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Se fosse possível uma fotografia panorâmica do resultado das eleições de 2020, ela teria menos senhores brancos, heterossexuais, de bigode e com dinheiro no bolso. O novo retrato que sai das urnas é um pouco mais diverso, plural. Milhares de mulheres negras terão assento nas câmaras municipais de todo o país – nas prefeituras, serão 209. A população LGBTQIA+ contará com 30 representantes – eram apenas oito em 2016. Entre as comunidades tradicionais, outros avanços: 10 cidades brasileiras vão ser administradas por prefeitos indígenas e haverá muitas etnias ocupando 214 vagas nos legislativos, sem contar os quase 80 quilombolas eleitos para os cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador. Nesta reportagem, você vai conhecer alguns desses mandatos que prometem ser atravessados pela pauta da diversidade sexual, de gênero e de raça, da justiça social e da igualdade.

É verdade que a mudança no perfil dos eleitos não representa uma transformação estrutural: mais de 900 cidades do país continuam sem nenhuma mulher no parlamento municipal e o aumento no número de negros no Executivo e Legislativo não resolve o problema da sub- -representação. Mas é inegável a ampliação da representatividade nas urnas. Porto Alegre – a capital mais racista do país, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – elegeu Bruna Silva Rodrigues (PC do B), uma preta, filha de uma gari, para a Câmara Municipal. Já Fortaleza vai experimentar pela primeira vez um mandato coletivo – no caso, “uma mandata”, como preferem Adriana Gerônimo, Louise Anne de Santana e Lila M. Salu, três jovens mulheres negras da Mandata Coletiva Nossa Cara (Psol), que chegam ao legislativo com uma votação histórica de 9.824 votos.

Numa leitura do momento atual, a cientista política Flávia Biroli destacou a eleição de muitas mulheres negras e jovens para as câmaras municipais como fruto de um pensamento que vem sendo construído por movimentos sociais antirracistas e feministas nos últimos tempos e que traz a defesa e a proteção à vida como contraponto às desigualdades e ao autoritarismo dos espaços de decisão política. Em um seminário do projeto Democracia Participativa, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), transmitido online dia 10 de dezembro, ela ressaltou que é importante olhar para a eleição dessas mulheres não apenas como a defesa de uma política de identidade. Mas como parte importante de uma disputa em que “o racismo, o sexismo, as desigualdades de classe e as inseguranças cotidianas são colocadas no centro das propostas para que se possa construir espaços verdadeiramente democráticos e repensar o Estado”.

Na pequena Salesópolis, cidade de inclinação conservadora no interior de São Paulo, a transexual Rebecca Barbosa foi a mais votada de seu partido (PDT) e a partir deste ano também ocupará o parlamento municipal. À Radis, ela conta que não pretende dar visibilidade apenas às causas trans. [Leia depoimento clicando aqui]. Em um comunicado em que comemorou o aumento de quase 300% no número de transexuais eleitos, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) afirmou: “Representatividade é muito importante, mas projeto político, compromisso ético, conduta ilibada, atuação política, diálogo com os movimentos populares e instituições da sociedade civil, e senso de compromisso social, são outros tão importantes quanto”.

Orgulho e preconceito

“É preciso ter raça”. Com esse slogan, Benny Briolly, mulher trans e negra, se candidatou pelo Psol nas últimas eleições, em Niterói. Durante a campanha, defendeu o cumprimento da lei municipal que propõe o ensino da história e cultura afrobrasileira nas escolas e que conselhos populares e de favela discutam a política de segurança pública do município. Prometeu lutar pela defesa da tarifa zero no transporte público. Explicou por que o SUS não pode morrer. Fez caminhadas (com máscara) pelo fim da cultura do estupro e com a população LGBTQIA+. Conquistou o voto de 4.458 eleitores e tornou-se a primeira vereadora transexual da história da cidade. Ganhou também desafetos, na mesma intensidade das paixões que despertou.

“Enquanto você ganha um salário de vereador apenas por ser um pedreiro de peruca, eu estou desempregado, minha esposa está com câncer de mama e estamos vivendo do auxílio emergencial. Eu juro que se você não renunciar ao mandato vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho aqui no Rio de Janeiro e uma passagem só de ida para Niterói e vou te matar. Eu já tenho todos os seus dados e vou aparecer aí na sua casa”, dizia a mensagem enviada por email anônimo, depois de eleita. Contra as ameaças que começaram ainda durante a campanha, Benny vem registrando boletins de ocorrência. Também começou a andar de carro blindado. À Radis, disse que se sente vulnerável, mas que não irá ficar calada. “Não podem nos interromper”.

