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O tempo é curto e voa. No caso de Alexandre Kalache, na velocidade de muitos vôos, que o levam a diferentes lugares do mundo onde ele compartilha a experiência construída ao longo de décadas de pesquisa dedicadas ao envelhecimento. Uma das maiores autoridades em gerontologia do Brasil e do mundo, o médico epidemiologista e pesquisador em saúde pública é um dos fundadores do Centro Internacional de Longevidade Brasil e por 13 anos foi responsável pelo Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS), depois de 20 anos de vida acadêmica entre as universidades de Londres e de Oxford, na Inglaterra. 

O tempo corre e se organiza. Em maio de 2025, a agenda de Kalache estava lotada, o que não o impediu de, entre um voo e outro, responder às perguntas enviadas por Radis. De volta de Roma, onde participou de um simpósio sobre memória, a convite do Papa Francisco, em seus últimos dias de vida, e a caminho de mais um compromisso profissional, na Praia do Forte (BA), ele atendeu ao pedido com a mesma generosidade com que se expressa e explica conceitos que vem desenvolvendo, como a gerontolescência — basicamente um novo período de vida, que se estende da vida adulta “à tal da velhice”.

O tempo ensina e responde. Nesta entrevista, Kalache parte da vivência pessoal para explicar como a discriminação pode afetar o envelhecimento de pessoas gays, lésbicas e trans, identifica uma ideologia supremacista que interfere na atuação de profissionais de saúde e, mesmo reconhecendo os desafios de enfrentar a LGBTfobia em seus espaços, reconhece o SUS como lugar privilegiado para a restauração da cultura do cuidado para todas as pessoas, inclusive para a população que sofre com discriminações.

Você já declarou que não vai envelhecer caladinho, bonitinho, como a sociedade deseja, mas ser “gerontolescente”. Poderia explicar melhor esse conceito?

Nós, nascidos com o fim da guerra (1945, 46), somos, por 20 anos, a geração baby boomer. Éramos muitos e com um grau de saúde e de conhecimento que não se comparava a qualquer geração anterior. Estou falando do ponto de vista coletivo: éramos mais saudáveis e tínhamos mais informações. Por outro lado, o que propiciou esse aumento na população de crianças e adolescentes foi a percepção da população global de que finalmente iríamos viver em paz. Houve um aumento grande de desenvolvimento socioeconômico. O pós-guerra foi caracterizado por desenvolvimento econômico. Claro, com todas as desigualdades sociais. Então o que você faz quando você tem mais saúde, melhores condições de informação e de conhecimentos e com um dinheirinho no bolso? Você bota para quebrar, você vira a mesa, você puxa a toalha, ousa. Você, sobretudo mulher, com a criação da pílula, vai ter uma liberdade sexual que mães, avós e toda a ancestralidade sequer podiam sonhar. Você vai poder transar e não ter filhos, por exemplo. Isso foi uma liberação, mesmo que muitas mulheres ainda não a tenham conquistado. Mas para nossa geração, no coletivo, estes são fatores que contribuíram para que a gente pudesse criar uma transição entre a infância e a idade adulta. A adolescência.

Que mudanças aconteceram ao longo desses anos?

Se você pegar um dicionário dos anos 1950, a adolescência não vai ser descrita como nós a entendemos hoje, como construção social. E nós somos os mesmos; apenas 60 anos mais velhos. Mas nós não vamos envelhecer como os nossos pais; que dirá como nossos avós. Quando nós éramos jovens e levávamos a namorada ou o namorado para o quarto e trancávamos à chave, os pais não sabiam o que dizer. Hoje, nós vamos paquerar, fazer cruzeiro, nos divertir; vamos botar para quebrar, vamos puxar a toalha, vamos virar a mesa. Nós vamos ousar, porque essa é uma perspectiva de curso de vida. E com isso a gente vai criar outra transição. Que, claro, não é da infância para a idade adulta, mas sim da idade adulta para a tal da velhice. Há, aí, uma grande diferença. A adolescência dura ou deve durar cinco, seis, sete anos. É bem verdade que tenho colegas de turma que se comportam como adolescentes até hoje, mas não acho isso muito recomendado. Já a ‘gerontolescência’, esta vai durar dos 55 aos 80 anos, ou mais; muito tempo para a gente poder se rebelar, ousar, reinventar e criar essa transição da idade adulta à velhice — com muito mais tempo do que a adolescência teve, no seu lugar. Eu não vou envelhecer como os meus pais, que dirá como os meus avós. E daqui a alguns anos você vai poder rever os dicionários de hoje e vai chegar à conclusão que o termo ‘gerontolescência’, cunhado na perspectiva de ‘dar uma sacudidela’, entrou nos dicionários para definir essa nova etapa de vida.

