de São Paulo pelo escritor Oswald de Andrade (1890-1954), que havia morado ali quando foi casado com a artista plástica Tarsila do Amaral (1886-1973). A doação teria sido feita em função de dívidas resultantes de impostos não pagos por Oswald, apurou a historiadora.

Tutti fica surpresa com a história e ainda mais encantada com o posto, onde já se sentia acolhida. Não deixa de perceber a coincidência histórica, já que no mês seguinte o país comemoraria os 100 anos da Semana de Arte Moderna — realizada no Theatro Municipal de São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922, e que teve participação decisiva do antigo dono da casa.

Ela divaga e pensa se foi ali que em 1928 Tarsila pintou Abaporu, uma de suas obras mais conhecidas e hoje considerada a mais valiosa da arte brasileira — em 1995, Abaporu foi leiloado em Nova Iorque e arrematado por um empresário argentino por 1,35 milhão de dólares. Ele posteriormente doou a pintura para o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), onde está até hoje.

É com interesse então que Tutti recebe o convite feito pela enfermeira, para que observe com mais atenção o lugar e perceba o quanto ainda lembra uma casa. “Imagine quantas pessoas famosas passaram por aqui? Festas, almoços, encontros… Muitos nomes de rua frequentaram este lugar”, diz, chamando a atenção da usuária para o piso original, a bela escadaria.

Tutti se depara com as fotografias antigas, nas paredes que ficam no vão da escada. Turmas de formandos, profissionais que passaram por ali. As recordações lembram outro pedaço da história, também ainda presente no centro de saúde, que é a sua vocação para o ensino e para a pesquisa, como está descrito no site oficial da unidade.

Pertencente a Universidade de São Paulo (USP), é uma das unidades de Saúde mais antigas da América Latina, em funcionamento desde 1925 (mesmo antes da doação). Incorporada à Rede Pública Municipal de Saúde em 2016, funciona como UBS mista, onde são realizados atendimentos em nível de Atenção Primária e que contam com a participação de docentes, pesquisadores e alunos da Faculdade de Saúde Pública, bem como de outras instituições interessadas na formação de recursos humanos no campo da Saúde.

O Centro — cujo nome homenageia outra personagem histórica, o sanitarista Geraldo Horácio de Paula Souza, um dos responsáveis pela modernização do atendimento à saúde no país — também é referência na assistência a idosos vulneráveis e oferece serviços especializados em áreas distintas como dermatologia, diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis, práticas integrativas e complementares (PICs) e odontologia.

Mesmo sem todas estas informações, Tutti considera que é terapêutico tratar-se em uma unidade onde se “respira” tanta história. Além disso, a atmosfera dos jardins e de outros prédios tradicionais ao redor, combinada com a atenção dispensada pelos profissionais, também inspira o cuidado que, para ela, faz parte do que se espera de um atendimento em saúde: “Uma unidade de saúde nem sempre é um ambiente alegre, acolhedor. A lembrança nostálgica da enfermeira me fez sentir acolhida e segura”, diz. Para ela, este tipo de atendimento humanizado é um testemunho que valida a importância e a relevância do SUS para a sociedade: “Às vezes as pessoas precisam de um abraço, de alguém que escute suas dores. Aqui eu me sinto acolhida”.

PARA SABER MAIS

Site do Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza (CSEGPS)
https://bit.ly/3HRg544

A Casa de Geraldo de Paula Souza: texto e imagem sobre um sanitarista paulista – texto de Lina Faria na revista História, Ciências, Saúde
https://bit.ly/3vTDEHa
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