“Nas minhas andanças, conquistei. Nem sempre essas conquistas foram palpáveis ou visíveis a olho nu. Aprendi muita coisa… Inclusive posso falar da empatia que hoje tento levar a cada um. Depois de certo tempo se adquire saberes de uns, saberes de outros… sou como ‘colcha de retalhos’, e nessa profissão que abençoa, também sou abençoado. Com que missão de honra fui, então, contemplado! Sei que não caminho sozinho, e por isso posso ir mais longe. Com sol ou com chuva, me embrenho onde tiver de ir, seja no morro ou no asfalto, meu desafio é servir.
Nem tudo são flores, nem sempre é poesia, mas fazendo de limões uma limonada, e dos percalços uma oportunidade de crescimento, vou seguindo… pois na utopia da excelência, nunca me vejo parar. Sou o olhar arguto, que mesmo nos erros ou acertos, nunca deixo de sonhar”.
Emocionado, Alex da Costa Pessoa, 44 anos, termina sua entrevista à Radis citando a poesia acima, do amigo Carlos Félix, para resumir sua profissão (e missão). “Sou agente comunitário de saúde (ACS) com muito orgulho. Em muitos casos, conseguimos ajudar e acessar locais onde nenhum outro profissional chegaria”.
Alex se soma a aproximadamente 280 mil colegas em todo o país, que atualmente compõem a Estratégia Saúde da Família (ESF). Contudo, a profissão, extremamente relevante, teve sua regulamentação aprovada apenas em 2023, pela Lei 14.536, sancionada em 20 de janeiro de 2023.
Os ACS atuam na prevenção de doenças e na promoção de saúde em ações domiciliares, comunitárias, individuais e coletivas. Junto com eles, outros 61 mil profissionais de combate às endemias atuam na vigilância epidemiológica e ambiental, na prevenção e no controle de doenças e na promoção da saúde. O agente comunitário é considerado uma ponte entre a população local e a rede de saúde pública instalada. Por muitas vezes, conquista tanto a confiança dos moradores que acaba se tornando fundamental nas ações da ESF.
Há 14 anos como ACS na comunidade da Coreia, em Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Alex relembra a experiência com uma paciente que tinha uma condição grave nos pulmões: ela precisava tomar regularmente uma medicação e não poderia de forma alguma interrompê-la, colocando em risco sua própria vida. “Ao chegar em sua residência, percebemos uma tosse persistente. Conversando, descobrimos que, por conta própria, ela se liberou e não queria mais ir à unidade para avaliação. Tive que atuar quase como um psicólogo. Hoje, quando a encontro, ela e seus familiares dizem que fui um anjo na sua vida”, relata.
A região da Coreia faz parte de um complexo de favelas que sofre há muitos anos com a disputa entre quadrilhas de traficantes e as operações da polícia. Em áreas em que, normalmente, nenhum outro serviço público chega, o ACS cumpre, muitas vezes, o papel do Estado na assistência à saúde da população. “O fato de ser um morador da região nos permite transitar de forma mais tranquila por áreas complexas. Conseguimos quebrar a desconfiança do morador e agir de maneira mais eficaz na prevenção de doenças”, explica Alex.
Apesar da escalada da violência, que dificulta muito o trabalho, ele se mostra esperançoso. “Sei que não conseguimos sanar todos os problemas da comunidade. Sei que não dá pra fazer promoção e prevenção como antes. Mas sei também que o ACS faz muita diferença na atenção básica do Rio de Janeiro”.
No território e para as pessoas
No Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em Manguinhos, no Rio de Janeiro, Jorge Antonio dos Santos Nadais, de 40 anos, há 11 trabalha como agente comunitário de saúde. “Não tem como falar de Estratégia Saúde da Família sem a presença do vínculo territorial, sem o agente comunitário de saúde. O ACS é a profissão do SUS que é sinônimo de saúde da família.”
Jorge, no entanto, critica a falta de valorização de sua carreira. “Somos fundamentais, mas ainda vivemos a precarização de nossa profissão. Até hoje, apesar de haver uma consciência coletiva de que trabalhamos enfrentando questões sérias de segurança, de que nossa rotina é atuar dentro de territórios vulneráveis, que andamos também por áreas insalubres, ainda não temos direito sequer a uma aposentadoria especial”.
Ele diz ainda que o ACS sofre o preconceito de trabalhar em áreas carentes e dar assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade. “O agente comunitário, apesar de sua relevância para a sociedade, acaba sendo criminalizado por sua área de atuação. Ele é visto de forma invisível nos seus méritos”, aponta.
O reconhecimento, segundo ele, esbarra numa cadeia hierarquizada na figura do médico. “O ACS está lá na ponta, mas nem sempre é visto. Trabalhamos na prevenção de doenças, mas isso infelizmente não é tão valorizado na nossa cultura, nem no nosso próprio sistema de saúde”
Mesmo sem a valorização profissional merecida, Jorge não troca seu trabalho por nada. “O agente comunitário trabalha numa perspectiva de pessoalidade. O que nos move são as pequenas conquistas, os pequenos testemunhos, os elogios dos usuários”, afirma. Segundo ele, isso é o que gratifica a função, até mais do que o próprio reconhecimento financeiro. “Trabalho no território e para o território. Isso se soma à equação e nos motiva a continuar”, pontua.
