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No sertão, há uma expressão usada para os dias em que o céu está nublado, prometendo chuva. Diz-se: “Tá bonito pra chover”. É quase uma ode à água, recurso natural precioso, bem público e direito de todos – que, apesar de ser tratado como inesgotável, anda cada dia mais escasso. O volume total de água na Terra é de aproximadamente 1,4 bilhões de quilômetros cúbicos. Mas, de acordo com o Relatório Global sobre Desenvolvimento e Água 2014, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 2,5% desse total (cerca de 35 milhões) é de água doce. Descontado o volume que está na forma de gelo e aquele que se encontra no subsolo, tudo o que resta da água acessível do planeta, disponível em rios e lagos, é praticamente um fiozinho: 0,3%. 

O valor da água é incalculável. O Brasil, gigante, possui 12% das reservas de água fresca do mundo, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pela regulação e gestão dos recursos hídricos no território nacional. Isso deixa o país em posição privilegiada em comparação com outras regiões do globo, mas não é capaz de minimizar os problemas dos recursos hídricos, que vão da distribuição ao acesso – do Oiapoque ao Chuí, são 40 milhões de brasileiros sem acesso à água potável, 21 milhões desses em áreas rurais; além disso, apenas 46% dos domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. O que está errado? Como garantir água em quantidade e qualidade para todos, como dita a Constituição de 1988 e a Assembleia Geral da ONU, de 2010, ao reconhecer formalmente o direito humano à água e ao saneamento? 

Distribuição

O especialista em recursos hídricos da ANA, Marco Neves, diz que os recursos hídricos não estão distribuídos homogeneamente ao longo do território brasileiro, o que explicaria (apenas em parte) o problema. “No Brasil Oeste, que corresponde a áreas da Amazônia, Tocantins e Pantanal, por exemplo, nós temos uma disponibilidade hídrica muito alta e uma baixa concentração populacional”, aponta. Só a região Amazônica acumula 70% dos recursos hídricos brasileiros. Enquanto isso, no Brasil Leste, da Costa Atlântica, que vai desde o semiárido nordestino, com um clima de poucas chuvas e muitos rios temporários, até o Rio Grande do Sul, a situação se inverte: baixa disponibilidade de água – ao Nordeste, cabe menos de 5% –, alto consumo e contingente populacional elevado. 

Para além da distribuição desigual, dos fatores naturais e eventos climáticos extremos (secas e enchentes) e do aquecimento global decorrente da ação humana que se agrava, especialistas concordam que o Brasil tem cuidado muito mal dos seus recursos hídricos, que a população desperdiça água e que o poder público enfrenta problemas com os planos de contingenciamento ou para implementar medidas viáveis e de baixo custo. “O problema não é a falta ou o excesso de chuvas”, diz categórico o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e assessor de Meio Ambiente do Crea-RJ Adacto Ottoni. “O problema é que nossas bacias hidrográficas estão doentes, há desmatamentos, impermeabilização do solo, degradação dos rios, assoreamento”, acrescenta, sugerindo que é preciso investir no reflorestamento e nas obras de intervenção para aumentar a retenção e infiltração da água de chuva no lençol freático.

Adacto avalia ainda que a crise que atingiu em cheio o Sistema Cantareira, em São Paulo, deixando sem água mais de 60 cidades (ver matéria na página 20), é apenas um reflexo do descaso com os mananciais. Ele lembra que o Código Florestal Brasileiro protege os rios e corpos hídricos, proibindo a ocupação, a não ser por vegetação nativa, em curvas de morro, encostas e inclinações acima de 45 graus. “Acontece que essas leis estão na gaveta. A ocupação ocorre de forma desordenada, o poder público não toma as medidas cabíveis e quem paga por essa negligência é a população e o meio ambiente”, diz. “É preciso viabilizar o saneamento, reduzindo a poluição ambiental e garantindo a saúde pública”. 

Descuido

Para o pesquisador Paulo Barrocas, do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/ Fiocruz), o descuido com os recursos hídricos fica evidente com a contaminação dos rios, o desmatamento das margens, o assoreamento dos leitos e a execução de intervenções que alteram o ciclo natural dos ecossistemas, como a retilinização dos cursos dos rios ou a impermeabilização de leitos e margens. “Estamos degradando nossas fontes de água superficiais, sobretudo próximas às grandes áreas metropolitanas do país, o que tem levado a necessidade de buscar água cada vez mais distante das cidades e, portanto, mais difíceis e mais caras de se obter”, avalia Paulo. 

Segundo a ANA, os piores índices de qualidade de rios e lagos estão localizados próximos às grandes metrópoles. O Índice de Qualidade da Água (IQA), medido pela agência, monitora 1,1 mil pontos no país para detectar o nível de habilitação dos recursos hídricos. De acordo com os dados do estudo mais recente, mais de 80% dos pontos apresentam boa qualidade. No entanto, a análise dos 550 pontos localizados perto de áreas urbanas mostra que só 48% deles encontram-se em boas condições. 

