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O Espaço Agroecológico de Setúbal, uma subárea do bairro de Boa Viagem, ocupa um trecho junto ao canal do Rio Jordão, na Zona Sul do Recife. Ali, produtores de seis organizações abastecem mesas com produtos cultivados sem agrotóxicos, fertilizantes industriais ou transgênicos. A partir das 6h30 da manhã, vendem legumes, verduras, frutas e ervas que crescem no ritmo da natureza, sem qualquer produto para acabar com pragas e insetos. Há também comidinhas, tônicos e pomadas, fitoterápicos, cosméticos, plantas e sementes. Uma das banquinhas do Espaço é a de Damião e Josiane que, todos os sábados, cumprem uma parte da jornada de trabalho que começa cedo. No dia da feira, o casal deixa o Sítio Marreco, onde moram, por volta de 2h30 da manhã, e segue 72 quilômetros rumo à capital com o carro abastecido com alimentos sadios que garantem o sustento da família e a saúde de muitos consumidores.

Luiz Damião Barbosa tem 53 anos e trabalha desde os sete. Começou amarrando cana para diminuir o risco de queda da planta na estrada e seguiu fazendo “muitas outras coisas”, como diz. Seu destino e o de seus 14 irmãos já estava escrito: seguiriam o mesmo caminho do pai, que trabalhava na usina de cana-de-açúcar, dona da maior parte da área cultivável da região. “A gente foi formado para trabalhar para o engenho ou para os pequenos fornecedores de cana. Meu pai comprava pequenas boladas de cana. Ele fazia todo o processo da cana que ia para a usina e era isso que a gente ia fazer na vida”, explica à Radis, numa conversa na cozinha de seu sítio. De acordo com Damião, o estudo era coisa secundária em uma região em que a cana-de-açúcar era o motor da atividade econômica. “A universidade era coisa de rico. Ninguém dizia ‘vai estudar’. Nem um pai falava ‘meu filho, isso aqui é seu pedacinho de terra. Invista nisso’”.

Ter o próprio pedaço de terra, participar de uma associação apoiada por uma rede de parceiros e a existência de políticas públicas ajudaram Damião a escrever outra história para a sua vida e a de sua família. Foi em seu sítio que ele descobriu a vocação para a agroecologia e a sua identidade como pequeno produtor rural. Na terra, ele e Josiane cultivam alface, espinafre, bertalha, banana, fava, jerimum, manga, jaca, coco, laranja, abacaxi, acerola e muito mais. Boa parte da produção é vendida nas feiras no Recife, entre elas, o Espaço Agroecológico de Setúbal.

No início, ele conta que da terra só saíam macaxeira e mandioca. Mas, o aprendizado possibilitou que agricultores como ele e seus vizinhos conseguissem diversificar a produção, garantindo renda semanal fixa. O agricultor ressalta que a criação da Associação Produtores Agroecológicos e Moradores das Comunidades do Imbé, Marreco e Sítios Vizinhos (Assim), em 1998, foi um marco que mudou a sua história e a da comunidade localizada na área rural do município de Lagoa de Itaenga, na Zona da Mata Norte de Pernambuco.

“Dizem para a gente que agricultura familiar é um fracasso, que não tem capacidade e isso não é verdade.”

Luiz Damião

Formação necessária

A Assim foi criada para ampliar o acesso a linhas de crédito para os agricultores familiares e logo depois fomentou a ideia da produção sustentável e orgânica. Damião conta que a associação recebeu vários apoios e iniciativas para capacitar os agricultores e estimular a geração de renda. Em conversa com a Radis, ele lembra das ações do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta) na formação de jovens em Agentes de Desenvolvimento Local (ADLs). “Fui convidado para participar de reuniões. Eu achava que sabia tudo, mas estava equivocado”, assume, ao lembrar dos primeiros cursos que ampliaram o seu conhecimento e o aproximaram da agroecologia. “Eu só passei a valorizar a minha propriedade quando fui para o Serta”, conta Damião, que foi presidente da Assim em 2000.

Depois, os agricultores participaram de oficinas da incubadora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e do Centro Nordestino de Medicina Popular e passaram a produzir polpas e sucos, bolos, pães e doces. O reaproveitamento passou a evitar perdas e permitiu que mulheres, como Josiane Gomes, encontrassem um espaço para atuar indo além do trabalho doméstico. Formada em Magistério, Josiane foi professora voluntária de crianças e passou a acompanhar o marido nas reuniões da associação. Depois, ingressou nas oficinas e em um curso no Senai. Hoje, ajuda o marido no roçado e, de sua cozinha, saem chips, geleias, conservas e biscoitos, que aumentam a renda da família. Ela ressalta que o sistema agroecológico melhorou a qualidade do consumo familiar. “Foi uma mudança na minha vida. Tudo vinha da cidade antes de a gente se envolver nesse processo de agricultura familiar. Agora compramos fubá, arroz e feijão e quase tudo vem da roça”, salienta Josiane, que é mãe de Maria Clara, estudante do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), de Maria Juliana e Benjamin.