Ele cita um caso recente para ilustrar o orgulho de ser um ACS. “Numa visita de rotina, identifiquei um sinal de risco. Emergência mesmo. Ao dar a orientação correta, sei que ajudei a reduzir o risco de morte. Uma vida não tem preço. Isso é nosso trabalho e está acima de qualquer valor”.
“Somos importantes no SUS”
A leste da ilha de São Luís, no Maranhão, está localizada a Cidade Olímpica 1. Fundada em 1996, fruto de movimentos liderados por pessoas sem teto, o bairro conta com três unidades de saúde da família. Uma delas, o Centro de Saúde Antônio Carlos Sousa Reis, atende a até 10 mil pessoas por mês.
Lá atua a agente comunitária de saúde Rejane Maria Batista dos Santos, que há 24 anos cumpre essa função. “Nós, os ACS, fazemos a integração entre a população, os serviços da atenção primária e a saúde da população em geral. Somos importantes na implantação e no sucesso do SUS”.
Rejane diz que, em 2024, trabalhou intensamente na campanha de vacinação contra a dengue. Ela conta que visitou muitas residências verificando os cartões, principalmente das crianças, para atualizar e convencer os pais a levarem seus filhos à unidade de saúde. “A dengue, assim como em outros estados do país, voltou com força total”, relata.
Ela afirma também que, de uns anos pra cá, um dos focos principais tem sido a atenção ao pré-natal, uma vez que o Maranhão ocupa a terceira posição em casos de mortalidade infantil. “Visitamos as residências, esclarecemos as dúvidas, acompanhamos de perto a gravidez e a saúde das mulheres”, descreve.
Rejane destaca a proximidade com os moradores como um diferencial da sua profissão. “A chave de ouro é a confiança que essas pessoas depositam na gente. Não é qualquer um que consegue bater na residência dos outros e ser bem recebido. Lógico que há exceções, mas, no geral, os moradores entendem nosso trabalho e se mostram muito agradecidos”.
Protagonistas nos 30 anos de ESF
“Os agentes comunitários (ACS) foram e, ainda são, os protagonistas e testemunhas desses 30 anos da Estratégia Saúde da Família (ESF)”. A afirmação foi feita pela presidente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), Ilda Angélica, durante seminário promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 11 de outubro, para celebrar os 30 anos da ESF.
À frente da Conacs desde 2016 — antes já havia sido vice-presidente da Confederação em duas diretorias —, Ilda costuma dizer que não existe SUS sem ACS. Ela alertou para a necessidade de realização de concursos públicos para repor aposentadorias e cobrir novas áreas. “Quando temos alguma região sem a presença ou a atuação de um agente comunitário, colocamos em risco toda a Estratégia Saúde da Família”.
No evento “30 Anos da ESF no SUS: efeitos no acesso e na saúde da população”, uma parceria da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde (APS) com o Observatório do SUS (Ensp/Fiocruz), Ilda enfatizou que o agente comunitário precisa novamente ser o grande responsável por semear a informação e trabalhar na recuperação das coberturas vacinais. No passado, segundo ela, os ACS tiveram um importante papel no convencimento dos benefícios da vacinação. “Hoje vemos o retorno de doenças erradicadas simplesmente porque as pessoas não estão se vacinando”.
A presidente do Conacs demonstra também mais uma preocupação: o desvio de função do agente comunitário de saúde. “Atualmente vemos que os ACS passam muito tempo dentro das UBS para fazer recepção, acolhimento e atividades administrativas. O papel do agente não é apenas esse. Ele precisa estar no território, vigilante e atuante junto à população”.
ACS se tornam política pública no fim dos anos 80
Foi na década de 1980 que uma nova categoria de trabalhadores começou a ganhar destaque e importância na prevenção e promoção da saúde, principalmente naquelas regiões e comunidades mais distantes e carentes. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) começou a ser implantado pelo Ministério da Saúde em 1991, a partir de iniciativas que existiam em alguns estados desde o final dos anos 80 [Veja a linha do tempo sobre os 30 anos da ESF]. Atualmente, o PACS é considerado parte da Estratégia Saúde da Família.
O que os ACS fazem?
O agente comunitário de saúde (ACS) é um dos profissionais que compõem a equipe multiprofissional da ESF nos serviços de atenção básica à saúde e desenvolve ações de promoção à saúde e prevenção de doenças, tendo como foco as atividades educativas, nas moradias e em contato com as pessoas. É o profissional que realiza a integração dos serviços de saúde da atenção básica com a comunidade.
O agente de saúde visita residências, orienta moradores, verifica condições de saneamento, distribui materiais informativos e acompanha pacientes com doenças crônicas. Além disso, acompanha pessoas com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, monitorando suas condições e informando sobre a importância do tratamento contínuo. Também está atento a sinais de possíveis surtos de doenças, alertando as autoridades de saúde.
Conheça as atividades do ACS
1. Utilização de instrumentos para diagnóstico demográfico e sociocultural
2. Detalhamento das visitas domiciliares, com coleta e registro de dados
3. Mobilização da comunidade e estímulo à participação nas políticas públicas voltadas para as áreas de saúde e socioeducacional
4. Realização de visitas domiciliares regulares e periódicas para acolhimento e acompanhamento
5. Informação aos usuários sobre as datas e horários de consultas e exames agendados
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