Ainda muito jovem, Mateus Brito saiu da comunidade quilombola de Lagoa de Maria Clemência, em Vitória da Conquista, na Bahia, para estudar em Salvador. Partiu sem olhar para trás, em busca de oportunidades. O tempo, no entanto, fez com que ele fizesse um movimento que lembra a ideia de Sankofa, símbolo da escrita adinkra utilizado pelos povos acã, na Costa do Marfim e em Gana, para sintetizar o provérbio que diz: “Nunca é tarde para voltar e pegar o que ficou para trás”. Por meio da militância pelos direitos da população quilombola, ele se reconectou com seu território e seus ancestrais, perpetuando um legado de lutas existente na família.
Hoje, é uma das principais lideranças à frente da criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (Pnasq), que ainda não saiu do papel. Essa agenda política esteve presente na 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2023, o que levou o Ministério da Saúde (MS) a constituir um Grupo de Trabalho (GT) voltado para o tema, do qual participou Mateus. “A gente nunca teve a saúde quilombola inserida de forma específica na agenda do Ministério da Saúde. Agora a gente tem cobrado a efetivação dessa política”, ressalta.
Depois da realização de uma consulta pública e do primeiro Seminário Nacional de Saúde Quilombola, em agosto de 2025, a expectativa era de que a Pnasq fosse lançada no último Novembro Negro. Porém, o mês foi na verdade marcado pelo recuo do Ministério da Saúde com relação à agenda da saúde quilombola. “A gente sabe que a política está pronta e agora basta a decisão de colocar para votar, mas na verdade o que a gente tem visto é que o MS recuou um pouco nesse processo, o que é preocupante”, afirma.
Mateus conversou com Radis para a edição especial sobre os 35 anos do SUS e falou sobre a importância do princípio da equidade para que seja garantido o que está na Constituição Federal: a saúde como direito de todas as pessoas. Integrante do Coletivo Nacional de Saúde Quilombola da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), mestre e doutorando pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), ele tem pautado a necessidade de uma política de saúde atenta às necessidades da população quilombola. Esse também foi o tema de sua dissertação de mestrado, concluída em 2024 na UFBA, com o título “Aquilombar a saúde, contracolonizar as lutas”.
“A nossa luta é para que o SUS realmente consiga dialogar com a realidade das comunidades quilombolas, que consiga entrar dentro dos territórios, levando os serviços de saúde de uma forma que respeite as tradições e a cultura”, defende. Ele também explicou que os saberes ancestrais, transmitidos de geração a geração por raizeiros, erveiros, benzedeiras e parteiras, foi essencial para garantir o cuidado a essas populações, ao longo do tempo, muito antes da criação do Sistema Único de Saúde. “O SUS tem 35 anos, ou seja, são 450 anos que essas comunidades tiveram de se cuidar de alguma forma. A única forma de cuidado possível era a partir das medicinas quilombolas, desses saberes ancestrais, que existem até hoje”.

Como a luta por uma Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (Pnasq) vem se organizando nas últimas décadas?
Em 1995, aconteceu a Marcha Zumbi dos Palmares, em Brasília, pelos 300 anos de imortalidade de Zumbi dos Palmares. Foi o primeiro encontro nacional dos quilombolas. Desde os primeiros documentos que datam dessa época, a pauta da saúde já aparece como algo prioritário, pensando na garantia dos direitos quilombolas dentro dos territórios. E assim veio se construindo o debate. Por muito tempo, a saúde quilombola ficou como um subtema ou subtópico da saúde da população negra ou da saúde das populações do campo, das florestas e das águas. A partir da covid-19, foi um momento em que se acirrou a necessidade de ações e políticas específicas para a saúde dessa população. Os quilombos tiveram que contar os seus próprios mortos, porque a gestão Bolsonaro não incluiu essa população no grupo prioritário para vacinação contra a covid. E não existiam dados sobre a saúde dessa população. A Conaq teve que ir até o STF para garantir a vacinação prioritária. Os indígenas também tiveram que fazer isso, porque também foram retirados dos grupos prioritários para vacinação da covid.
