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Muito provavelmente você já passou por uma consulta médica. De igual modo, já deve ter se deparado com cartazes e folhetos de campanhas de saúde nas unidades de atendimento que frequentou. Também já deve ter tido contato com anúncios, pronunciamentos e orientações técnicas sobre determinadas medidas preventivas e de cuidado, por meio de veículos de mídia, e até mesmo buscado informações sobre saúde (ou doenças) na internet. Esses hábitos corriqueiros que envolvem não somente o acesso a informações sobre saúde, mas também a sua compreensão adequada, dizem respeito a um conceito chamado literacia em saúde que, em outras palavras, remete à seguinte pergunta: As pessoas de fato compreendem o que leem, ouvem e acessam sobre temas relacionados à saúde?

“Literacia em saúde é o conjunto de habilidades ou competências desenvolvidas e utilizadas por cada indivíduo para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre o cuidado com sua saúde ou de terceiros”. Essa definição está presente no livro Literacia em Saúde, de autoria de Frederico Peres, Karla Rodrigues e Thaís Lacerda, publicado em 2021, pela Editora Fiocruz, integrando a coleção Temas em Saúde. A obra já é um dos principais referenciais teóricos no país sobre este tema ainda pouco debatido. “Queríamos que o livro fosse o início de uma discussão. Que não fosse um texto muito restrito, voltado para um segmento mais específico da população, como o acadêmico, mas para atores da prática do campo da saúde, estudantes, uma audiência mais ampla”, revela Frederico, um dos autores, à Radis.

O termo tem origem na expressão de língua inglesa healthy literacy. Em tradução para outros idiomas, literacia pode ser tratada como alfabetização ou letramento. No caso da literacia em saúde, entretanto, a tradução no Brasil não segue exatamente esse conceito, devido ao entendimento de que ultrapassa o domínio da linguagem ou da educação formal. Conceitualmente, a literacia em saúde se aproxima do campo da educação em saúde e tem sido pensada como estratégica para o fomento de ações de cuidado. “Quanto mais desenvolvidas forem as habilidades e competências que denominamos de literacia em saúde, melhores condições temos para a promoção da saúde”, afirma o pesquisador.

Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Austrália foram os países que iniciaram as discussões sobre a literacia em saúde, na década de 1970. Para o autor, ao se levar em conta os contextos sanitários desses países pioneiros, que eram fortemente marcados pelo aumento das doenças crônicas não-transmissíveis como principais causas de adoecimento e morte, “buscava-se compreender o peso da literacia em saúde de indivíduos e grupos populacionais nas estratégias de autocuidado e na capacidade de engajamento em torno de programas de promoção da saúde”. Já no Brasil, o campo emerge entre o fim dos anos 1990 e início de 2000, sendo que os primeiros trabalhos acadêmicos foram publicados apenas em 2005.

Mas qual seria, na prática, a relevância dessa temática? Em diversas passagens do livro, a resposta é bem objetiva e se refere ao desenvolvimento dessas habilidades e competências para o cuidado com a melhoria nos hábitos de saúde e na qualidade de vida. “Frequentemente, um indivíduo com literacia em saúde mais desenvolvida é considerado mais capaz de navegar pelo sistema de saúde, de participar dos processos decisórios, de se engajar no enfrentamento de situações e questões que colocam a saúde da coletividade sob risco, entre tantas outras situações próprias do cuidado de saúde”, afirmam os autores, na publicação.

Da teoria à prática

Frederico Peres explica ainda que o termo estudado por ele advém do conceito mais genérico de literacia, portanto, também relacionado ao desenvolvimento da alfabetização e escrita (littera = letra). Embora no caso da literacia em saúde a linguagem escrita não seja o único elemento a ser observado, sua relevância é inquestionável. “A linguagem, seja ela textual, oral ou visual, é um elemento fundamental do processo de significações de informações em saúde”, relatam os autores. O erro, entretanto, seria limitar-se a ela. Como adverte outra passagem da obra: “O problema, que vem do próprio campo de estudos e práticas sobre a literacia em saúde, na atualidade, é priorizar as questões de linguagem, em detrimento dos demais domínios e espaços de produção da literacia em saúde nas comunidades e na população em geral”.