Desenvolvimento em rede

A paisagem mostra que a comunidade criou um cinturão verde que contrasta com o monocultivo de cana-de-açúcar. “Eu acho que a usina já teria invadido a nossa terra. Sem aquela formação, a gente iria continuar na mesma história. Dizem para a gente que agricultura familiar é um fracasso, que não tem capacidade e isso não é verdade”, afirma Damião. Ele pontua que o agronegócio produz para exportação. “O que fica no Brasil é minguado. É o refugo. A agricultura familiar é responsável por 70% da alimentação da população. O que falta é programa e formação. Porque se você me perguntar se eu quero dinheiro ou conhecimento, eu quero conhecimento”, salienta. As formações permitiram fortalecer a agricultura familiar. “Eu falo que o começo somos nós que temos a propriedade; o meio é o Serta que capacita os produtores e a associação que organiza; e o fim é a comercialização”.

Em junho, a sede da associação foi reformada e a área da cozinha semi-industrial para uso dos agricultores foi ampliada. Foi também lançado um projeto com foco na segurança alimentar e inclusão de idosos e seus familiares, que oferece oficinas de culinária e desenvolve projetos no campo da agroecologia. “Estamos trabalhando com idosos via Conselho do Idoso do município para melhorar a produção e a futura comercialização do excedente por meio das feiras”, afirma Rosinete José da Silva, atual presidente da Assim, em uma conversa na sede da entidade. Há cinco associados da entidade que vendem sua produção no Espaço AgroEco de Setúbal.

A associação conta com 54 membros, que estão em transição para a agroecologia ou inseridos no sistema agroecológico, e não aceita agricultores que utilizam técnicas tradicionais. O COEP – Rede Nacional de Mobilização Social, o Centro Sabiá (que atua na multiplicação de sistemas agroflorestais), a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE), a Cáritas Brasileira Regional NE2 e as secretarias municipais são algumas das organizações do terceiro setor e instituições públicas que participaram dessa trajetória que constrói um território saudável, fortalece o desenvolvimento comunitário e incentiva a prática agroecológica. Hoje, a Assim marca presença em 15 feiras agroecológicas em seis municípios pernambucanos.

Força coletiva

Abrigada pela sombra de uma árvore ao lado de sua plantação, Vera Silva, agricultora e segunda secretária da Assim, ressalta a importância dos parceiros e de políticas públicas nessa construção comunitária. “A força coletiva é mais potente que a individual. Posso produzir e vender, mas como agricultora familiar com uma pequena produção eu só me sinto forte numa organização. Eu sozinha seria uma voz muito fraca para ser ouvida pelo poder público”, afirma. Vera também participa da feira em Setúbal. Ela lembra que são 21 anos de trabalho coletivo, em um processo que fortaleceu a associação. Ela conta que demorou a se identificar como agricultora familiar. Graduada em Letras, Vera colocou o pé nas salas de aula, mas logo viu que ali não era a sua raiz. “Foi aí que me firmei como agricultora. A organização coletiva deu base para eu me estruturar”, resume.

A história que Vera construiu também é diferente da de seu pai, Manoel Machado da Silva. “Meu pai hoje sofre as consequências por ter trabalhado na produção de cana-de-açúcar 12 horas por dia por 25 anos sem um salário justo. De certa forma, ele foi muito massacrado”, ressalta. Ela conta que o pai, com 82 anos, ainda precisa trabalhar para sobreviver. “Ele teria mais força se tivesse trabalhado de outra forma. Isso cria uma dependência de que a gente só sobrevive se for com trabalho, que não existe nada fora dele. É resquício de uma escravatura que fere a gente. E eu me reconheço como esse ser que está na sociedade, mas que não só vive pelo trabalho”, afirma.

Para Vera, a vida é também lazer, esporte e bem-estar, produzindo saúde — não só para ela, mas para sua comunidade. “Saúde é o bem-estar das outras pessoas que estão ao meu redor, de um animal que eu cuido, da natureza como um todo, o respeito à flora, fauna, e principalmente às pessoas. O respeito ao todo é fundamental na agricultura familiar e agroecológica”, observa. Segundo ela, a agroecologia trabalha um ciclo de processos. “Trabalhar com agroecologia oferece esse espaço para respeitar as pessoas e dar respaldo à natureza. E isso me dá alegria porque eu vejo o processo todo desenvolvido”, diz.
No coletivo, ela afirma que tem mais força para buscar políticas públicas e reivindicar direitos muitas vezes negados. “Quando estamos organizados coletivamente numa associação, alguém escuta a gente porque não é só a minha voz, é a voz da coletividade”, reforça. Ela entende também que, com a comunidade organizada, é obrigação do Estado dar assistência e escutar as reivindicações da sociedade. “Muitas políticas públicas chegam até nós e não fomos ouvidos. Eles fazem um plano para melhorar a qualidade de vida daquele povo sem saber o que ele quer”, pontua.

“O respeito ao todo é fundamental na agricultura familiar e agroecológica.”

