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Há cinco anos, a vida de Francisco Alves da Silva deu uma reviravolta quando foi demitido da assistência técnica das Casas Bahia e passou a ser um funcionário terceirizado. Além do emprego estável, Francisco perdeu o salário fixo, o tíquete refeição, a cesta básica e o plano de saúde. Perdeu também o carro, que teve que ser vendido, já que faltava dinheiro para a manutenção. Era nele que Francisco ganhava um adicional para carregar as peças do mobiliário que seria montado na casa dos clientes da loja. Era com esse carro que ele também fazia pequenos fretes para “salvar” algum dinheiro.  “Desde que deixei de ter carteira assinada, a vida foi ficando cada vez mais difícil”, diz o paraibano, de 39 anos, desde os oito anos de idade no Rio de Janeiro. “Perdi o emprego e junto com ele foi tudo o que eu ganhava, inclusive os extras. Porque hoje em dia eu não tenho condições de quase nada porque as coisas se tornaram muito difíceis”, desabafa em depoimento à Radis.

Francisco conta que foi à luta e buscou trabalho em outras lojas, como montador de móveis, profissão que exerce há 18 anos. Como o pagamento por esse serviço era baixo e não dava para o sustento da família, ele diz que passou a trabalhar também por conta própria, atendendo diretamente sua clientela. Mas as contas não fechavam e, para complementar a renda, o montador estava fazendo outros serviços. Em março, se fez ajudante em uma obra no bairro de Ipanema, a menos de 10 quilômetros de sua casa. “Nesse aí eu ganhava oitenta reais de diária e a passagem. Era dali que eu estava tirando um dinheirinho para a semana, até que estava bom”, brincou. “E aí veio a pandemia”, diz Francisco, assumindo que o coronavírus colocou ainda mais a vida fora do eixo. 

A frase encerra toda a dureza que ele vem enfrentando desde o início de março. “No começo até que deu para levar, de um jeito ou de outro. Mas, olha, se os tempos já estavam difíceis, agora pioraram muito”, afirma. De março até junho, sua renda, que já era incerta, despencou para zero, chegando ao que chamou de “abaixo do insuficiente”. Segundo ele, a fonte minguou sem que sequer tivesse tempo de processar a virada. “Eu vou confessar que hoje minha conta tem vinte reais. Depois desse vírus, está tudo muito ruim de trabalho e difícil de sobreviver”, conta.

Durante a pandemia, Francisco — que tem diabetes e, portanto, faz parte do grupo de risco — teve que sair às ruas para buscar o medicamento controlado no Posto de Saúde da Rocinha, mas estava em falta. “Não é a primeira vez que isso acontece. Eu tomo três comprimidos por dia. A notícia que recebi é que o remédio iria chegar a partir do dia 10 de julho. Tive que dar um jeito de comprar na farmácia”, comenta. Para ele, o sistema público de saúde é algo distante: ele confessa que sequer conta com essa assistência no seu dia a dia. “O SUS para mim é uma coisa que nem existe. Se eu parar de tomar os remédios, pode ser que a glicose suba e eu precise ser internado. E se precisasse, como faria se não tem atendimento? Como eu posso continuar meu tratamento? Na dependência de um posto que não tem remédio?”, lamenta. O jeito, então, foi comprar o medicamento de qualquer forma. 

Na conversa, por nove vezes Francisco falou a palavra “difícil”. A intensidade do momento foi expressada nesse adjetivo tantas vezes repetido. 

 “É por essas coisas que eu tenho que cair para dentro”, explicou. Cair para dentro significa que ele está pegando qualquer coisa e aceita um valor mais baixo para levar dinheiro para casa. “Se já estava ruim, piorou, agora está difícil de sobreviver. Ninguém compra, ninguém pode sair de casa ou receber outra pessoa em casa porque está todo mundo com medo”, lamenta. Apesar disso, ele mantém o otimismo e se segura na profissão de montador. “Sem ela, estaria morando na rua, porque eu não teria recurso nenhum. O único calço que eu tenho é fazer uma montagem aqui, outra acolá, que agora nem isso está aparecendo, e seguir minha vida do jeito que Deus permite. Está brabo, complicado”, explicou.