Tatiane Brito é farmacêutica e, no segundo semestre de 2022, ingressou na equipe multidisciplinar da Estratégia Saúde da Família (ESF), em Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em dezembro do mesmo ano, a profissional relata ter atendido uma idosa de 77 anos que havia interrompido por algumas semanas seu tratamento medicamentoso simplesmente por não ter compreendido a receita médica que lhe fora fornecida em uma consulta cardiológica. Com receio de confundir as medicações, ela suspendeu o uso dos remédios até buscar consulta na unidade do SUS. Ao ter o receituário médico reescrito e explicado em detalhes pela farmacêutica, a idosa pôde retomar o tratamento com segurança.

Casos em que os pacientes possuem dificuldades em entender ou interpretar as receitas médicas, segundo Tatiane, são comuns em sua rotina de trabalho. “Isso ocorre muitas vezes, principalmente quando se trata de pacientes idosos. Durante o atendimento, utilizando uma linguagem que facilitasse o entendimento, expliquei a ela sobre cada medicamento prescrito e a importância de utilizá-los nos horários corretos”, relata. 

A farmacêutica destaca a importância desse tipo de cuidado e atenção. “A compreensão por parte do paciente é de extrema importância, pois a baixa ou ausência de adesão ao tratamento medicamentoso pode comprometer o efeito esperado”. E complementa: “Há pacientes que saem da consulta médica já se esquecendo ou confundindo as orientações, e isso pode acarretar falhas no tratamento, como a utilização incorreta dos medicamentos, ou até mesmo ao abandono do tratamento, o que pode impactar significativamente na qualidade de vida daquele indivíduo”.

O caso relatado levanta outra questão pertinente e que vem ganhando espaço nas discussões técnicas e acadêmicas que abarcam a saúde coletiva: a efetiva participação dos usuários na definição do tipo de tratamento médico a que são submetidos. A literacia em saúde abrange essa questão ao entender que um nível mais elevado de compreensão em relação às informações em saúde “empodera” os pacientes, no sentido de torná-los mais autônomos. Autonomia essa que não deve ser confundida com transferência de responsabilidade ao indivíduo pelo cuidado com a sua saúde — advertem Frederico e as demais autoras do livro: “É preciso reconhecer que essas habilidades e competências não são inatas; são parte do direito à saúde e, por isso, devem ser desenvolvidas nos diferentes espaços de encontro entre profissionais de saúde e usuários”, afirmam, na obra. 

Comunicação horizontal

A literacia em saúde também visa horizontalizar os processos de comunicação, muitas vezes implementados “de cima para baixo” em campanhas para orientações de saúde. Os autores do livro entendem que os saberes para o cuidado de si e do outro devem ser construídos dialogicamente, considerando especificidades, vivências e hábitos do público com o qual se pretende interagir. Tatiane confirma esse entendimento com base no que vivencia em seu trabalho, na ponta da assistência: “Acredito que considerar a particularidade de cada paciente, e priorizar sempre um atendimento humanizado, que venha facilitar a compreensão e o comprometimento com o tratamento, são boas estratégias para diminuir os ruídos nessa relação”.

Segundo Frederico, seu campo de estudos, portanto, se configura como uma espécie de contraponto aos modelos normativos e verticalizados de transmissão de informação e de transferência de conhecimento. O pesquisador defende que a capacidade crítica deve ser um diferencial no consumo de informações e orientações de saúde. “O indivíduo com essa habilidade desenvolvida poderá avaliar se aquela informação é crível, pertinente, fundamentada e se interessa a ele. Essa é uma crítica que vem com o modelo de transmissão da comunicação e que a literacia em saúde tenta romper”, ressalta.