O que esse descaso em relação à população quilombola mostrou?
Esse processo de lutas escancarou o abandono do Estado Brasileiro com relação à saúde da população quilombola. Foram os próprios quilombolas que fizeram boletins epidemiológicos para poder saber quantas pessoas estavam com covid, quantos tinham morrido. Esses documentos trazem o dado de que a população quilombola morreu 5% a mais, proporcionalmente, do que a população geral de covid-19. A votação da ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 742, sobre ações emergenciais de combate à covid-19 nas comunidades quilombolas] no Supremo foi uma vitória histórica. Os próprios quilombolas tiveram que ajudar no cadastramento das famílias para fazer com que essas vacinas chegassem aos territórios. Naquela época, ainda não existiam dados sobre onde estavam os quilombolas. Hoje a gente tem isso, por conta do Censo do IBGE [de 2022], o Censo Quilombola. Apesar de existir uma contagem de brasileiros há 180 anos, a primeira vez que a população quilombola foi inserida foi só agora em 2022. O próprio Ministério da Saúde não dispõe desses dados, porque não se pergunta se a pessoa é quilombola quando ela chega em um serviço de saúde.
Como a construção da política se tornou uma agenda no Ministério da Saúde?
Em 2023, houve a 17ª Conferência Nacional de Saúde e a primeira Conferência Livre de Saúde Quilombola. Essa conferência livre teve como ponto central a criação de uma Política Nacional de Saúde específica para a população quilombola. Isso foi votado e saiu no relatório final da 17ª e o Conselho Nacional de Saúde publicou a resolução nº 715/2023 recomendando ao Ministério da Saúde (MS) que criasse a Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola. A partir desse momento, a gente conseguiu inserir na agenda do Governo Federal essa proposta de criação de uma política. Em 2024, ocorreu o segundo ato “Aquilombar”, que é o Encontro Nacional dos Quilombolas, em Brasília, e a ministra Nísia Trindade [ex-ministra da Saúde] recebeu os quilombolas para uma audiência e assumiu o compromisso de criação dessa política. Desde então, o MS tem desenvolvido uma série de ações. Foi criado um Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Quilombola pela primeira vez dentro do MS. Foi realizado o primeiro Seminário Nacional de Saúde Quilombola [em agosto de 2025, em Alcântara, no MA], para discutir a proposta de criação da política, além de uma consulta pública para identificar o que tinha que ter nessa política. E vai ser lançado no dia 25/11, no dia da Marcha das Mulheres Negras, o primeiro boletim epidemiológico de saúde da população quilombola, uma parceria entre a Conaq e a Fiocruz. Os dados são devastadores.
“Os dados mostram que a população quilombola morre por causas evitáveis, inclusive por diarreia, desnutrição, coisas que são inconcebíveis da gente conviver como sociedade em pleno 2025”

O que eles mostram?
Os dados mostram que a população quilombola morre por causas evitáveis, inclusive por diarreia, desnutrição, coisas que são inconcebíveis da gente conviver como sociedade em pleno 2025 — crianças morrendo de diarreia e desnutrição, além de mortes por violência. Aí entra a questão dos conflitos territoriais. Esses dados se assemelham muito aos da população indígena. O Ministério da Saúde vai fazer um curso de formação para os profissionais do SUS sobre saúde quilombola e está instalando telessaúde em várias unidades básicas que atendem essa população, com antenas de internet para ter a telemedicina. A gente considera que são avanços históricos. A gente nunca teve a saúde quilombola inserida de forma específica na agenda do Ministério da Saúde. Agora a gente tem cobrado o MS a efetivação dessa política. Foram feitos estudos técnicos, eu participei disso, enquanto estava no Ministério, agora não estou mais, coordenei esse processo de consulta pública, de conversa com especialistas e sociedade civil. O texto está pronto.
