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Em agosto de 2024, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a mpox voltou a se tornar uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). A preocupação agora é com a rápida propagação da nova variante da doença, a Cepa 1b, encontrada no continente africano e mais concentrada na República Democrática do Congo (RDC). 

O Ministério da Saúde brasileiro instalou em agosto um Centro de Operações de Emergência em Saúde (COE) para monitorar a situação no país — em 2024, até o fechamento desta edição, foram notificados 709 casos confirmados ou prováveis da doença. Ainda não há registro da nova variante no Brasil. Para entender melhor a doença, as formas de transmissão, os riscos para a saúde e a nova variante, Radis conversou com Mayara Secco, médica infectologista do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e pesquisadora em doenças infecciosas e parasitárias.  “Precisamos fortalecer a rede de vigilância genômica para monitorar uma possível introdução dessa variante no nosso país”, afirma.

O que se sabe sobre essa nova variante da mpox? 

É importante contextualizar alguns aspectos históricos da mpox. A mpox é uma doença causada pelo vírus monkeypox, com o primeiro relato de caso em seres humanos em 1970, no antigo Zaire, território que hoje conhecemos como República Democrática do Congo. A mpox tornou-se endêmica em alguns países da África Central, majoritariamente afetada por uma variante associada ao clado 1, e da África Ocidental, cujos países foram afetados por outra variante, associada ao clado 2. Historicamente, observou-se maior letalidade em pessoas afetadas por cepas pertencentes ao clado 1. Nos últimos anos, tivemos pela primeira vez um surto multinacional de mpox em 2022, com mais de 80 mil pessoas sendo diagnosticadas em mais de 100 países (incluindo o Brasil), majoritariamente afetando homens que fazem sexo com homens, com maior registro de transmissão pessoa-pessoa, incluindo por contato sexual. 

E o que surgiu de novo a partir daí?

A análise filogenética das cepas de monkeypoxvírus envolvidas nesse surto apontaram para uma nova variante genética, que passou a ser denominada como pertencente ao clado 2b, de modo que o até então conhecido como clado 2 foi renomeado como clado 2a, documentado, portanto, em países da África Ocidental. Apesar do declínio de casos, ao longo de 2023, foram relatadas ressurgências de mpox em diversos países, incluindo Brasil, Alemanha, Itália e Espanha. Além disso, sobretudo desde 2023, há um aumento importante no número de pessoas com quadro suspeito ou confirmado de mpox na República Democrática do Congo, incluindo em áreas que até então não haviam reportado a doença. O país era historicamente afetado por vírus pertencente ao clado 1 (hoje, denominado 1a, transmitido inicialmente de animais para pessoas, mas com crescente transmissão pessoa-pessoa) e é importante ressaltar que, nesse contexto, foi identificada uma nova variante genética, classificada como clado 1b, com transmissão majoritariamente pessoa-pessoa. Os dados nos apontam para uma transmissibilidade pessoa-pessoa cada vez maior, inclusive com relatos inéditos de transmissão sexual de cepas do clado 1b.

E como essa nova variante se espalhou?

A situação na República Democrática do Congo escalonou progressivamente ao longo de 2023 e 2024, com relato de casos também em países vizinhos, e mudanças epidemiológicas que trazem preocupações adicionais em relação à transmissibilidade do vírus, o que levou à declaração da mpox como uma emergência de saúde pública de relevância internacional pela OMS. Recentemente, foi inclusive identificado pela primeira vez o caso de uma pessoa causado pela cepa 1b em um país fora da África, na Suécia — no entanto, era uma pessoa que tinha viajado para a região. Vale ressaltar que, até o momento, a nova variante (clado 1b) não foi identificada no Brasil. No entanto, precisamos fortalecer a rede de vigilância genômica para monitorar uma possível introdução dessa variante no nosso país. 

Essa variante é realmente mais agressiva que a anterior?

As modificações genéticas de fato podem afetar as características de transmissão e virulência, sendo atribuída uma letalidade maior às cepas do clado 1a e 1b quando comparadas ao clado 2a. No entanto, é importante ressaltar que não são apenas mutações genéticas que resultam em maior letalidade do vírus, de modo que devemos considerar também o contexto social, político e de saúde dos países afetados. Deve-se levar em conta questões relacionadas ao acesso e à organização de serviços de saúde; o estado nutricional; outras doenças concomitantes que possam afetar o sistema imunológico; estrutura de saneamento básico e condições adequadas de higiene; contextos políticos, guerras e conflitos civis em diversos territórios afetados. Tudo isso pode influenciar a mortalidade por determinada doença. Por isso, precisamos olhar, para além do vírus, também para esses determinantes estruturais. De forma geral, o fortalecimento de sistemas públicos de saúde e sistemas sociais possibilitam o enfrentamento à essa emergência em saúde, o que exige uma resposta coordenada global.

O que se sabe sobre a transmissão da doença? 