Em relação aos instrumentos internacionais que avaliam o “grau de literacia” de um indivíduo ou de uma determinada coletividade, o pesquisador reconhece sua importância, porém enxerga sérias limitações, uma vez que eles desconsideram os conhecimentos não-formais e não avançam além do diagnóstico. “O conjunto de saberes vai além do letramento formal. Oralidade e ancestralidade também são importantes, mas instrumentos de medida não os captam e são ineficazes nesse sentido. Acabam avaliando e priorizando saberes formais estruturados em linguagem escrita”, pondera.

“O conjunto de habilidades ou competências desenvolvidas e utilizadas por cada indivíduo para buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações sobre o cuidado com sua saúde ou de terceiros é chamada de literacia em saúde.”

A covid e a infodemia

O livro Literacia em Saúde, idealizado em 2017, foi todo escrito no contexto da pandemia de covid-19; portanto, traz situações bastante atualizadas e considera o cenário epidemiológico que temos vivido, bem como aborda os comportamentos observados durante o ápice da crise sanitária global. Além da epidemia ocasionada pelo novo coronavírus, sanitaristas e instâncias científicas também identificaram a ocorrência de uma infodemia, que consiste em uma epidemia de informações conflitantes, acarretando um cenário de desinformação. Isso porque com as possibilidades amplas de produção e disseminação de conteúdo em larga escala ofertadas pela internet, por meio das redes sociais digitais e aplicativos de grupos de mensagens eletrônicas, a veiculação de informações das mais diversas procedências foi alavancada no decorrer da pandemia. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), infodemia pode ser definida como excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa. Ainda de acordo com a organização, “a palavra se refere a um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico”, como foi a pandemia. “Nessa situação, surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa. Na era da informação, esse fenômeno é amplificado pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus”, afirma o documento. A entidade reconhece a ocorrência de infodemia — e consequentemente de desinformação — como um dificultador extra no enfrentamento à covid-19.

Ademais, vale destacar que muitas dessas falsas informações seriam também geradas por motivações político-ideológicas. Em coluna publicada em dezembro de 2020, na revista Cult, o doutor em filosofia e professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Wilson Gomes, classifica as fakenews como “ocorrência do campo da política e não do jornalismo”. Já Frederico diz que a literacia em saúde também contribui especialmente no senso crítico para a filtragem entre o consumo ou descarte das muitas informações que circularam no auge do período de incertezas: desde o encorajamento à adoção de supostos tratamentos profiláticos ao uso de medicamentos ineficazes contra o novo coronavírus, passando ainda pelo questionamento de medidas protetivas mais seguras e consagradas, como o distanciamento social e especialmente a adesão à vacinação.

“Entre os muitos desafios desvelados ou aprofundados pela pandemia de covid-19, podemos destacar a baixa capacidade, por parte de diferentes segmentos da população, de reconhecer a importância e valorizar o papel da ciência e do conhecimento científico como elementos centrais para o enfrentamento de uma emergência de saúde pública como a vivida, sem precedentes na história recente da humanidade”, afirma o pesquisador. E complementa seu pensamento citando algumas das situações que marcaram o comportamento negacionista de parte da sociedade no curso da pandemia: “Vimos da cloroquina à resistência às medidas preventivas”, relembra.

Frederico também defende que, no caso da disseminação de falsas notícias e conteúdos enganosos, um dos principais ganhos com o desenvolvimento da literacia em saúde seria a competência crítica para a avaliação das informações recebidas. “Quanto mais desenvolvida for a literacia em saúde de um indivíduo ou grupo, maior sua capacidade de avaliar criticamente informações que se apresentam na contramão do conhecimento científico”. A resposta da sociedade aos desafios colocados pela pandemia poderia ter sido mais efetiva se precedida de estratégias sistemáticas de desenvolvimento dessa habilidade no conjunto das políticas de saúde, destaca o pesquisador.

E o que o Estado tem a ver com isso?