Vera Silva

Pesquisadores natos

Maria José da Silva, irmã de Vera, é licenciada em Ciências Agrárias e mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Hoje, ela atua como técnica agrícola da Assim e, no dia em que Radis esteve na comunidade, iria acompanhar agricultores em uma visita técnica. “Mais do que ninguém, os agricultores têm o conhecimento. Eu digo que são pesquisadores natos porque eles observam a realidade, sabem o ciclo de cada cultura, sabem qual o período que é melhor para a colheita, mas existe um saber técnico que a gente oferece para eles aprimorarem o conhecimento prático que possuem”, explica.

Maria exemplifica como a ciência pode apoiar os agricultores no dia a dia: se o mercado oferece produto químico para matar a lagarta que ataca a lavoura, na agroecologia a indicação é do uso de defensivos naturais e insumos existentes nas propriedades. “Em lugar do agrotóxico, nós indicamos o extrato de nim [planta], ou um biofertilizante à base de mamona, junto com cinzas e com outros produtos que podem ser encontrados na propriedade para controlar insetos ou para desenvolver uma cultura”, diz. Maria reforça que o uso desses biofertilizantes melhora o desenvolvimento e o vigor da plantação e oferece um produto de mais qualidade para o consumidor.

Para ela, a produção de alimentos sem agrotóxicos melhora também a saúde. “O alimento é o que faz a gente permanecer diariamente em pé. Tudo isso vai favorecer a saúde do indivíduo, seja agricultor ou consumidor, e a saúde do meio ambiente”, observa. Na visão de Maria, o produto químico controla uma praga, mas desequilibra o ambiente, atingindo a saúde como um todo. “Se a gente usa um produto deste para matar um inseto, pode afetar uma comunidade toda”. Ela diz que a reação vem em cascata. “Se não tem alimento para o sapo que consome insetos em geral, ele vai estar fragilizado numa cadeia maior e a propriedade, o local em que os agricultores produzem, fica com a saúde comprometida”, prega.

“Essa é uma forma de a gente minimizar e agradecer ao plantio.”

Bety

É dia de feira

Nos sábados pela manhã, Bety Asfora vai para o Espaço Agroecológico de Setúbal comprar os produtos para abastecer o consumo semanal de sua família. Moradora do bairro, ela diz que conheceu a feira, primeiro, como consumidora. “Aí eu vi que eles não tinham muito apoio e fui chegando aos poucos”, diz à Radis. Bety é uma das voluntárias da coordenação e aproveita esse momento para conversar com os agricultores e buscar soluções para melhorar o funcionamento da feira. “É mais do que um ponto de venda de produtos sem pesticidas. É um espaço de troca, convivência e aprendizado. Não é chegar, comprar e sair. Temos uma área com mesas e banquinhos e o Sítio Sete Estrelas [produtores do município de Igarassu] leva garrafas de café. As pessoas chegam cedo, conversam, tomam cafezinho, aprendem. Virou um ponto de encontro”, narra.

O Espaço foi criado em 1998 e Bety conta que tudo ia bem até que veio a pandemia. “Desestruturou a vida dos agricultores e consumidores. No começo, foi um caos. A gente ficou preocupada com o que eles iriam fazer se não comercializassem o que produziam”, relembra. Foi aí que, juntamente com os agricultores, a coordenação conseguiu viabilizar um sistema de pedidos via WhatsApp e a entrega de cestas em domicílio. Na época, a coordenação da feira fez a ponte para pedir e encaminhar documentos para que os agricultores pudessem circular na cidade no lockdown. Hoje, esse grupo de voluntários continua a ser o elo que une o campo e a cidade facilitando o processo e informando os agricultores sobre o tempo e o valor de produtos da feira que são vendidos no bairro.

Com a retaguarda montada, a feira não parou na pandemia. Pelo contrário, diz Bety, o Espaço AgroEco de Setúbal foi o único que cresceu nesse período. “Lembrando tudo isso, eu vejo que foi uma fase sofrida, com tantas perdas, mas a nossa feira sobreviveu e cresceu bastante”, ressalta. Hoje, semanalmente, três grupos de consumidores com 250 pessoas recebem a lista de hortifrutigranjeiros disponíveis e fazem pedidos diretamente aos produtores, garantindo a manutenção de uma renda fixa. “Os grupos são abertos no sábado para que as pessoas compartilhem informações sobre o espaço e a alimentação. Estimulamos que os consumidores postem fotos sobre o que aconteceu na feira, o prato que cozinharam e mandem dicas. Isso é muito saudável”, observa.

Em uma área improvisada, são realizadas rodas de conversa e comemorações, como o Dia das Crianças e do Agricultor, Festa Junina e a data de aniversário da feira. Há também coleta de óleo e recicláveis realizada por uma organização local. O espaço também conta com música, artistas de rua e teatro mambembe. Bety também destaca a ação social com as comunidades vizinhas por meio do projeto Mulheres Pró-Ativas. Todos os sábados, ao final da feira, os agricultores doam verduras perfeitas para consumo. “Não é xepa. Essa é uma forma de a gente minimizar e agradecer ao plantio, à colheita, à venda, porque nada na agroecologia se perde. Tudo que não é consumido volta para compostagem, para alimentar animais, para beneficiamento e também para a mesa de outras pessoas”, resume.

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