Água é saúde

Imagine um dia sem beber água, dois sem cozinhar, uma semana sem banho. A água é a mais básica das necessidades humanas e a prioridade para o consumo pessoal é garantida por lei. Não é possível viver sem água e a escassez desse recurso provoca impacto direto na saúde pública, podendo deflagar surtos de doenças na população. À Radis, Paulo explica que a falta de serviços de saneamento tem consequência direta no bem estar da população. “Nestes serviços estão incluídos não só a oferta de água com qualidade e em quantidade adequadas, mas também a existência de sistemas de esgotos, de gestão dos resíduos sólidos e de drenagem”, diz. 

Por exemplo, a ausência de sistema de abastecimento de água potável fará com que as pessoas passem a buscar fontes alternativas pouco seguras, ficando expostas ao risco de contrair doenças. É o caso da procura por água em poços desativados, da reserva de água em recipientes improvisados ou da compra de galões de água de qualidade duvidosa. Além disso, ele acrescenta que pouca água disponível afeta a higiene das pessoas e dos locais onde vivem. “E a falta de higiene adequada é em si outro fator de risco para se infectar por outras doenças”, diz Paulo. “O consumo de água de qualidade protege a saúde, previne doenças e determina a qualidade de vida do homem”. 

Saneamento inadequado

Há inúmeras doenças de veiculação hídrica, se entendemos que o termo se refere àquelas transmitidas pelo consumo de água ou alimentos contaminados por fezes. Doenças diarreicas, hepatite A, febre tifoide e paratifoide, cólera e parasitoses, estão entre elas. Há um termo apropriado para classificá-las, de acordo com o pesquisador da Fiocruz: Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI), justamente por considerar outras formas de transmissão, como a picada de insetos – a exemplo da dengue e da malária – ou o contato do corpo com águas contaminadas, caso da leptospirose e da esquistossomose. 

“As DRSAI estão associadas ao abastecimento de água deficiente ou à inexistência de esgotamento sanitário ou à contaminação por lixo ou às condições precárias de moradia ou ainda à drenagem imprópria, sendo na maioria das vezes uma mistura destes fatores”, diz Paulo. No atual cenário brasileiro, os índices de proliferação dessas doenças é considerado alto. Os dados mais recentes disponíveis no site do Datasus/ MS, referentes ao período de janeiro a setembro deste ano, sobre internações por doenças diarreicas, mostraram 212 mil internações em todo país, sendo a maioria, cerca de 50%, na região Nordeste. Em relação à hepatite A, foram diagnosticados 2,8 mil casos em 2014, sendo a maior incidência no Norte e Nordeste, com 39% e 36%, respectivamente. De acordo com a ONU, 3,5 milhões de pessoas morrem no mundo, anualmente, por problemas relacionados ao fornecimento inadequado da água, à falta de saneamento e à ausência de políticas de higiene. 

Por outras palavras, Paulo explica ainda que, se não temos sistemas de esgotamento sanitário, as fezes acabam sendo lançadas no ambiente de forma inapropriada contaminando solos e águas com organismos patogênicos. Ao entrar em contato com esses ambientes, pisando descalço no chão ou consumindo água sem qualidade, a população pode ser infectada por bactérias, vírus e parasitas. 

Em um contexto ainda longe do ideal, o pesquisador diz que a oferta pelo poder público dos serviços de saneamento adequado e a atuação articulada e integrada do Sistema de Vigilância em Saúde, no âmbito do Sistema Único de Sáude (SUS), têm papel fundamental na prevenção e controle das DRSAI. 

Segurança hídrica

Um dos maiores desafios para a garantir água em qualidade e quantidade para todos no Brasil, de acordo com o especialista da ANA, Marco Neves, é a integração entre a Política Nacional de Recursos Hídricos e as políticas setoriais – indústria, energia, transporte, saneamento, irrigação. “São usos de água e precisam andar juntos”, diz, indicando um segundo desafio, ainda mais árduo. Trata-se de construir um ambiente de segurança hídrica no Brasil, o que significa disponibilizar água de qualidade para todos os usos e para manutenção da própria natureza, dos próprios ecossistemas. Marco diz que já está em curso a construção de um Plano Nacional de Segurança Hídrica, por parceria entre a ANA e o Ministério da Integração Nacional, cujo objetivo maior é suprir a demanda por água no país, algo que, em sua opinião, é totalmente viável. 

As pesquisas científicas também podem contribuir, e muito, para esse ambiente de segurança hídrica. Referência no assunto, o professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Eduardo Morelli Tucci disse à Radis que a pesquisa pode desenvolver tecnologia mais eficiente voltada para o clima brasileiro e para áreas urbanas densas com pouco espaço ou, ainda, para controle e tratamento de águas com toxinas, além de redes eficientes de coleta e separação de sistemas. 

Mas não é só. As pesquisas também podem produzir evidências e dados científicos sobre os diferentes aspectos do problema, fornecendo informação qualificada para a população e o poder público. Na Fiocruz, o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) desenvolveu o Atlas Água Brasil, em parceria com o Ministério da Saúde, um sistema digital de visualização e análise de indicadores sobre a qualidade da água por município. 