Além dos serviços eventuais, durante o tempo em que ficou em isolamento, Francisco diz que cuidou da filha, Naiara, de 6 anos, que continuava sem aulas e sem previsão de volta à escola. Até a volta à rotina, as tarefas vão continuar a ser enviadas para o celular de Francisco, e impressas na lan house da comunidade. A esposa não parou de trabalhar como auxiliar de serviços gerais numa farmácia de manipulação, no bairro da Gávea. Segundo Francisco, o salário dela é que garantiu o pagamento do financiamento da casa de um quarto e um banheiro que seria aumentada se o dinheiro guardado na poupança não tivesse sido usado para comprar mantimentos e cobrir as despesas. “Eu fiquei bem angustiado no início vivendo aquele período de incerteza e sem saber o que iria fazer. As contas não param de chegar e a gente tem que dar um jeito”. 

Enquanto falava pelo celular com Radis, Francisco andava pelas ruas da Rocinha, onde mora, para encontrar um amigo e ajudar em um frete. O burburinho ao fundo era intenso e o montador comentou que ele “foi voltando” aos poucos e ganhou força com a flexibilização do isolamento. “Até o final de maio, as pessoas estavam até se cuidando. Agora, mesmo com o ciclo da doença continuando no país, estão todos voltando ao normal. É muito difícil de entender isso, porque a doença está aí”, comenta. Mesmo sem ter feito o teste, ele tem certeza que foi infectado pela doença, pois durante três semanas teve sintomas fortes, perdeu o paladar e o olfato, teve dor de cabeça e febre. “Eu fui ao posto de saúde em busca de atendimento, mas a unidade estava fechada”, observa. 

Segundo ele, a preocupação do casal nesse momento era a filha, que não teve qualquer sintoma. “Minha esposa também pegou e está bem. Eu estou aqui contando a história. Mas se tivesse vindo um negócio mais forte, se a minha imunidade estivesse baixa, eu poderia ter morrido e seria mais um caso”, comenta, lembrando dos dois amigos e de conhecidos que não tiveram a mesma sorte. “Morreu muita gente por aqui. Como é que o cara chega numa emissora de TV e diz que é uma gripezinha e que não vai matar ninguém, morrendo o tanto de gente que morreu?”, diz, em referência a políticos que minimizaram o problema.

Por isso, para o montador de móveis, o vírus que anda matando é grave, mas pior é o descaso de autoridades para com a população de baixa renda. “Ninguém liga para a gente, ninguém está aí para as pessoas de baixa renda”, sentencia. Em março, no início da pandemia, ele conta que dois caminhões da Prefeitura lavaram o mercado popular, que fica na entrada da comunidade, e algumas ruas. Depois disso, nada mais foi feito. “Somos seres humanos e estamos esquecidos”, constata. Francisco acha que haverá dias melhores, mas, por agora, assume que a vida tem sido bem tensa. “Hoje meu gás acabou e eu precisei pedir dinheiro emprestado para comprar. Senão, nem mais gás eu teria em casa”. 

Como profissional autônomo, Francisco tem direito ao auxílio emergencial de R$ 600 que o governo destinou a trabalhadores sem renda. Mas nem isso chegou. “Fiz o cadastro e nada. Fui na Caixa Econômica e falaram que é tudo pela internet, agora não consigo acessar o site pelo celular, fiquei horas tentando. Eu estou cadastrado para quê? Pra não receber nada?”, pergunta, certo de que não vai receber o auxílio federal ou o outro, da prefeitura carioca, de quem recebeu um cartão e apenas uma promessa. “Daí também não veio e não virá nada”, afirmou. Mesmo nesse cenário tão incerto, ele se agarra na fé e faz questão de acreditar em um futuro melhor. Uma semana depois da conversa com Radis, ele fez aniversário e, como revelou, e mantinha a chama da esperança acesa. “Isso vai passar, tem que passar”, afirma. Aos poucos, Francisco disse que a vida entraria. Em julho, segundo ele, a obra foi retomada e, em agosto, informou à reportagem que estava mais animado pois os serviços de montagem estavam começando a surgir. 

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