Thiago Ribeiro, tradutor e fotógrafo, já escutou de uma fisioterapeuta que não sabia que existiam pessoas negras com t21. “O problema já começa ao se ignorar essa existência. Se 50% das crianças que nascem com síndrome de Down podem ter alguma cardiopatia e se há um grupo que não tem o atendimento adequado, realmente essa pessoa não irá existir”. Thiago é pai de Noah, 3 anos, e lembra que quando seu filho nasceu não conseguia achar muitas informações sobre crianças negras com a trissomia do cromossomo 21. “Se já tivesse mais [informação] sobre o assunto quando ele nasceu, teria feito toda a diferença para nós”, comenta.
Alyne Gonçalvez também é mãe de uma criança com t21 de 3 anos, Izadora, chamada carinhosamente de Iza. Quando Izadora nasceu, naquele primeiro momento da pandemia, ela se sentiu um pouco perdida: “Achei que seria uma mãe que partiria para cima, mas em um primeiro momento me senti paralisada”, afirma Alyne, mãe solo também de Maria, 11 anos. Mas passado o primeiro momento, começou a correr atrás de informações e direitos não só por Iza, mas por outras crianças, na cidade onde vive, Carapicuíba (SP).
Muitas vezes teve que recorrer ao atendimento na rede particular — no caso, por exemplo, das sessões de fisioterapia. “No meu município, tinha uma fila de espera que ia de 2 anos a 2 anos e 8 meses para a realização dos atendimentos básicos. Não temos cardiologista pediátrico; então, infelizmente, conheço família de criança que veio a óbito pela demora no diagnóstico e no encaminhamento para cirurgia cardíaca. Vejo famílias que estão na mesma situação que eu e que não têm como correr atrás”, relata.
Thiago e Alyne se conheceram através de participações em eventos pela mesma luta e fundaram o InvisibiliDOWN (@InvisibiliDOWN) em 2022, com o objetivo de garantir voz e visibilidade a pessoas negras com t21, que têm sua imagem negligenciada socialmente. A semente do InvisibiliDOWN, inclusive, surgiu a partir da exposição fotográfica que Thiago montou com os registros de seu filho Noah.
Outro objetivo do movimento é colher dados para que seja possível ter mais informações sobre este grupo populacional. “Lançamos a pesquisa sobre as pessoas negras com síndrome de Down e seus cuidadores para tentarmos entender como essas pessoas e famílias enxergam ou sentem o acesso ao sistema de saúde no Brasil. É o caminho, porque se não tem nenhum pesquisador fazendo, nós vamos fazer”, aponta.
Para Laís Silveira Costa, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e cofundadora do movimento Acolhe PcD, a falta de estatísticas é um fator preponderante que mostra o quanto a desinformação impacta na formação da gestão pública em saúde. “O fato de crianças com síndrome de Down terem maior prevalência de cardiopatia e, muitas delas, dependerem de uma correção cirúrgica, somado ao fato de não termos estatísticas de bebês negros localizados em territórios vulnerabilizados, do acesso a essa cirurgia ou de terem morrido pela falta ou pela demora em conseguirem a intervenção cirúrgica, já explica um pouco do cenário social que a gente tem e o que a gente não tem”, analisa.
Os fundadores do InvisibiliDOWN passaram a apresentar em suas redes e site uma pesquisa norte-americana que mostra que a população negra com síndrome de Down tem a expectativa de vida reduzida a 25 anos, em comparação ao homem branco com a mesma condição genética que pode chegar a uma média de 50 anos de idade. “Temos o recorte da população negra com deficiência, mas, de maneira geral, a população negra é tratada dessa forma. Em qualquer indicador social que você vá fazer uma análise, vai dar conta disso: menor renda, menos qualidade de vida, menor expectativa de vida, menos acesso aos serviços de saúde”, analisa Thiago.