Quando foi identificado o primeiro diagnóstico de mpox em um ser humano, em 1970, em uma criança no território conhecido hoje como a República Democrática do Congo, a mpox foi inicialmente considerada uma zoonose, ou seja, uma doença transmitida do animal para o ser humano. No entanto, diversos estudos mostraram que ao longo das últimas décadas, houve um aumento progressivo da transmissão pessoa-pessoa, o que é válido para todos os clados genéticos existentes. Essa transmissão pode se dar a partir do contato direto com lesões de pele ou mucosas, fluidos corporais ou secreções respiratórias de uma pessoa com quadro ativo da doença. Além disso, a transmissão pode ocorrer, ainda que em menor magnitude, por meio do contato com objetos contaminados, como roupas ou lençóis, ou por meio de gotículas respiratórias em interações prolongadas face a face.

Por que a transmissão sexual passou a ser uma preocupação?

A transmissão sexual de mpox foi inicialmente reportada em surto registrado na Nigéria em 2017, e foi a principal forma de transmissão no surto multinacional de mpox em 2022. Em ambas as situações, a variante genética que levou a esses surtos pertencia ao clado 2b. Nos últimos meses, com o escalonamento da situação epidemiológica na República Democrática do Congo, houve pela primeira vez o relato de transmissão sexual do clado 1b. Nesse sentido, a transmissão sexual, sobretudo a partir de redes sexuais densas e altamente interconectadas, tem ganhado cada vez mais relevância para a compreensão da dinâmica da mpox no mundo. Nesse sentido, a mpox pode sim ser considerada também uma infecção sexualmente transmissível (IST), e isso é algo que deve ser debatido amplamente na sociedade a fim de permitir uma correta identificação dos casos e possibilitar estratégias de prevenção combinada para o HIV e outras IST. Mas vale ressaltar que existem também outras formas de transmissão, que devem ser consideradas, sobretudo em um contexto de intensa circulação do vírus.

 “A OMS não recomenda a vacinação em massa”

No Brasil, a vacinação está restrita, até o momento, a pessoas com HIV, profissionais de laboratórios ou pessoas com a infecção. Na sua visão, essa é uma estratégia adequada?

Para contextualizar, atualmente existem três vacinas licenciadas para mpox, que foram produzidas inicialmente para proteção contra a varíola humana, que é do mesmo grupo de vírus. A MVA-BN (ou Jynneos), produzida na Dinamarca, é a que possui mais evidência científica, com estudos apontando efetividade de aproximadamente 80%. Os estudos majoritariamente foram conduzidos em locais afetados pelo clado 2b, porém, espera-se que a vacina também proteja contra a variante 1b. É importante ressaltar que nem o Brasil nem a OMS recomendam a vacinação em massa da população geral, sendo a vacinação reservada para pessoas em maior vulnerabilidade para a mpox, ou aquelas que tiveram contato íntimo com uma pessoa com a doença. Dessa forma, as pessoas podem ser vacinadas em uma estratégia de profilaxia pré-exposição (antes de ter contato com o vírus) ou pós-exposição (em até 14 dias após contato íntimo com uma pessoa com mpox, idealmente nos quatro primeiros dias). No INI/Fiocruz, conduzimos o estudo Alive, financiado pelo Ministério da Saúde, que busca estudar a eficácia da vacina MVA-BN como profilaxia pós-exposição.

“A  maior parte das vacinas produzidas foram compradas por países de grande poder econômico, como os EUA, e isso é um limitante para a resposta global à mpox, levando a diversas iniquidades”

O que dificulta o acesso à vacina?

Há uma dificuldade para acesso, com desigualdades Norte-Sul, uma vez que a maior parte das vacinas produzidas foram compradas por países de grande poder econômico, como os EUA, e isso é um limitante para a resposta global, levando a diversas iniquidades. Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou que serão adquiridas 25 mil doses adicionais do imunizante, o que ainda é pouco perto das necessidades do país. Na minha visão, a melhor estratégia para vacinação é, de fato, direcionar para pessoas em maior risco de evolução para formas graves, o que justifica a inclusão de pessoas vivendo com HIV (sobretudo aquelas com comprometimento do sistema imunológico), e também, a partir de critérios epidemiológicos definidos em cada país, para as populações mais afetadas pela doença. No Brasil, desde o início do surto multinacional em 2022, as minorias sexuais e de gênero têm sido desproporcionalmente afetadas, sobretudo homens que fazem sexo com homens. Nesse sentido, vejo como de extrema importância também incluir essas pessoas em estratégias de vacinação, independentemente da situação sorológica para o HIV. No entanto, as decisões relacionadas ao direcionamento das vacinas são limitadas pela capacidade global de produção e pelas desigualdades em relação à possibilidade de compra desses insumos. 

Quais medidas de prevenção devem ser adotadas?

