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Mauazinho, região leste de Manaus. Ao fim da tarde, é grande a movimentação no bairro, ocupado a partir da instalação da Zona Franca e do porto da Ceasa, no fim dos anos 1960 e que hoje é lar de 23 mil pessoas — muitas delas, refugiadas. Na rua principal, caminhões e ônibus disputam espaço com motos e pedestres, que se protegem do calor e do trânsito em calçadas estreitas. 

Sob marquises irregulares, residências de vários pisos se intercalam com pequenos comércios, emoldurados por um emaranhado de fios. Vendas de frutas e verduras, bares, confecções caseiras, igrejas, pequenas barbearias. Alguns açaizeiros lembram que estamos próximos do rio Negro; caminhões estacionados ao longo do caminho pontuam que perto dali está a BR-319, que liga a capital amazonense ao Sul do país.

Estamos em julho de 2024, a caminho da recém-conquistada sede da Acompañadas, organização social criada pela venezuelana Lis Carolina Martinez poucos anos antes, com o intuito de apoiar mães migrantes no seu processo de adaptação no Brasil. Quem conduz Radis até lá é uma conterrânea e amiga de Lis, Geisy Sulamita Rodríguez, assistente social que foi entrevistada durante a produção da reportagem sobre a saúde de mulheres migrantes (Radis 264).

Um lance de escadas e chegamos a um corredor que liga várias salas, onde algumas mulheres conversam animadamente. No prédio, já funcionam outros projetos sociais, explica Lis, que apresenta o espaço, conquistado há pouco mais de um mês, e ainda em processo de arrumação. A sala de administração, a biblioteca, o local reservado para as aulas. “Não temos dinheiro, mas temos excelentes parceiros”. 

Ela cita a Acnur (Agência das Nações Unidas para Refugiados), anuncia um projeto que será desenvolvido com a ONG Hermanitos, que também atua em Manaus, e comemora ter sido agraciada com uma bolsa do Fundo de Resiliência, financiada pela iniciativa global para o combate ao crime organizado, do governo norueguês, que vai permitir a estruturação da Acompañadas no Mauazinho.

Educar para mudar

“Nosso foco é a educação. É acompanhar as mulheres em seu desenvolvimento profissional e criar meios para que possam melhorar as suas vidas”, esclarece a fundadora da Acompañadas, que oferece cursos de português e de educação financeira, entre outras habilidades para o mundo do trabalho. 

“A educação é o único caminho para tirar estas mulheres da vulnerabilidade”, acentua, defendendo a formação para o empreendedorismo. “Ninguém muda de país para ter uma vida pior”, acredita a jornalista, que migrou para o Brasil em razão de um problema de saúde da filha e que, depois de enfrentar problemas com sua adaptação ao novo país, resolveu ajudar as conterrâneas.

Lis sabe que o início da vida em outro país pode ser bem complicado: “Eu achava que falar português era fácil; não é”, conta, relatando que isolamento e falta de comunicação abalam a saúde de muitas refugiadas. “As mulheres migrantes quando chegam aqui se fecham. Não querem sair de casa. Isso causa diferentes problemas de saúde, como a depressão e o sedentarismo. Uma pessoa que não tem dinheiro, não consegue se comunicar e que não tem perspectiva, adoece”. 

Ao contrário, defende a jornalista, “quando você tira essa mulher de casa e a integra à sociedade, ela começa a caminhar, a comer melhor e a se sentir acompanhada. Sua saúde mental melhora, sua saúde física também”. Lis tem conhecimento de causa. Até 2018, trabalhou por 26 anos em jornais e na indústria petroleira venezuelana. Nunca havia pensado em sair do seu país. 

Ela se viu obrigada a mudar quando a filha Amanda, então com três anos, quase morreu por falta de um remédio para a crise de asma. “Foi uma emergência: ou eu migrava ou assistia a ela morrer”, relembra. Vendeu tudo e veio a Manaus, também trazendo o outro filho, Alberto, de seis anos. Chegando à cidade, com pouco dinheiro, conseguiu um trabalho como cozinheira, onde se sentia explorada e desvalorizada. 