Na Ensp, está em andamento estudo sobre a qualidade da água de Manguinhos, no Rio de Janeiro, por meio da coleta de amostras em três unidades de saúde, 12 unidades escolares e em cerca de 250 domicílios. “A partir das análises de vários parâmetros de potabilidade, poderemos fornecer um retrato da qualidade da água consumida no território para a população, identificar os maiores problemas e riscos observados durante o estudo e indicar possíveis medidas para mitigar estes problemas”, diz Paulo Barrocas, que coordena o estudo. 

Água não é mercadoria

Em documento elaborado recentemente, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) vaticina que, nos próximos anos, a luta pelo controle das águas estará no centro de uma disputa acirrada. De um lado, os que enxergam a água da forma como se apresenta na Declaração Universal dos Direitos Humanos; de outro, os grandes grupos privados que querem transformá-la em mercadoria para gerar lucro. Para Gilberto Cervinski, que integra a coordenação nacional do MAB, a ameaça é a mesma que o setor de energia elétrica enfrentou nos anos 1990: a privatização dos recursos. 

Gilberto avalia que, desde 2008, o “negócio da água” ganhou mais força e as estratégias mundiais de mercantilização têm se intensificado, principalmente em países onde a água ainda não foi privatizada. Nesse caso, segundo o MAB, o Brasil vira alvo fácil. “Temos a Bacia Amazônica e a Bacia do Prata, consideradas as duas maiores vazões hidrográficas da face da Terra, e temos o Aquífero Guarani, considerado a maior reserva de água mineral do mundo. Isso desperta o interesse dos maiores grupos econômicos privados mundiais”, diz o documento do MAB. “No Brasil, estas grandes empresas querem controlar nossas reservas e também tomar conta dos serviços públicos de água e saneamento, principalmente nas médias e grandes cidades”. 

Em abril de 2013, jornais e sites na internet fizeram circular declaração do presidente do grupo suíço Nestlé, Peter Brabeck-Letmathe, de que é necessário privatizar o fornecimento da água, para que a sociedade tome consciência de sua importância. Como veiculou o jornal Brasil de Fato (24/4), na opinião do empresário, a água deveria ser tratada como qualquer outro bem alimentício e ter um valor de mercado, estabelecido pela lei de oferta e procura. 

Gilberto reforça que as experiências já realizadas de privatização da água mostraram-se desastrosas, ineficientes e altamente prejudiciais aos povos, provocando altas tarifas, baixa qualidade dos serviços e afetando principalmente as populações mais pobres. O documento do MAB cita que países e regiões que viveram a experiência de privatização estão agora revertendo os processos para controle público. Foi o que aconteceu em Paris, que recentemente reestatizou os serviços de saneamento. Para o coordenador do MAB, enquanto o Brasil estiver tomado por um modelo que prioriza os interesses do capital, vai perder a batalha da água. 

Marcos legais de uma política para as águas

No Brasil, a discussão da água como direito humano vem desde 1934, quando o Código de Águas estabelecia diretrizes legais sobre como lidar com os bens ambientais. Mas, se a Constituição de 1988 guarda um capítulo específico para a questão ambiental e os recursos hídricos, é somente com a Rio 92 – naquela que ficou conhecida como a mais importante conferência da história sobre meio ambiente –, que o cenário no país se torna propício para uma evolução dos debates em torno do tema. 

Nesse ambiente, fica claro que, como a água é bem público, a sociedade também participa da sua gestão e isso dá origem a um esforço para promulgar uma Política Nacional de Recursos Hídricos. Cinco anos depois, em 1997, o Brasil ganha o seu Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabelecido pela Lei nº 9.433/97, um dos instrumentos que orienta a gestão das águas no país. O conjunto de diretrizes, metas e programas que constituem o PNRH foi construído em amplo processo de mobilização e participação social, e o documento final, aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), em 30 de janeiro de 2006. 

O Plano é coordenado pelo Governo Federal, Ministério do Meio Ambiente e Agência Nacional de Águas (ANA). A Constituição estabelece que a água é um bem público de domínio da União ou dos estados, e o acesso a esse bem é autorizado pela ANA ou por agências reguladoras estaduais, por meio de outorgas, mediante algumas condicionantes. A essas agências, cabe ainda monitorar e fiscalizar as concessões e serviços prestados. Os municípios são responsáveis pelo saneamento.

Celebrado como exemplar, o PNRH tem, entre seus objetivos, garantir a disponibilidade hídrica, racionalizar o uso da água e promover a gestão de eventos extremos, como secas e enchentes. “Temos uma das melhores leis de água do mundo”, elogiou Glauco Kimura, do Observatório das Águas, durante encontro que propôs alternativas para a crise hídrica em São Paulo. “Há instrumentos muito importantes, como a cobrança pelo uso da água, e existe todo um arcabouço legal bastante avançado, mas eles não saem do papel. A Lei não é implementada”. Como observou à Radis o diretor da ANA, Marco Neves, a lei fomenta a participação social na gestão dos recursos hídricos e o momento é oportuno para colocá-la em prática.

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