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Primeira Conferência Nacional de Saúde realizada depois da pandemia e do governo negacionista de corte populista autoritário, a 17ª representou a retomada do curso democrático e participativo da trajetória da reforma sanitária que culminou com a criação e construção do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado mundialmente como sendo o maior sistema universal de saúde. 

A presença de mais de 4 mil delegados eleitos em conferências em âmbito subnacional e em conferências temáticas livres, além de outros milhares de convidados, tornou a reunião um fenômeno em dimensões e em diversidade, colorindo corredores e salas com cocares, vestimentas afro-religiosas, profissionais e conselheiros envoltos em bandeiras de estados e municípios, além da expressiva participação de pessoas com deficiência, travestis e transgêneros. Sem dúvida, a 17ª será reconhecida como a conferência da diversidade, espelhando o momento atual, no qual as lutas identitárias ganham força e visibilidade na sociedade brasileira.

A defesa do SUS e da gestão de Nísia Trindade no Ministério da Saúde se tornou o grande aglutinador de todas as forças sociais que lutam pelo direito à saúde – pública, universal e de qualidade — considerando o que já foi feito nos últimos seis meses no sentido de resgatar e amplificar os programas e políticas que haviam sido desmantelados pela incompetência, má gestão e orientação negacionista do governo anterior. 

No entanto, ainda restam muitas dúvidas sobre questões centrais para o avanço das políticas sociais e de saúde, como os julgamentos no STF sobre o piso salarial da enfermagem e o uso da cannabis medicinal, os efeitos negativos da aprovação do arcabouço fiscal sobre a possibilidade de recuperar o financiamento do SUS, o impacto da possível aprovação da Reforma Tributária sobre o Orçamento da Seguridade Social e a preservação da regressividade fiscal.

As conferências nacionais de saúde sempre foram um espelho da sociedade, expressando a pujança das forças sociais que, em cada momento, formam a base social de defesa do SUS, mas que também são aquelas que impõem demandas que precisam ser incorporadas pela orientação da política governamental. Acadêmicos, sindicalistas, gestores, profissionais e movimentos sociais sempre estiveram presentes em todas as conferências, com distintos protagonismos em cada uma delas. Podemos dizer que na 17ª os movimentos sociais protagonizaram o ator mais importante, na defesa da diversidade e representatividade, do combate ao preconceito e às desigualdades, propugnando por um SUS mais inclusivo.

Ainda que as proposições a serem votadas tenham contemplado uma variedade maior de temas, que também estiveram presentes nas atividades autogestionadas, a ausência nos grandes debates de alguns temas centrais para a área de saúde e para a própria redução das desigualdades devem ser apontadas. É surpreendente que a pandemia, suas causas, suas consequências e as novas ameaças não tenha sido um tema presente nas discussões. É como se a sociedade estivesse em um processo coletivo de negação do trauma sofrido, uma amnésia geral que pode, em termos freudianos, reaparecer como sintoma, tanto individual, como coletivo e institucional. Outra questão crucial para a superação das deficiências e desigualdades no SUS é o enorme desfinanciamento sofrido ao longo dos últimos anos, cuja recuperação se vê ameaçada pelos limites impostos pela austeridade fiscal que ainda domina a política econômica.

A privatização por dentro do SUS, com a destinação da gestão e dos recursos públicos para entes privados, ainda que mencionada, não foi um tema central nos debates, embora a mercantilização possa comprometer a saúde e a privatização debilite a capacidade da gestão pública. Considerando a importância crescente do uso da Inteligência Artificial na área de saúde, os possíveis benefícios e os riscos associados à sua utilização sem uma regulação pública efetiva, esse debate é crucial para o amanhã que já é hoje. 

Uma marca que ficou patente em todo o processo de construção da 17ª CNS é a incrível capacidade de renovação das lideranças que consegue manter vivo o movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Essa característica, que não é frequente em outros países e movimentos, tem sido responsável pela continuidade da reforma e sua fidelidade aos princípios doutrinários entronizados na Constituição Federal de 1988 e nas leis orgânicas da Saúde, bem como pela capacidade de inovação, com a introdução de novas problemáticas que orientam a definição da política de saúde. 

Tomo como exemplos o consenso estabelecido em relação ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde, como possibilidade de construção de um modelo de desenvolvimento soberano, que associe política econômica e social. Enquanto tal proposta foi fortemente influenciada pelo papel da Fiocruz, na sua construção e difusão, vemos um outro exemplo, a demanda por uma política de cuidados paliativos, que alcançou também o consenso suficiente para ser incluída na agenda pública, mesmo sendo um trabalho de formiguinhas, em redes de profissionais e familiares.

Extrato de texto originalmente publicado no portal do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho da Fiocruz (CEE-Fiocruz). A autora prossegue o artigo com uma reflexão teórico-política sobre os conceitos de igualdade e equidade no SUS. Leia completo em bit.ly/soniafleurycee.

* Sonia Fleury é doutora em Ciência Política, pesquisadora sênior do CEE-Fiocruz e coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco (wikifavelas.com.br)
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