Mas o lançamento ainda não aconteceu…
Recentemente, ela [a Política Nacional de Saúde dos Quilombolas] seria votada no Conselho Nacional de Saúde, mas a gente não sabe ainda por que o Ministério da Saúde pediu para retirar de pauta. A Conaq publicou uma carta cobrando o MS o porquê tirou de pauta a votação para a criação dessa política e, até então, o Ministério não deu nenhuma resposta. O momento atual é de acirramento da luta. A gente sabe que a política está pronta e agora basta uma decisão política de colocar para votar, mas na verdade o que a gente tem visto é que o Ministério da Saúde recuou um pouco nesse processo, o que é preocupante.
“Não se tem saúde quilombola sem a garantia dos territórios”

Como a construção de uma política de saúde quilombola se liga à luta por território?
Não se tem saúde quilombola sem a garantia dos territórios. Não existe saúde se o território e as tradições não estiverem preservados, a cultura, a relação com a terra, com a floresta, com as águas. A gente considera como saúde quilombola uma dimensão mais ampla da própria luta pela terra. Então a luta pela terra está completamente conectada com o que se entende como saúde quilombola. Saúde quilombola é ter o direito de viver no território, em comunidade, entendendo a comunidade como os vivos e os mortos, como os encantados também, como esse território que é sagrado e ancestral.
“Saúde quilombola é ter o direito de viver no território, em comunidade, entendendo a comunidade como os vivos e os mortos, como os encantados também, como esse território que é sagrado e ancestral”
Poderia explicar como essa concepção funciona na prática?
A saúde quilombola tem duas dimensões. Uma dimensão é a saúde ancestral quilombola. Ela só existe nos territórios, não tem como existir fora dos territórios. Para ter uma plenitude de saúde, é preciso viver esse território verdadeiramente. A saúde ancestral quilombola está nos saberes tradicionais, das medicinas quilombolas, das parteiras, rezadeiras, raizeiros, benzedeiras, mestres e mestras que estão nos territórios, e que são grandes cuidadores e lideranças dessas comunidades. Esses saberes das medicinas quilombolas foram a única forma de cuidado ao longo de mais de 450 anos. Desde que começou o processo de escravização e de colonização no Brasil, já foram registrados os primeiros quilombos. O primeiro quilombo é o quilombo de Quingoma, que fica na região metropolitana de Salvador, no município de Lauro de Freitas. Ele é datado de 1560. São comunidades e territórios que têm 500 anos. O SUS tem 35 anos, ou seja, são 450 anos que essas comunidades tiveram que se cuidar de alguma forma. A única forma de cuidado possível era a partir das medicinas quilombolas, desses saberes ancestrais, que existem até hoje. Esses saberes são parte da identidade dessas comunidades. Infelizmente, o SUS tem falhado em reconhecer, valorizar e fortalecer esses saberes ancestrais das medicinas quilombolas.
“A saúde ancestral quilombola está nos saberes tradicionais, das medicinas quilombolas, das parteiras, rezadeiras, raizeiros, benzedeiras, mestres e mestras que estão nos territórios, e que são grandes cuidadores e lideranças dessas comunidades”
E a segunda dimensão?
