Há poucos dias, uma grande jornalista brasileira me disse: “Infelizmente, ninguém mais quer saber da pandemia. Quando a gente publica algo a respeito, a audiência é quase zero, você sabia? Um horror”. De fato, quando falamos da covid-19, em público ou na vida privada, sentimos um crescente incômodo entre nossos interlocutores, com demonstrações de impaciência ou até desprezo.
Como em tantos outros processos de esquecimento que caracterizam a história do Brasil, somos convidados, aberta ou veladamente, a “virar a página”. É preciso “seguir em frente” rumo às pautas capazes de gerar “cliques e curtidas” nas redes sociais, sob o falso pretexto de que “já se falou muito sobre a covid-19”. Digo falso porque o excesso de conteúdo midiático sobre um assunto não significa, nem de longe, que ele foi tratado de forma adequada, e ainda menos suficiente.
A ilusão de que a pandemia é um assunto superado explica, em parte, o silêncio que cercou o aniversário de três anos do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal sobre a covid-19, entregue à Procuradoria Geral da República em 27 de outubro de 2021, recomendando o indiciamento de dezenas de pessoas, inclusive autoridades federais, por crimes relacionados à pandemia. (…)
De um lado, temos familiares das vítimas que reclamam o caráter evitável das mortes de seus entes queridos. As suas associações representativas continuam promovendo atividades de preservação da memória e de busca por justiça, diga-se de passagem, sem o devido apoio do Estado e da sociedade, como é o caso da Avico Brasil [Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas de Covid-19].
“Venho dizendo, desde 2020, que a covid-19 é uma questão de memória, verdade e justiça.”
Há também milhares de pacientes com a chamada “covid longa” sofrendo os efeitos persistentes de uma doença que poderiam não ter contraído caso existisse prevenção eficaz; trabalhadores da saúde e de outras atividades essenciais cujos relatos sobre a linha de frente são ignorados; e tantos voluntários que ainda não tiveram ocasião de contar sua experiência valiosa em incontáveis iniciativas sociais de prevenção da doença e de garantia da vida.
Deste lado estão igualmente artistas, entre eles os criadores de filmes monumentais como Quando falta o ar, de Helena e Ana Petta, ou Eles poderiam estar vivos, de Gabriel e Lucas Mesquita, que deveriam ser premiados e difundidos amplamente. Estão, ainda, os projetos de construção de acervos sobre a covid-19, entre os quais destaco o extraordinário Sou Ciência da Universidade Federal de São Paulo, liderado por Soraya Smaili e Pedro Arantes; além de (não muitos) pesquisadores, jornalistas, parlamentares e outros profissionais que persistimos na investigação do que realmente aconteceu no Brasil, sendo diversos de nós alvos de processos criminais e cíveis como forma de intimidação para que desistamos do assunto e, sobretudo, que os resultados das nossas pesquisas sejam desqualificados e não tenham eco.
Entre os que não desistem de lutar, menciono, por fim, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Conselho Nacional de Saúde, órgãos do Estado de inquestionável relevância e legitimidade, que apresentaram uma nova representação criminal sobre os “crimes da pandemia”, no dia 24 de outubro último, à Procuradoria Geral da República. (…)
Já do outro lado, dos que promovem o esquecimento, estão, evidentemente, os supostos autores dos crimes da pandemia, embora muitos deles jamais tenham negado o que fizeram. Ao contrário, há quem defenda o legado mortal em nome da falsa proteção da economia e do livre arbítrio. Para eles, quem violou os direitos humanos foram os cientistas, as autoridades e os profissionais de saúde que se opuseram à estratégia de incitação ao contágio, baseada na crença em duas teses que rapidamente se comprovaram falsas: a imunidade de rebanho por contágio e o alardeado “tratamento precoce”. (…)A comunidade científica está ciente de que o final desta história será o seu recomeço, garantido pela impunidade que se avizinha. Venho dizendo, desde 2020, que a covid-19 é uma questão de memória, verdade e justiça. Se o bloco da memória não aumentar, a próxima pandemia encontrará o Estado e a sociedade brasileiros, especialmente as autoridades sanitárias, tão ou mais desarmados diante do crime quanto estivemos diante da covid-19.
■ Professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Artigo originalmente publicado no Jornal da USP (30/10). Para ler na íntegra: https://bit.ly/artigodeisyventura
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