A compreensão adequada das formas de transmissão é de suma importância, para que diversas medidas individuais e coletivas possam ser adotadas para proteção, incluindo higiene adequada das mãos e medidas sanitárias mais amplas; e garantir que pessoas diagnosticadas tenham condições materiais de fazer o isolamento domiciliar. O uso de máscaras pode ser recomendado em situações de contato próximo. Embora o isolamento não seja tão generalizado quanto na pandemia de covid-19, a conscientização e precauções individuais são fundamentais. O uso de preservativo nas relações sexuais não protege totalmente, mas pode contribuir para a proteção de áreas mais sensíveis, como a região anal e genital. Vale ressaltar o conceito de prevenção combinada para o HIV e outras IST, que contempla não só o uso de preservativo, mas também outras estratégias, incluindo o uso de profilaxia pré-exposição para o HIV, vacinas para infecções virais (incluindo hepatite B, HPV e mpox), testagem regular para sífilis e outras IST. 

“Somente através de uma abordagem abrangente e equitativa será possível enfrentar a mpox de maneira eficaz e proteger a saúde pública de forma justa e inclusiva”

E sobre tratamento?

O Brasil é um dos países que está conduzindo o estudo Unity, que busca avaliar a eficácia do antiviral tecovirimat para o tratamento de mpox, que trará insights inéditos quanto ao uso desse medicamento para cepas do clado 2. Recentemente, foram divulgadas análises iniciais do estudo Palm 007, que não comprovou a eficácia do medicamento para reduzir o tempo de resolução das lesões de mpox causadas pelo clado 1. No entanto, ainda precisamos de estudos que avaliem o uso para outros clados genéticos. Em suma, precisamos avançar na divulgação científica de informações confiáveis e de qualidade e no combate à desinformação em saúde como um pilar essencial na estratégia de enfrentamento à mpox.

Em 2022, havia uma preocupação de que a doença fosse estigmatizada como uma infecção com risco apenas (ou especialmente) para homens que fazem sexo com outros homens. Como superar esse entendimento de modo que todos possam se prevenir adequadamente?

De fato, é importante levar em consideração um conhecimento que cultivamos desde a epidemia de aids, no início de década de 1980: não devemos atribuir nenhuma doença exclusivamente a um grupo específico, seja por identidade de gênero, orientação sexual, raça/cor. Ao fazer isso, estamos olhando apenas para uma situação parcial, além de trazer uma carga adicional de estigma para populações que já são vulnerabilizadas e discriminadas. Existe uma preocupação tanto em não trazer estigma adicional para minorias sexuais e de gênero no Brasil e no mundo, quanto em não considerar a transmissão da mpox em outras redes sexuais, incluindo pessoas heterossexuais. Isso poderia levar não só à negligência em relação às formas de prevenção mencionadas, mas também a atrasos na identificação e no diagnóstico em pessoas que não fazem parte das minorias sexuais e de gênero, o que pode contribuir para o avanço de uma transmissão comunitária sustentada. Também aprendemos historicamente com outras epidemias que o silêncio e a desinformação são caminhos que nos levam à invisibilidade, ao estigma e à negação. Portanto, desde o início do surto, em 2022, pautamos a reflexão: como comunicar a situação epidemiológica sem trazer mais estigma e discriminação?

“Precisamos ampliar o conhecimento e o diálogo com a sociedade civil”

A médica infectologista do INI/Fiocruz, Mayara Secco, diz que é preciso ampliar o conhecimento e o diálogo com a sociedade civil. Para enfrentar esse desafio, ela propõe:

  1. Participação ativa das comunidades afetadas: “A participação ativa ajuda a construir confiança e a disseminar informações precisas de forma mais eficaz.”
  2. Ampliação do debate público: “A comunicação sobre a mpox deve ocorrer em diversos espaços, além dos serviços de saúde. Isso inclui escolas, mídias sociais e espaços culturais”
  3. Divulgação de informação científica: “A informação precisa e baseada em evidências deve ser prioritária. As campanhas [e demais ações de comunicação] devem focar em esclarecer que a mpox pode afetar qualquer pessoa, e não apenas grupos específicos, e destacar as melhores práticas de proteção e cuidado.”
  4. Fortalecimento do acesso universal, com educação contínua e prevenção: “Serviços de saúde devem ser capacitados para oferecer atendimento inclusivo e não discriminatório, garantindo que todos, independentemente de seu perfil demográfico, recebam o suporte necessário.”

Letalidade é relativamente baixa

Em 2022, durante o surto multinacional de mpox, o Brasil foi o segundo país do mundo mais afetado pela doença, com mais de 10 mil pessoas atingidas, sobretudo em estados do Sudeste, e 16 óbitos relacionados. A letalidade da mpox é relativamente baixa — mas sobretudo pessoas com imunossupressão (incluindo pelo HIV), gestantes e crianças podem evoluir para formas graves. “Os dados apontam que, nos últimos meses, há um aumento no número de casos de mpox, sobretudo em São Paulo, mas ainda em uma magnitude menor do que comparado ao surto multinacional de mpox em 2022”, afirma Mayara.

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