Em relação aos cuidados em saúde, qual orientação você daria para LGBTs+60 (e para aqueles que cuidam dessas pessoas)?

Eu vou especificamente falar da população gay. Sofreram muito preconceito nos anos 1940, 1950, 1960, 1970. Eu não vou dizer que deixou de existir. Foi difícil sair do armário, mas é cruel nos enfiarem de volta ao armário, como querem alguns governos mundo afora, cada vez mais homofóbicos, com atitudes incompatíveis com aquilo que foi conquistado, sobretudo depois das revoltas como a de Stonewall (1969), quando foi possível você se afirmar por ter direitos. Os homens gays com mais de 60 anos sofreram muito bullying. Das trans, praticamente não se ouvia falar. As lésbicas ficavam meio na periferia. Era algo inconcebível, que não entrava na imaginação popular. Sempre houve uma orientação homossexual de mulheres, mas era algo que não era considerado. O principal alvo da discriminação no Brasil (e fora) era a população gay. 

Como isso acontecia?

No Brasil, nunca houve uma questão legal. Estranhei muito quando cheguei à Inglaterra, em 1975. Apenas sete anos antes, em 1968, homossexualidade tinha deixado de ser um ato criminoso. As pessoas podiam ser presas, assim como foi o Oscar Wilde [escritor irlandês, 1854-1900] que não só sofreu os preconceitos, mas também a prisão, e acabou morrendo em miséria em Paris, com menos de 50 anos. Era jovem, mas por ter se assumido gay, enfrentou uma corte e um processo criminal, foi abandonado pela família e pelo ex-companheiro. Wilde escreveu a frase: “O amor que não ousa dizer seu nome”.

Como era no Brasil?

No Brasil, isso nunca aconteceu. Nós não tivemos aqui — e a obra de Trevisan [escritor paulista João Silvério Trevisan] mostra isso de forma muito clara —, não havia um processo de criminalidade. Isso não torna mais fácil a luta contra a homofobia. O fato de não termos tido um Apartheid [sistema de segregação racial institucionalizado que existiu na África do Sul entre 1948 e 1994], ou de nunca ter havido discriminação baseada em leis no Brasil em relação ao racismo não nos deixou menos racistas do que na África do Sul. Às vezes é mais difícil lutar contra a discriminação quando ela não tem um formato legal. Ela é institucionalizada, é disseminada. Os que chegaram (e muitos não chegaram) aos 60, 70, 80 anos, enfrentaram muito, muito bullying. E depois veio a doença perversa da aids, era a “praga gay”. A discriminação aumentou mais ainda. Mas tivemos sucesso!

Como foi o processo?

Foi por meio do ativismo de homens gays, sobretudo nos anos 1980, que conseguimos que governos e políticos influentes tivessem a sensibilidade de perceber que uma pandemia não se vence com discriminação. Pandemia se vence por meio de atos contra aquilo que coloca em risco a população como um todo. Nós vimos o desastre que foi a covid-19, como foi lidada pelo governo anterior; vimos também que, a depender de políticos retrógrados, preconceituosos e homofóbicos, nos anos 70, 80, 90, nós não teríamos sido um dos países mais avançados em políticas públicas inclusivas. 

Como avalia hoje?

É lamentável que agora tudo isso esteja de novo em pauta, de que seja negado à população gay o direito de ter tratamento decente. Isso faz com que eles fiquem, de novo, muito vulneráveis. Além de, claro, expostos às doenças comuns ao envelhecimento, que podem se complicar pelo estado de saúde mental. É muita depressão, ainda muita não-aceitação e o abandono de suas famílias; a pandemia de solidão. É necessário ter um esclarecimento que qualquer tipo de discriminação ou qualquer forma de “ismo” — seja racismo, sexismo, idadismo, capacitismo — segue as mesmas regras. Todas as formas de ismos compartilham quatro “is”. O primeiro se refere à “ideologia”, que é supremacista. Um grupo que acha que vale mais do que o outro. Eu sou branco, você é negro; eu sou cis, hétero, você é gay, lésbica, trans; eu não tenho nenhuma incapacidade, você é uma pessoa com deficiência; eu sou jovem, você é idoso. Sempre existe a percepção de um grupo que acha valer mais que o outro. Em geral são os poderosos, políticos, CEOs de grandes empresas, pessoas influentes, inclusive da mídia, que por serem poderosas e supremacistas, vão colocar todas as pedras no caminho. 

