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A adesão aos dias de luta da pessoa com deficiência é particularmente importante para entendermos o que estamos fazendo para transformar a estrutura societária que oprime e segrega essas pessoas.

Recentemente foi publicada a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) que atestou que havia no Brasil, em 2019, 17,3 milhões de pessoas com deficiência; dessas, 2,5 milhões têm deficiência intelectual, psicossocial e outras. Note que para designar essa população, a pesquisa usa o termo, ultrapassado há décadas, “deficiência mental”, cuja semântica deriva do predomínio do modelo médico pautado pela ausência, pelo que a pessoa não é e pelo que não tem.

E por que é importante falar das terminologias? Porque elas carregam significados, visões de mundo… Discursos produzem saberes e saber é poder, já dizia Foucault, para quem os discursos delineiam sujeitos e coisas e produzem arenas de disputa em que se desenham quem é oprimido e quem é opressor.

Pessoas com deficiência seguem estigmatizadas, denominadas por termos pejorativos, que as diminuem, como na PNS, ou ainda terminologias que as afastam de sua condição humana, a exemplo da criança “especial”, daquelas consideradas “anjos”, supercarinhosas, incapazes de mentir, e análogos.

O estigma é de tal monta que pessoas com deficiência quando chegam à adolescência e fase adulta precisam, em sua maioria, buscar ciclos segregados de interação social, pois não são consideradas pares potenciais para um relacionamento com as pessoas cuja diversidade funcional não é estigmatizada na sociedade.

E quando nós, pessoas sem deficiência, naturalizamos a inexistência de relacionamento entre pessoas com e sem deficiência (com raras exceções), estamos reafirmando que há vidas que valem mais do que outras; que há pessoas melhores do que outras. E essa é uma reflexão válida para o dia de hoje! Para que entendamos que somos capacitistas, mesmo envolvidas(os) na luta, mesmo tendo familiares e amigas(os) com deficiência.

O centenário de Paulo Freire foi comemorado em 2021. Seu legado nos inspira a questionar como nós professoras e professores, ou responsáveis por crianças em idade escolar, por exemplo, estamos nos comprometendo com a gestação de uma sociedade com consciência de classe, com compromisso social acima de tudo, de uma sociedade que respeite a sua diversidade.

Como nós, instituição de ensino, estamos nos esforçando para derrubar as barreiras que erguemos à inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Como nós, pesquisadoras(es), estamos contribuindo para o violento e perene silenciamento dessas pessoas, que não protagonizam nossas pesquisas. Como nós estamos confundindo o legítimo direito da mulher de abortar, com a defesa do aborto eugênico de pessoas que não participaram da definição das características humanas consideráveis aceitáveis e, no processo, foram consideradas abjetas.

É importante reconhecer que desempenhamos um papel na manutenção dessa injustiça social histórica que — em vez de respeitar e acolher o fato de que todas as pessoas têm formas diferenciadas de funcionar, de aprender e de existir — positivou uma série de características aceitáveis, consideradas “normais”. E, no processo, marginalizou uma parcela da população cujos direitos seguem violados, conforme se depreende da última PNS: 67,6% das pessoas com deficiência não tinham instrução ou tinham o ensino fundamental incompleto em 2019 (mais do que o dobro dos pares sem deficiência). A disparidade aumenta quando são considerados os indicadores de educação superior e segue escalando na inserção no mercado de trabalho, dado que enquanto 66,3% da população sem deficiência ocupava o mercado de trabalho em 2019, apenas 28,3% daquelas com deficiência conseguiram colocação. Note-se que os circuitos de exclusão à pessoa com deficiência não são homogêneos e apenas 4,7% das pessoas com deficiência intelectual e psicossocial, por exemplo, encontravam-se ocupadas em 2019.

Todos os indicadores desse estrato populacional são mais precários, quando comparados com seus pares. Isso indica violação sistemática de seus direitos humanos. Indica que os importantes marcos conquistados pela luta emancipatória dessas pessoas precisam não somente se efetivar, como também avançar.

Professora, mãe, militante, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e, sobretudo, capacitista em desconstrução.
https://radis.ensp.fiocruz.br
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