Embora não tenha uma política específica para o desenvolvimento da literacia em saúde junto à população, na contramão de países como Estados Unidos e Portugal, o Brasil possui determinadas políticas públicas que contemplam alguns de seus principais preceitos, como o estímulo à autonomia e o empoderamento dos indivíduos na tomada de decisões. No livro, os autores dão como exemplos dessas diretrizes a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (Pnan, atualizada em 2013), a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS, atualizada em 2014) e a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab, atualizada em 2017).

“Como quaisquer habilidades e competências, a literacia em saúde pode — e deve — ser desenvolvida por meio de ações de educação em saúde, sobretudo aquelas sustentadas por uma visão emancipadora e desenvolvidas por estratégias que considerem os saberes e competências dos indivíduos e promovam espaços para a significação comum de informações em saúde”, defende o pesquisador. Acerca da produção acadêmica sobre o tema, Frederico considera importante que elas contribuam para a proposição de políticas públicas, visando à promoção da saúde da população a partir da ampliação do acesso a instrumentos e ações de saúde disponibilizadas pelo SUS. “A literacia em saúde, quando bem desenvolvida, facilita o engajamento dos indivíduos em torno de ações visando à melhoria dos serviços e programas de saúde a eles disponibilizados, numa perspectiva de atuação cidadã em prol da saúde, individual e coletiva”, completa.

Em sua visão, essa perspectiva crítica e emancipadora sobre políticas e serviços confere um protagonismo ao usuário e incentiva a população a atuar ativamente na busca por melhores condições individuais e coletivas de saúde, gerando benefícios diretos. “O desenvolvimento da literacia em saúde facilita com que os indivíduos se engajem nas estratégias de cuidado e se sintam mais atuantes, na perspectiva cidadã, em buscar garantias dos direitos, entendendo que, no Brasil, saúde é direito e os cidadãos têm o dever de buscar essa garantia”, conclui.

Fiocruz promove mostra de Literacia em Saúde

Um dos desdobramentos da publicação do livro foi o crescimento da pauta nas discussões institucionais na própria Fiocruz. Frederico Peres relata que especialmente a partir do lançamento da obra foi iniciado um movimento de identificação e aproximação de grupos que pesquisavam a temática na instituição. Essa confluência resultou na realização da I Mostra Brasileira de Literacia em Saúde, em outubro de 2022. A iniciativa promovida pela Fiocruz reuniu 80 trabalhos, dos quais 25 foram apresentados de forma síncrona durante o evento, em formato on-line, e os outros 55 serão disponibilizados posteriormente, também em apresentação por vídeo, com vistas a ampliar a divulgação das propostas e reflexões geradas pela mostra.

A organização da atividade ficou a cargo da Coordenação de Promoção da Saúde da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS), da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) e do Canal Saúde, instâncias da Fiocruz. O principal objetivo da atividade foi identificar e apresentar experiências nacionais de aplicação do conceito de literacia em saúde nas mais diversas práticas relacionadas com a atenção, a vigilância e a promoção da saúde. A proposta agora é reunir os trabalhos selecionados em uma publicação científica sobre literacia em saúde e promoção da saúde, com lançamento previsto para 2023. Saiba mais em: https://bit.ly/literaciaemsaudenafiocruz

Exemplos do uso da literacia em saúde:

  • Ao ler a bula de um medicamento;
  • Ao procurar um serviço de saúde;
  • Ao seguir um tratamento médico;
  • Ao interpretar as informações de um folder sobre saúde;
  • Ao acessar orientações sobre mudança de hábitos para qualidade de vida;
  • Ao conversar com alguém sobre medidas de prevenção e cuidados;
  • Ao pesquisar informações sobre saúde na internet;
  • Ao analisar criticamente informações de saúde antes de acatá-las ou rejeitá-las;
  • Ao não seguir orientações científicas comprovadas e optar por discursos negacionistas e teorias conspiratórias sobre saúde.
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