A outra dimensão é a saúde institucional, são os serviços de saúde do SUS, que custam a chegar dentro desses territórios. Para você ter uma ideia, o Ministério da Saúde fez um estudo que mostra que, no Norte do país, a distância média de uma comunidade quilombola até a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima pode chegar a 43 km em média, ou seja, a pessoa tem que sair do seu território para poder acessar serviços básicos de saúde. A gente está falando de puericultura, de vacinação, coisas básicas atendidas na atenção primária. Ou seja, o SUS não chega dentro desses territórios e, quando chega, é de forma colonizadora, de uma forma desrespeitosa. Ele chega colocando a saúde institucional branca, da academia, eurocentrada, como uma imposição a esses saberes tradicionais e ancestrais que já existem dentro dessas comunidades. O SUS em algumas comunidades, ao invés de cuidar, reforça o racismo institucional e contribui para o apagamento da identidade dessas comunidades. A nossa luta é para que o SUS realmente consiga dialogar com a realidade das comunidades, que consiga entrar dentro dos territórios, levando os serviços de saúde de uma forma em que respeite as tradições e a cultura. Criar uma política de saúde quilombola significa olhar para tudo isso. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), em parceria com a Conaq, 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados no Brasil, por especulação imobiliária, megaempreendimentos, projetos de mineração, inclusive com a convivência do próprio Estado brasileiro, junto com a iniciativa privada — uma série de conflitos socioambientais que fazem com que essas comunidades sejam violentadas. Se o Estado brasileiro seguir o ritmo atual de demarcação e de titulação dos territórios quilombolas, vai precisar de mais 2.700 anos para poder titular todos os territórios. São 8 mil localidades quilombolas, segundo o IBGE, e apenas 500 têm algum tipo de titulação, ou seja, 500 de 8 mil. Nem sei se ainda vai existir o planeta Terra.
“O SUS não chega dentro desses territórios e, quando chega, é de forma colonizadora, de uma forma desrespeitosa”
O princípio da equidade não está explícito na lei 8080, que criou o SUS. Fala-se em “igualdade da assistência à saúde”. Qual é a importância do debate sobre equidade na saúde?
Acho que a equidade é um dos grandes desafios do SUS na atualidade. Não só no Brasil, a equidade está em evidência na saúde global. Existem diversos fóruns e iniciativas mundiais que têm buscado avançar no tema quando se fala de sistemas universais. Esse é um grande desafio que se apresenta nos 35 anos do SUS. É preciso enfrentar o desafio da equidade e traçar estratégias para avançar nessa agenda, compreendendo que o SUS avançou em muitos termos. A gente conseguiu aumentar a expectativa de vida da população brasileira, diminuir a mortalidade infantil, alcançar uma série de avanços civilizatórios, a partir do Sistema Único de Saúde. Mas é preciso compreender que esse sistema ainda não chegou em todos os locais do país.
Por que existem essas barreiras?
A gente tem um país continental. A gente tem um país que tem muitos municípios que são rurais, que são remotos. E a forma como o sistema está estruturado não dialoga com a realidade desses territórios, não dialoga com os povos e comunidades tradicionais, com os indígenas, os quilombolas. Mais que isso, as redes de atenção à saúde não dialogam com a realidade de municípios rurais remotos, por exemplo, da Amazônia, do Pantanal. Para você ter uma ideia, para existir um Caps [Centro de Atenção Psicossocial] em um município, é preciso ter mais de 15 mil habitantes, ou seja, os municípios com menos que isso não tem acesso a esse serviço. O que é que sobra? É nesses municípios que tem muitas comunidades quilombolas. Municípios com conflitos socioambientais. Foram 32 assassinatos de lideranças quilombolas de 2018 até 2022. Mãe Bernadete foi brutalmente assassinada na Bahia, no quilombo Pitanga dos Palmares, com 21 tiros no rosto, lutando pelo seu território. Ou seja, o adoecimento mental nas comunidades por conta dos conflitos é uma coisa grave. Mas a Raps [Rede de Atenção Psicossocial] não consegue chegar nessas comunidades. O que chega são as comunidades terapêuticas, que são basicamente novos manicômios, que acabam pegando as pessoas e transformando em evangélicos, fazendo todo um processo de colonização, por conta de uma insuficiência do sistema de saúde.
E como funciona o atendimento às urgências nessas comunidades?
