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Os problemas do SUS resultam da falta de financiamento ou de má gestão? Esta falsa dicotomia é objeto de profunda análise no livro SUS: Avaliação da Eficiência do Gasto Público em Saúde, organizado pelo economista Carlos Octávio Ocké-Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Lançada em abril deste ano, a publicação é uma parceria do Ipea com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS).

Em conversa com Radis, o doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e pós-doutor pela Yale School of Management (New Haven, EUA) afirma que “é plausível admitir que boa parte dos problemas de gestão tenham decorrido em razão de um quadro de restrição orçamentária”.

Na avaliação dele, o novo marco fiscal — que está na pauta de votação da Câmara dos Deputados, depois de ter sido aprovado pelo Senado — promove avanços em relação ao teto de gastos (que retirou R$ 70 bilhões do SUS), mas recua, emprestando zelo fiscalista à política econômica. Para Ocké-Reis, o financiamento adequado do SUS poderia inscrever o setor no centro de um modelo de desenvolvimento marcado pelo crescimento econômico inclusivo e sustentável. 

A discussão sobre o financiamento da saúde está baseada na dicotomia financiamento e eficiência. Mas pouco se fala em eficácia e efetividade. Por que é importante trazer essas outras perspectivas para a discussão? O que elas apontam sobre a saúde brasileira?

Na saúde, em termos conceituais, a eficiência deve ser cotejada com a eficácia e a efetividade. Em outras palavras, não basta ser eficiente, se os indicadores e os desfechos das condições clínicas e epidemiológicas não são melhoradas, tampouco se as necessidades de saúde e de assistência médica da população não são atendidas. Desse modo, seria prudente evitar a adoção de um certo modismo gerencial, que apregoa que não adianta gastar mais, porque o SUS gasta mal, até porque a busca da eficiência em direção à eficácia e efetividade pode, na realidade, significar e exigir o aumento dos gastos sociais e dos investimentos públicos.

O que falta para que a gestão do SUS seja mais eficiente? E ainda que fosse 100% eficiente, ainda assim seria preciso haver mais investimento?

A rigor, a “eficiência” aparece como panaceia administrativa, a qual, em nosso caso, acaba servindo para reforçar a ideia de que os problemas do SUS resultam da falsa dicotomia entre financiamento e gestão — quando é plausível admitir que boa parte de seus problemas de gestão tenham decorrido em razão de um quadro de restrição orçamentária. Entretanto, esse debate sobre a eficiência é de relevância pública e pode auxiliar na formulação, execução e avaliação das políticas de saúde. Desse modo, a eficiência em algumas instâncias no SUS é prejudicada pelo desfinanciamento, exigindo que eventuais ineficiências sejam avaliadas, aferidas e superadas.

Em sua opinião, qual é a principal contribuição do livro?

No plano teórico e empírico, em direção a um sistema público de saúde mais democrático, sua principal contribuição reside, de um lado, em procurar desfazer a ilusão de que simplesmente a diminuição de recursos vai aumentar a eficiência do SUS e, de outro, em ampliar a percepção de que não basta ser eficiente (fazer de modo econômico), é preciso também ser eficaz e efetivo (fazer de modo resolutivo o que é necessário e ético), para garantir uma saúde pública de qualidade para os trabalhadores e para as famílias brasileiras, afirmando o direito social à saúde da Constituição de 1988.

Na atual conjuntura, com a superação do teto de gastos e o novo regime fiscal, como você avalia as possibilidades de investimento no SUS?

No contexto de uma estratégia defensiva, a nova regra fiscal pode ser vista como parte constitutiva de um programa mínimo, que, a depender do acúmulo das forças democráticas e populares, viabilizará a passagem pelo labirinto conservador presente na conjuntura. De um lado, promove avanços em relação ao teto de gastos (que retirou R$ 70 bilhões do SUS), mas, de outro, recua, emprestando zelo fiscalista à política econômica, que diminui a possibilidade de abrir a galope um novo ciclo de desenvolvimento, na acirrada geopolítica mundial. Esse caráter contraditório da proposta obscureceu seu componente dialético, que precisa ser iluminado, no sentido de apontar para superação suis generis da política de austeridade fiscal no médio prazo: a dualidade orçamentária. Na saúde, foram aplicados adicionalmente R$ 21 bilhões em 2023 (PEC da transição) e serão destinados recursos extras entre R$ 20 a R$ 25 bilhões em 2024, uma vez que foram preservados os 15% da Receita Corrente Líquida (EC 86). Vale dizer, o piso da enfermagem tinha sido excepcionalizado na nova regra, mas o “centrão” vetou esse dispositivo, fragilizando a proposta original feita pelo governo Lula na Câmara dos Deputados. Não sabemos qual será o desenho final aprovado no Parlamento, mas, caso seja retomado o debate acerca do piso da saúde, é preciso avançar, recompondo as perdas patrocinadas pelo teto de gasto (EC 95), deixando as emendas parlamentares fora do piso e criando novas fontes de custeio do SUS no orçamento da seguridade social. 

“Para preencher os pressupostos constitucionais do SUS, o gasto público em saúde deve alcançar no mínimo 6% do PIB nos próximos 5 anos”

O Brasil vai investir o suficiente para garantir o cumprimento do mandamento constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” no contexto da pós-pandemia?

A pandemia da covid-19 reforçou a importância dos sistemas públicos de saúde, da soberania sanitária e da autonomia produtiva dos países, requerendo-se crescentes capacidades estatais para atender às demandas da população brasileira por serviços de saúde. Em particular, na atual conjuntura histórica, a política fiscal adquiriu um papel relevante para a estabilização da economia, destacando-se a aplicação de gastos estratégicos com fortes efeitos redistributivos e multiplicadores como os de saúde. Para preencher os pressupostos constitucionais do SUS, portanto, mediante uma regra de financiamento menos dependente do ciclo econômico, o gasto público em saúde deve alcançar no mínimo 6% do PIB nos próximos 5 anos, acompanhado de forte regulação estatal sobre o conjunto do mercado de serviços de saúde. De modo que, além da aplicação de uma reforma tributária progressiva, canalizando recursos do pré-sal para a saúde, na reversão do ciclo, a estabilidade do gasto em termos per capita exigiria emissão de dívida, de tal forma que a saúde passaria a funcionar como um estabilizador automático da própria economia, mitigando os impactos da crise. Desse modo, o financiamento adequado do SUS é condição necessária para a garantia do direito universal, integral e igualitário à saúde, mas também permite inscrever o setor no centro de um modelo de desenvolvimento, marcado pelo crescimento econômico inclusivo e sustentável.

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