Qual o resultado disso?

Isso faz com que uma mulher não possa ser promovida, que uma pessoa negra não possa ter um emprego, que uma pessoa com uma deficiência seja declarada improdutiva, que uma pessoa idosa seja discriminada e não mereça uma tomografia computadorizada, porque é perda de dinheiro, perda de recurso — e aí já falamos do segundo “i” que é da “institucionalização” dessa ideologia nos serviços. A seguir, você passa para o campo “interpessoal” (o terceiro “i”). Pouco a pouco, você vai sentir a autoestima baixa, perder a autoconfiança. Você não pode ser promovido, não pode ter um emprego, é discriminado. Recebe uma ordem de silêncio: “Fica caladinho aí, que você é uma pessoa idosa, você é uma mulher, lugar de mulher é na cozinha etc”. E tudo termina com o objetivo da ideologia, que é o último “i”, o da “internalização”.

Quais os reflexos disso na saúde da pessoa idosa?

Você acaba achando que realmente vale menos que os outros. E quando há alguma interseccionalidade (Você é uma mulher negra, talvez lésbica, talvez com uma deficiência, ou foi abusada a vida inteira, ou tem um baixo nível educacional porque foi pobre), você é culpabilizada por estar envelhecendo mal. Apesar de tudo, você ainda ousa envelhecer e quer ter direitos reconhecidos. É muita ousadia! Sobretudo em um país onde existe um quinto “i” que é um meio de cultura fenomenal para todos os “ismos” e para interseccionalidades, que é a “inequidade”.

— Foto: acervo pessoal.

Neste contexto, que orientação você daria a um profissional de saúde no atendimento à população LGBT+ com mais de 60 anos?

A orientação que eu daria ao profissional encarregado de dar atendimento a essa parcela da população, como a qualquer outra, é que se auto eduque. Os preconceitos só podem ser vencidos por meio de reflexão, de introspecção, de discernimento, de empatia e da solidariedade. Você não tem o direito de impor as suas ideias, seus preconceitos, as suas antipatias em relação a outro ser humano. A outra pessoa tem que ser tratada com a dignidade que você gostaria de ser tratado; de receber, quando necessita, um cuidado médico ou de saúde, um cuidado jurídico ou legal, enfim, um cuidado como cidadão. A questão é cidadania. Mas sem introspecção, sem empatia, sem solidariedade, você vai acabar sendo um algoz de uma população já vulnerabilizada.

Você considera que o SUS está preparado para oferecer os cuidados de saúde da população LGBT+60?

O SUS é emancipador, é redentor, é um marco civilizatório. O SUS tem menos de 40 anos e é o maior sistema universal de saúde do mundo. Não é perfeito, não poderia ser perfeito. Nem o equivalente sistema nacional de saúde inglês é perfeito, está sofrendo assaltos vigorosos. Como lá, aqui também há forças que, se pudessem, eliminariam o SUS, ou o tornariam cada vez mais debilitado. Nós temos que perceber que o SUS não pode fazer milagre. E o SUS retrata, por meio dos seus funcionários, a sociedade como um todo. E na sociedade tem muita gente homofóbica, tem muita gente que compartilha os “is” que eu falei antes, e que naturalmente isso vai se retratar no dia a dia, através de políticas de mau atendimento e do rechaço. ‘A culpa é sua, se você tem aids, porque você é gay’; ‘a culpa é sua, de você ter tuberculose, porque é pobre, negra e vive na periferia’. Essa percepção social da maioria dos profissionais da saúde, não somente médicos, tem um poder corrosivo muito importante.

Como enfrentar esse desafio?