Outra coisa é a rede de urgência e emergência. Se são 43 km de uma comunidade quilombola até uma UBS, imagina quantos quilômetros são para uma UPA, para um pronto socorro, se uma pessoa infartar, uma pessoa passar mal, vai conseguir chegar uma ambulância para poder pegar? A rede de urgência e emergência não chega nesses territórios, não dialoga com essas realidades, a população morre. Outro exemplo é a rede de pessoas com deficiência, de reabilitação. Você imagina o que é ser uma pessoa com deficiência, uma pessoa cega, uma pessoa que usa cadeira de rodas dentro de uma comunidade ribeirinha ou quilombola. Como é que essa pessoa vai fazer fisioterapia e reabilitação? O sistema exclui boa parcela da população brasileira, que está nos lugares rurais remotos, nos campos, nas florestas, nas águas, até na zona urbana mesmo em locais periféricos que ficam muito longe dos centros.
“Falar de equidade é a gente compreender que nós não somos iguais, que o Brasil é um país que tem especificidades regionais e territoriais”
Equidade é, portanto, diferente de igualdade?
Falar de equidade é a gente compreender que nós não somos iguais, que o Brasil é um país que tem especificidades regionais e territoriais, que tem mais de 300 línguas diferentes. O Censo Indígena do IBGE mostrou isso. Existem comunidades quilombolas que também têm línguas tradicionais. O Brasil é um país multiétnico, multicultural. Então a gente não tem como tratar todo mundo igual. Falar de equidade é assumir isso e o Estado brasileiro tem uma responsabilidade de valorizar essas diferenças e incorporá-las ao ofertar serviços em um sistema público de saúde.
Em relação à universalidade, qual a diferença entre cobertura e acesso universal?
Uma coisa é cobertura universal, outra é acesso universal. A gente ficou durante muito tempo buscando universalizar o acesso à saúde e nem isso a gente conseguiu dentro do território nacional. Pode constar no sistema que a pessoa mora numa área que tem cobertura, mas daí ela acessar já é outra história. A regionalização pensada no SUS não dialoga com desigualdades internas do município. Ela dialoga com desigualdades intermunicipais. A regionalização se preocupa com serviços de saúde a partir de referências dos municípios. Mas ela não entende que dentro do próprio município existem dificuldades e distinções de acesso, ou seja, alguns municípios no Norte do país têm o tamanho de Portugal, de países europeus. A gente precisa pensar, por exemplo, no governo federal assumindo uma estratégia, um programa de transporte sanitário que seja digno para que essas pessoas consigam se transportar. A gente entende que não dá para ter uma UBS em todos os lugares, uma UPA em todos os lugares, não é sobre isso, mas é sobre pensar como que essas pessoas podem acessar esses serviços.
“O Estado brasileiro tem uma dívida histórica com uma série de populações, com aqueles que foram escravizados, vilipendiados, e essa dívida precisa ser paga”

E como o princípio da equidade pode lidar com as heranças da desigualdade?
Falar sobre equidade é compreender que somos um país que passou por mais de 350 anos de uma escravização brutal que não foi vista em nenhum outro lugar do mundo. O Brasil é o país que recebeu o maior número de africanos escravizados. Foi o último país a abolir a escravidão, há pouco mais de 100 anos. As cicatrizes ainda estão abertas. É um país que passou por um processo brutal de colonização e que a sua sociedade se estruturou a partir das desigualdades. Um sistema de saúde que não reconhece isso, que não coloca isso no centro da agenda, funciona a partir da negação da nossa própria história. Nós não somos iguais, não passamos pelo mesmo processo de constituição dos lugares sociais, seja do negro, seja do quilombola, do indígena, do cigano, da mulher, do LGBT, nós não estamos no mesmo barco. Nós estamos no mesmo mar, mas estamos em embarcações diferentes. O Estado brasileiro tem uma dívida histórica com uma série de populações, com aqueles que foram escravizados, vilipendiados, e essa dívida precisa ser paga. E uma das formas dela ser paga é a partir de políticas de equidade, inclusive dentro do sistema de saúde.