Arepa com Tucumã

Foi quando a venezuelana de Caracas pensou pela primeira vez em ajudar a outras mulheres, para que não sofressem o que ela sofria. “Mas eu não tinha como fazer nada naquele momento”, explica. O passo seguinte foi largar o emprego e criar seu próprio negócio — a empresa de catering de comida venezuelana e brasileira chamada Arepa com Tucumã — e voltou a se articular para fazer nascer o projeto Acompañadas, que floresceu três anos depois, em 2021. “Nem acredito que já estou aqui”, emociona-se.

O lugar não poderia ser outro: “Mauazinho é o meu bairro, um bairro muito receptivo com os migrantes”, explica, informando que quando chegou, havia poucas famílias venezuelanas. Hoje, passam de 600. Ali, acentua, seus conterrâneos e outros migrantes são respeitados e integrados à comunidade. 

Seu sonho é retribuir a acolhida, ampliando o projeto de modo a também ajudar os homens, pessoas de outras nacionalidades e até brasileiros de baixa renda que estão em vulnerabilidade. Ela informa que, em 2023, Acompañadas conseguiu reunir 75 pessoas em um curso de empreendedorismo, das quais 17 já estão trabalhando. Na área de gastronomia, registra o sucesso da formação na produção de “café da manhã brasileiro” que tem sido importante para a geração de renda de muitas mulheres venezuelanas.

A empreendedora social esclarece que o trabalho de capacitação laboral de mulheres migrantes, no entanto, não pode prescindir de abordagens sobre saúde. “O começo de uma vida nova necessita disso”, diz. Ela fala sobre parcerias com o Instituto Manas e com a unidade básica de saúde do Mauazinho, e as compara, em nível de importância, a atividades de auxílio à regularização de documentos. Ambas, saúde e documentação, são determinantes para que o migrante possa trabalhar.

Direito castigado

Lis é enfática ao afirmar que a saúde é um dos direitos mais castigados na Venezuela, o que explica porque ela e muitas outras conterrâneas escolhem o Brasil para viver. “O sistema público lá não funciona. E a medicina paga é excessivamente cara”, diz. Ela calcula que apenas um dia em uma clínica venezuelana pode custar 1.500 dólares. “Lá, quem tem algum problema de saúde ou tem muito dinheiro ou morre”, assegura.

“O brasileiro fala que o SUS é ruim, mas para nós é o paraíso”, diz a ativista, que usa o problema da filha para exemplificar como a assistência pode ser simples. “Quando ela tem uma crise de asma, eu a levo ao posto, ela recebe o tratamento e volta pra casa. Para mim, isso é maravilhoso, porque lá a gente não tem isso”, avalia. “O sistema de saúde na Venezuela sempre foi ruim, mas hoje é inexistente. Um simples medicamento para asma ou para hipertensão não existe. Coisa que aqui custa 20 reais”.

Avançar mais

Envolvida na luta pelos direitos de pessoas migrantes e refugiadas, Lis foi eleita delegada da Comigrar, após participar de conferências livres regionais e nacionais, que aconteceram ao longo de 2024. “Desde janeiro comecei a me envolver com o assunto e fui eleita durante a Conferência Livre Nacional sobre os Direitos das Mulheres Imigrantes, Refugiadas e Apátridas, em março de 2024”. 

Em julho, sua expectativa era grande: ela menciona a celebração dos 40 anos da Declaração de Cartagena [instrumento jurídico adotado em 1984 que estabelece princípios e amplia a definição de refugiados na América Latina e no Caribe, considerado um marco na proteção de refugiados na região], documento que permite que hoje os venezuelanos possam pedir refúgio por razões de conflitos sociais. E celebra que o país que escolheu tenha mecanismos de proteção únicos: “O Brasil tem a melhor legislação para pessoas migrantes na América Latina”, avaliou. 

Para ela, a Comigrar é a oportunidade de “avançar um pouco mais”, no sentido de efetivar a legislação que já existe. “O Brasil tem muitas leis, que são maravilhosas, mas muitas delas não são aplicadas — ou são aplicadas tarde. “A sociedade tem que se mobilizar para que as leis sejam efetivas, não somente as que existem para os migrantes”, analisa. 

Dizendo-se grata pela vida que leva por aqui, ela finaliza: “No Brasil, eu aprendi algo que não sabia: ter paciência. Aqui eu cultivo paciência”, revela, assinalando que é preciso lutar para que as coisas aconteçam. “E, também, ganhei de presente, do Amazonas, as frutas e a tapioca, que não conhecia. Eu não conseguiria mais viver sem farinha e sem açaí; já fazem parte da minha vida!”.

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