É essencial que, nas políticas públicas, sobretudo nos governos mais esclarecidos, menos homofóbicos, menos racistas, menos sexistas, menos capacitistas, que a gente possa fazer o maior progresso possível, porque nunca se sabe como vai ser o dia de amanhã. É tudo muito frágil. Eu não imaginava, na minha idade, que a gente fosse voltar a ter batalhas que eu encarava já terem sido vencidas. Então, naturalmente, você vai ter muito profissional de saúde (e coloco abertamente) que por crenças religiosas não aceita uma orientação sexual. Você vê isso em hospitais, em ILPIs [instituições de longa permanência para idosos], onde pessoas mais idosas não podem compartilhar sua intimidade, por exemplo, ou viver “o amor que não ousa dizer seu nome”, como disse Oscar Wilde.

Como acontece fora do Brasil?

Eu não estou falando só do Brasil. Vou contar uma experiência que tive em Nova York, quando eu morava lá, depois de ter saído da Organização Mundial da Saúde [Kalache dirigiu o programa global de envelhecimento da OMS entre 1995 e 2008]. Eu trabalhava na Academia de Medicina de Nova York, com a função específica de criar um modelo age friendly, de uma Nova York amiga de todas as idades. E nós fazíamos discussões de grupo, muitas vezes reunindo dezenas de pessoas mais idosas, para que a gente pudesse sentir e aprender o que era importante para elas — o que é importante para a comunidade hispânica, ou para a comunidade negra do Harlem, ou para a comunidade chinesa, ou para a comunidade mesclada de classe média. É claro que as preferências e as necessidades variavam. Em um desses encontros, em que estava orientando, no meio da sessão houve uma comoção grande no fundo do auditório e, com a luminosidade baixa, eu não consegui perceber o que estava acontecendo. Então, interrompi a sessão porque naturalmente algo importante tinha acontecido. 

O que houve?

Um homem idoso, frágil, bateu a cabeça em uma quina quando se levantou para ir ao banheiro e levou um tombo. De imediato, chamaram uma ambulância e o levaram. Eu percebi que havia outro homem, igualmente frágil e idoso, que estava muito agitado. Ele tremia, estava descontrolado. Um mês depois encontrei com o diretor desse centro, que ficava na região central de Manhattan, e perguntei a ele se tinha notícias daquele senhor que se machucou. Ele me disse que infelizmente o senhor havia morrido. E aí eu perguntei pelo outro, que estava tão ansioso, angustiado. Soube então que era o companheiro dele, há mais de 36 anos, e que esse homem não foi reconhecido pela família do que morreu. Ele foi sumariamente posto para fora de casa com muito pouco recurso, não se soube mais dele, mas imagino que o final da sua vida tenha sido muito amargo. Resolvi contar porque é importante a gente ter histórias inspiradoras. 

Pode contar outra?

Uma das minhas maiores amigas em Nova York é uma mulher que hoje está com 98 anos e que participou de todas as grandes causas. Contra o racismo, o sexismo, a situação dos homeless [desabrigados]. Ela participou das grandes campanhas de Martin Luther King [pastor e ativista estadunidense, 1929-1968], fazendo trabalho voluntário, e depois se aposentou com algum recurso. Não era uma mulher rica. Essa mulher foi extraordinária! Hoje ela está em situação de grande dependência, sem mobilidade e cega. Essa mulher, nos anos 80, viveu em Chelsea, um bairro essencialmente gay, e viu muitos jovens morrerem. Jovens que sofreram todo o preconceito, no ostracismo, abandonados pela família. Ela se dedicou a isso, cuidou deles. Três ou quatro deles literalmente morreram em seus braços. 

Como ela está hoje?

Hoje ela enfrenta grandes dificuldades, inclusive de comunicação. Mas foi ela mesma que me contou muitas dessas histórias, e há fotos que a mostram abraçando esses jovens, alguns já bem fragilizados, no final da vida. Sabe quem cuida dela hoje? A comunidade gay de Chelsea. Certamente não os mesmos daquela geração dos anos 1980, mas jovens, gays que moram em torno dela. Eles têm um imenso carinho por ela e nada falta a essa mulher, que não tem filhos, nem sobrinhos, que tinha apenas uma irmã que morava longe e que faleceu recentemente. Essa mulher não foi abandonada e é cuidada. O que nós precisamos é restaurar a cultura do cuidado para todas as pessoas, inclusive para a população LGBT, que sofre discriminações — e para quem o envelhecimento pode ser ainda mais duro do que é para grande parte das pessoas. Precisamos cuidar destas pessoas que envelhecem em um país despreparado para a revolução da longevidade.

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