Na sua dissertação de mestrado, você afirma que “as profundas desigualdades sociais e raciais têm representado uma barreira para a operacionalização do princípio da equidade” no SUS. Como o enfrentamento ao racismo e às desigualdades contribui para a promoção de equidade?
O professor Hélio Santos fala que as nossas instituições nacionais e a forma como a gente se relaciona têm como base o racismo. Isso é o que constitui a gente enquanto sociedade brasileira, porque as instituições foram construídas por cima de escombros e de sangue, de muitos que foram escravizados. O Milton Santos diz que a gente vive uma cidadania mutilada no Brasil, em que uma parte da sociedade não conseguiu acessar direitos. E quando acessam, é num lugar meio incompleto, insuficiente. A Conceição Evaristo diz que o negro vive uma cidadania lúdica, ou seja, até se reconhece os negros, os jogadores de futebol, a música, os cantores, a culinária. Mas dentro das instituições, para acessar poder, a história é diferente. A gente nunca teve um presidente negro, uma mulher negra no STF, um ministro da saúde negro. O que é muito estranho porque a população negra é a maior parte da população brasileira. O nome disso é racismo. O Sistema Único de Saúde é racista, funciona a partir de uma lógica de reprodução e de reforço ao racismo institucional. Mas isso não é porque o SUS é o SUS, isso é um problema de todas as instituições nacionais. A gente precisa, cada vez mais, avançar na compreensão de que o racismo é um determinante social da saúde da população negra, da população quilombola e indígena, das pessoas que são racializadas. O racismo piora a situação de saúde dessa população, porque faz com que tenha mais dificuldade de acessar os serviços e piores condições de vida, trabalho e renda.
E como enfrentar isso?
Uma das formas de enfrentar isso é pensando em políticas de equidade, em que os serviços de saúde possam se adaptar à realidade desses territórios e populações. Os profissionais de saúde precisam ter esses temas abordados nos seus processos formativos, seja na graduação, na pós-graduação, na educação permanente. É preciso que tenham mais profissionais indígenas, negros, quilombolas, ciganos. É preciso avançar nas ações afirmativas, nos cursos de saúde e nas residências. Avançar nisso é mexer em estruturas que não são nem um pouco fáceis de serem mexidas. Uma delas é mexer nos privilégios da branquitude dentro dos espaços institucionais. Ao mesmo tempo que existe uma aposta para que o Estado brasileiro enfrente o racismo a partir de políticas públicas, existe também um trauma histórico dessas populações com o Estado brasileiro, porque ele foi o maior violador dos direitos dessas populações, ao mesmo tempo que é o maior garantidor. O que aconteceu no Rio de Janeiro se chama terrorismo de Estado [na megaoperação nos Complexos da Penha e do Alemão, em 28/10]. O Estado usou o aparelho repressor de violência para poder assassinar cidadãos. Na Constituição Brasileira são considerados cidadãos, mas para aquele Estado eram considerados ‘eu não sei nem o quê’, porque mataram em plena praça pública utilizando o poder de coerção. A democracia ainda não chegou para a população negra, quilombola, indígena. Mesmo assim, essa população nunca deixou de acreditar nesse Estado. Apesar das críticas, é a partir do Estado que essa população quer construir um futuro possível para todo mundo. Os quilombolas nunca deixaram de acreditar no Estado, nas políticas públicas. Trata-se de autonomia, soberania, emancipação, mas a partir das políticas públicas, ou seja, tem que ter escola, posto de saúde, emprego, Bolsa Família, tem que ter tudo.
Como os territórios quilombolas produzem estratégias de cuidado em saúde?