Apesar de serem questionados a todo o momento de que os dados não são do Brasil, Thiago não tem dúvidas de que o resultado daqui seria muito pior. As críticas recebidas são permeadas pelo racismo, ele pontua. “Para além do que estamos propondo para garantia de vida das pessoas negras com síndrome de Down, tem a dificuldade também de ser um homem preto falando sobre isso. As pessoas contestam por contestar, sem trazer nenhuma informação para refutar o que estou dizendo e aí chego à conclusão de que é porque sou eu, um cara preto, que está falando”, conclui.
“Sou feliz”
Através do InvisibiliDOWN, conhecemos Alexander Malaquias e sua mãe Maria Célia. O rapaz de 20 anos é negro, pessoa com t21 e morador da capital paulista, onde vive com os pais e a irmã de 25 anos. Gosta de música e pratica capoeira. Já fez natação, mas precisou parar por causa de uma otite mais complicada que o levou a uma cirurgia no ouvido. Maria Célia afirma que sempre o estimulou, mas que houve problemas no processo de escolarização. “Na escola falavam que ele não queria fazer as atividades, mas em casa eu conseguia fazer as lições com ele”, conta.
O rapaz já participou de um projeto de educação e socialização para o trabalho na Associação para o Desenvolvimento Integral do Down (Adid) e foi muito bom, segundo a mãe. “Para a socialização foi ótimo. Ele queria trabalhar, mas quando veio a pandemia, fechou tudo e não viu mais os amigos. Quando vê as crianças passando pela janela, ele fala ‘vamos para a Adid’”, diz Maria Célia, que o estimula a sair, mas nem sempre ele está com vontade e passou por um momento em que ficou um pouco mais agressivo.
Há 6 meses, Alexander passou a ser acompanhado pelo Ambulatório de Envelhecimento e Síndrome de Down, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). A família percebe uma melhora desde que ele começou a frequentar o serviço. O jovem nasceu com uma cardiopatia, mas não precisou de cirurgia, apenas de acompanhamento para a evolução do caso. Quando criança, também fez terapia com psicólogo. “Não tomo remédio”, responde, quando perguntado se faz uso de alguma medicação permanente.
Maria Célia afirma que em casa ele gosta muito de conversar, mas acontece um silenciamento quando está em outros espaços. “Como ele tem dificuldade para falar, as pessoas hoje em dia não querem ouvir, não tem paciência. Às vezes ele quer conversar e fala ‘oi? Tudo bem?’. E as pessoas até já saem. Eu já respondi em uma situação dessas: ‘hoje você está fazendo isso com o meu filho e se amanhã for com você na velhice? Você vai gostar?’”, relata. Eu o pergunto se ele fica triste quando as pessoas não o deixam falar. Ele responde que sim, mas logo depois muda de assunto, dizendo que gosta de música.
Outra situação que sempre os acompanhou foi o racismo: “Como Alexander tem a pele um pouco mais clara que a minha, uma vez chamaram a polícia para me levar quando ele ainda era bebê”, relata Maria Célia. Outros episódios ocorreram quando ele ainda estava na escola, como em festa de aniversário de coleguinhas. Ou mesmo o fato de ter passado por uma escola particular gerava comentários como: “Deve ser bolsista”, relembra a mãe.
Ainda há as situações em que o capacitismo e o racismo andam de mãos dadas, como no transporte público, conta a mãe de Alexander. “Quando estou no metrô com ele, sempre fico atenta, porque um dia ele estava sentado e uma mulher veio e falou: ‘Levanta do lugar’. Ele abaixou a cabeça. E aí eu falei: ‘O mesmo direito que a senhora tem, ele tem também e desse lugar o meu filho não vai sair’”.
Mesmo com todas as adversidades, eles afirmam que procuram ser felizes. “Eu sempre peço a Deus saúde e paciência para poder ajudar meu filho”, diz Maria Célia. Ela afirma que sua mãe, de 94 anos, foi quem plantou a semente da luta contra a discriminação, quando lá atrás recomendava aos filhos pequenos que nunca rissem ou fizessem algo prejudicial a alguma pessoa com deficiência. No momento Maria Célia procura novas atividades para Alexander. Eu peço para ele mandar uma mensagem aos nossos leitores. Ele diz: “Sou feliz”.
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