De teor racista, machista ou homofóbico, as tentativas de intimidação se alastram pelo país. Em Belo Horizonte, a professora e vereadora trans Duda Salabert, do PDT, também foi ameaçada de morte. O conteúdo das mensagens divulgado por ela em suas redes sociais é semelhante ao que foi recebido por Benny Briolly. Em alguns casos, as expressões são as mesmas, o que faz parecer um ataque coordenado dirigido às parlamentares. Em resposta a todo o ódio, a vereadora mais bem votada da capital mineira com 37 mil votos está em campanha pela presidência da Casa, defendendo um programa “que objetiva transformar a câmara em um espaço mais democrático, mais popular, mais plural”.

Carol Dartora (PT), primeira vereadora negra de Curitiba, e Ana Lúcia Martins (PT), também negra, eleita para a Câmara Municipal de Joinville, em Santa Catarina, foram outras parlamentares a sofrer ameaças pela Internet. Além de formalizar a denúncia, elas estão acionando uma rede de proteção. Mas com o aumento da representatividade de mulheres negras, os agressores não disparam injúrias e ofensas apenas contra políticos eleitos dentro do campo considerado de esquerda. Em Bauru, em São Paulo, Suéllen Rosim é a primeira prefeita negra a administrar a cidade, a partir de janeiro de 2020. Eleita pelo Patriota com 55,98% dos votos válidos, foi mais uma hostilizada nas redes. Entre os ultrajes, estão expressões como “macaca”, “cara de favelada” e “gente de cor”. “Eu represento muitas mulheres, muitas negras que buscam o seu espaço ao longo desse trajeto, não só na política, mas em todas as áreas”, disse ao G1 (30/11). “Isso não vai me calar. Não (vai) me tornar invisível”.

“Avançaremos!”

Era noite do dia 15 de novembro, quando a população de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco, saiu às ruas para dançar ao som de chocalhos e maracás, em comemoração à eleição do cacique Marquinhos Xukuru (Republicanos) para a prefeitura do município. Ele venceu a eleição com 51,6% dos votos e foi apenas um dos 2.212 indígenas que se candidataram a cargos no Executivo e legislativo em 2020, representando um aumento de 27% em relação às eleições de 2016, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A instituição, que havia lançado o movimento “Campanha Indígena” – uma mobilização para ampliar a representatividade dos povos indígenas e a defesa dos direitos das diversas etnias por meio da visibilidade e com suporte jurídico voltado aos candidatos – comemorou o feito.

Durante a campanha, Marquinhos Xukuru bradou: “Se o Estado brasileiro não sabe governar, nós sabemos governar. E diga ao povo que avance!”. Ao que os seus eleitores respondiam em coro: “Avançaremos!”. Era um grito em defesa dos territórios e da identidade cultural indígena. Na cidade em que os povos originários somam mais de um terço da população, a eleição do cacique com 17.654 votos vem sofrendo revés na justiça. Xukuru teve a candidatura indeferida por ter sido condenado em 2015 por dano contra o patrimônio privado. A ação é controversa. Segundo a Apib, no processo que o criminalizou, o cacique teria sido na verdade vítima de um atentado sofrido por ele e seus seguranças. Ele entrou com recurso e agora aguarda julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília. Em nota (8/12), a Apib disse ainda que o cacique “é vítima em uma ação de base racista” movida pela atual prefeita da cidade e candidata à reeleição, Maria José (DEM), derrotada nas urnas por uma diferença de mais de 2 mil votos. [Até o fechamento desta edição, o caso permanecia indefinido]

Consideradas um marco para os povos indígenas, as eleições de 2020 também significaram enormes avanços para a representatividade quilombola: dois prefeitos, nove vice-prefeitos e 68 vereadorxs – assim mesmo com “x”, para respeitar a linguagem neutra de gênero –, de acordo com Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Apenas a região Sul não terá quilombolas ocupando mandatos nos próximos quatro anos. Em Pernambuco, serão sete: cinco homens e duas mulheres. Entre elas, a professora Jacielma (PT). Aos 45 anos, a representante da comunidade de Umburana, do território quilombola Águas do Velho Chico, foi eleita para a Câmara de Vereadores de Orocó. “Temos muitas demandas e a primeira delas vai ser vencer o preconceito institucional”, disse à Radis em uma manhã de sábado de dezembro, entre um compromisso e outro [ver matéria na página 19]. “Nós, dos quilombolas e das comunidades tradicionais, não somos coitadinhos ou bichinhos com necessidades. Somos sujeitos de direitos. E é assim que a gente quer ser visto”. E é assim, reverenciando a memória ancestral do seu povo, que ela pretende escrever uma nova página da história quilombola, a partir de 1 de janeiro de 2021.