A gente chama de medicinas quilombolas. Não é uma só medicina, são várias. Elas têm especialidades. Existem mestres e mestras dentro dos territórios, são mulheres em sua maioria, elas também são lideranças dentro das comunidades, ou seja, exercem um papel de cuidado coletivo comunitário. Tem mestras que são especialistas em raízes. São os raizeiros, que fazem as garrafadas. Tem outros que são especialistas em ervas das matas, os mateiros. Tem outras que são parteiras, que são especialistas em parto, que são tipo o que a medicina chamaria de obstetra. Tem também as benzedeiras, que geralmente tem um papel espiritual, mais integral, que são especialistas em benzimento. Então, existem sistemas de saúde tradicionais, que são conectados com essas mestras e com o coletivo. O cuidado é coletivo. As pessoas vão se ajudando. Esses sistemas tradicionais de saúde existem de forma milenar dentro desses territórios. Há pelo menos 500 anos nos territórios quilombolas, mas há mais de mil anos nos territórios indígenas. Esses sistemas tradicionais têm o território como base. A gente tem relato de comunidades no Norte do país, na Ilha do Marajó, que já identificaram o veneno nas plantas que usam para o seu cuidado. Ou então o Quilombo Gesteira, em Minas Gerais, que foi completamente arrasado pela lama do desastre de Mariana. Não pode nem fazer uma farmácia viva, porque o solo está infértil e contaminado. Outro elemento desse processo de cuidado é a dimensão das cosmopercepções, ou seja, não existe uma separação entre vivos e mortos, entre o racional e o sagrado. A comunidade é constituída pelos vivos e pelos mortos. Os mortos também fazem parte da comunidade. São os ancestrais, aqueles que ancestralizaram. Nesses sistemas tradicionais de saúde quilombola dentro dos territórios, não se aparta a dimensão física da espiritual. Está tudo integrado. A dimensão espiritual passa pelo território, porque aquele território é o que constitui a história daqueles ancestrais. O território é sagrado, as florestas, as águas.
De que maneira é possível articular esses saberes no SUS?
Infelizmente isso não é reconhecido pelo SUS, que entra para poder acabar com isso e dizer: “Nada disso tem sentido. O que tem sentido é o dipirona”. Isso é muito violento. Isso apaga a identidade dessa população. Eu sou de um território chamado Lagoa de Maria Clemência. Fica em Vitória da Conquista, na Bahia. O meu território era conhecido em toda a região por ter grandes parteiras. Eram mulheres que iam ‘apanhar’ menino, fazer os partos, em várias outras comunidades ao redor. É como se fosse um celeiro de parteiras. A última morreu recentemente, há pouco mais de 2, 3 anos. Ela se chamava Dona Maria Senhora, foi a última parteira. Quando morre a última parteira, morre uma tradição. Acabou. Agora todas as mulheres, as pessoas precisam ir para outra comunidade a cerca de 14 km para fazer o pré-natal. Se elas não fizerem o pré-natal, elas correm o risco de parar de receber o Bolsa Família. Quando chega a época de parir, elas vão para a zona urbana do município, que fica a 25 km. Elas vão sofrer violência obstétrica, porque as mulheres negras são as que mais sofrem com esse tipo de violência. É um mecanismo perverso que o próprio Sistema Único de Saúde faz com essas comunidades. A gente não está dizendo que isso não tem que existir. É óbvio que tem que existir a maternidade, a UTI, o pré-natal, a enfermeira. Agora também tem que existir a parteira, a rezadeira, a benzedeira. Isso tem que se conectar.
Quer dizer que o Estado brasileiro não está preparado para promover equidade?
Recentemente, eu ouvi um depoimento que me atravessou o coração. Foi de uma senhora, uma liderança quilombola, Dona Sebastiana, ela falou assim: “Os jovens de hoje em dia, eles não querem mais se envolver com as nossas tradições. Querem ir embora do território ou fazer outras coisas”. Nem a tradição no sentido do cuidado, nem a tradição dos festejos. Mas ela falou também que as comunidades estão ficando menos felizes. E aí ela me contou um relato, que tinha um jovem na comunidade que era uma pessoa com questões de saúde mental. Ele entrou em um surto psicótico e aí a saúde não chega, né? O que chega é a polícia. O jovem estava em surto, chamaram a polícia e a polícia o assassinou com um tiro dentro do território. E aí ela falando que nunca teve isso lá, que só ouviu um barulho estrondoso e o companheiro dela disse: “Mataram o fulano”. Desde então, a comunidade nunca mais foi a mesma, porque eles só viam isso acontecer na televisão. A comunidade está triste, ou seja, os conflitos socioambientais e a violência dentro das comunidades têm contribuído para que essas pessoas percam a esperança e a alegria de festejar. Festejar, seguir a tradição, fazer os momentos coletivos tem um sentido de comunidade, de celebração da vida, da ancestralidade. Isso tem sido roubado dessas comunidades, pelo próprio Estado brasileiro, a partir da política, a partir dos megaempreendimentos, das parcerias público-privados.

Como a história de sua comunidade quilombola e das lideranças de sua família influenciaram a sua trajetória?
Minha família paterna cresceu e viveu dentro desse território quilombola, chamado Lagoa de Maria Clemencia. O meu tio, Toninho, foi a principal liderança que buscou o reconhecimento da comunidade pela Fundação Cultural Palmares. Esse processo começou mais ou menos nos anos 2000 e ele foi quem estabeleceu uma parceria com a Uesb [a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia] para que os antropólogos fossem lá fazer os estudos e coletar depoimentos. Minha bisavó, dona Maria Alice, foi uma das que contribuíram no sentido de contar a história da comunidade. O meu pai se afastou um pouco desse processo de liderança. Aí, pula uma geração e eu me envolvo, né? Muito novo, com 17 anos, ganhei uma bolsa de estudos para ir para Salvador. Escolhi a fisioterapia, um curso da área da saúde e fui-me embora sem olhar para trás. Só que ao longo da faculdade, fui fazendo esse movimento de Sankofa, de reconexão com meu território, com meu povo. Vitória da Conquista fica a 8 horas de Salvador. É uma distância enorme. São mais de 400 km. Eu ia pouco, tinha poucas condições financeiras de ir para o território ao longo da minha faculdade. Com esse distanciamento, eu senti. Então comecei a me envolver com o movimento estudantil e a saúde coletiva. Fui vendo que era a única pessoa da família que conseguiu acessar o ensino superior. Então percebi que precisava dar alguma contribuição para a comunidade, utilizar esse privilégio que eu tive. A partir de 2020, eu começo a minha militância, o meu ativismo na Conaq, buscando lutar pela saúde da população quilombola, alinhado a uma perspectiva de intelectual orgânico, fazendo pesquisa, mestrado, doutorado, sem descolar isso de um ativismo político. Sou um jovem que assim como vários outros teve que ir embora para poder conseguir acessar alguma oportunidade. Essa distância do território é muito difícil, ela é muito desafiadora. Tento enfrentar isso lutando pela causa quilombola, lutando pelo coletivo e sempre que posso vou para o território, para que eu possa também me nutrir junto com os meus.
Como foi atuar na construção da Pnasq no Ministério da Saúde?
Em 2024, eu recebi essa tarefa ancestral de ir para o Ministério da Saúde para coordenar o processo de formulação dessa política. Agora eu saí do Ministério da Saúde. Não estou mais. Em 75 anos de Ministério da Saúde foi a primeira vez que dois quilombolas estavam tocando a agenda da saúde quilombola. A gente tem realizado incidências no sentido de colocar a necessidade de se combater o racismo institucional na agenda da saúde quilombola no SUS. Nada sobre nós sem nós. O dia 6 de novembro iria marcar a criação dessa política, mas infelizmente foi marcado pela retirada da pauta da política do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o desligamento dos quilombolas que estavam tocando a agenda no Ministério da Saúde. [A Política Nacional de Saúde Quilombola] Não é um favor, é uma dívida histórica. É uma questão de construção coletiva.
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