I. Adriana, Louise e Lila – Nossa cara / Fortaleza (CE)

Três corpos negros, uma “Mandata”

“Sou feminista. Voto Nossa Cara”. “Sou das quebrada. Voto Nossa Cara”. “Sou LGBTQIA+. Voto Nossa Cara”. Os cards nas redes sociais impulsionavam a campanha inspiradora que três mulheres negras da periferia de Fortaleza conduziram nas ruas – com máscara e álcool em gel – entre cortejos e rodas de conversa. Adriana Gerônimo, Louise Anne de Santana e Lila M. Salu têm entre 30 e 33 anos e muitos planos para levar adiante, agora que conquistaram uma vaga na Câmara Municipal. Pela primeira vez, a capital cearense vai experimentar o formato de mandato coletivo – uma nova forma de ocupar o Legislativo, quando o cargo conquistado pelo voto popular é partilhado entre duas ou mais pessoas e conta com ampla participação da sociedade civil.

A exemplo do que já acontece em Belo Horizonte, com a Gabinetona, e em Recife, com as Juntas, a mandata coletiva Nossa Cara promete movimentar as estruturas do parlamento. “Fortaleza tende a se surpreender porque a construção dessa mandata vai extrapolar os limites institucionais. A gente vai debater cultura, educação, direito à cidade com qualidade e de maneira participativa com a população”, promete Adriana Gerônimo. Foi o rosto dela que, para cumprir com a formalidade da legislação eleitoral, apareceu na urna. Da mesma maneira, caberá a Adriana ocupar, oficialmente, o cargo em plenário. Tudo o mais será exercido coletivamente: da decisão sobre o voto e apresentação de projetos de lei à construção de audiências públicas. A remuneração também será dividida por três. Como covereadoras, Louise e Lila estarão na assessoria do gabinete. Mas para que não haja diferença entre os valores recebidos individualmente, o salário das três será equiparado. A sobra mensal vai alimentar um fundo social para beneficiar atividades que já existem nas comunidades a serem selecionadas por meio de editais

Para a tribuna da Câmara, garantem levar a política do cotidiano, as pautas do dia a dia, a luta da mãe de periferia por vaga na creche, a briga na fila de espera por melhor atendimento na saúde, o confronto para não perder a casa para as remoções, as causas das gentes comuns. “Na campanha, as pessoas se identificavam com a gente. Essa é a nossa maior vitória política”, disse ainda Adriana num bate-papo descontraído com a Radis, em que as falas de uma eram complementadas pelas das outras duas. “As líderes comunitárias são mulheres pretas, as enfermeiras nos postos de saúde também; as mulheres que visitam as nossas casas são pretas; as escolas públicas estão cheias de mulheres pretas; a gente está em todo canto; então, o que a gente mostrou é que era possível estar também na Câmara Municipal”, acrescentou Louise. Nas palavras de Lila: “Não fomos só uma candidatura que se limitava à nossa representatividade. Trata-se de um projeto político com muitas ‘manas’ envolvidas”

Quem é quem

Adriana, 30, foi mãe na adolescência – tem uma filha de 11 e outra de 4 anos – e talvez por morar no Lagamar, uma comunidade que sofre constantes ameaças de despejo, talvez por se preocupar com os outros à sua volta, entendeu cedo o valor da militância. “A gente não milita por hobby”, diz, com voz mansa e segura. Assistente social e líder comunitária, traz na bagagem a vivência das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e dos movimentos por moradia.

Louise, 30, é professora na rede pública municipal e cursa Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). Sua primeira organização coletiva, costuma dizer, foi a igreja – seus pais são pastores da Assembleia de Deus. É militante da Rede de Mulheres Negras do Ceará, da Frente dos Professores Antifascistas e de outros movimentos por igualdade. E gosta de sorrir enquanto fala. “A gente nasce sabendo que é preto, mas se organizar enquanto pessoa preta é um processo”.

Lila, 33, é da quebrada, nascida na favela Verdes Mares. Faz parte do movimento hip hop, do rap, é compositora, cantora – Mc Lila M. Salu. “Artivista”, como se define, entende a música como canal diálogo. Lésbica, milita no movimento LGBTQIA+ e ajudou a construir o Tambores de Safo, grupo que usa a música e a arte para contribuir para um pensamento feminista. Diferente das suas companheiras de mandata, não é filiada ao Psol.

Quando se encontraram nas lutas pelas ruas da cidade, ainda não sabiam que um dia formariam um mandato coletivo. A decisão da candidatura veio antes do que esperavam. As três fazem parte do “Ocupa Política” – rede nacional que passou a reunir organizações, coletivos da sociedade civil e mandatos- -ativistas para ocupar a política institucional, desde a vitória, em 2016, de três mulheres negras para câmaras municipais: Marielle Franco (Rio de Janeiro), Talíria Petroni (Niterói) e Áurea Carolina (Belo Horizonte). Durante uma reunião da rede em Recife, há dois anos, as meninas de Fortaleza conheceram de perto a experiência dos mandatos coletivos. Imaginaram que, no futuro, poderiam construir algo parecido em sua cidade. Mas o crescente movimento da extrema direita na capital cearense fez com que decidissem se lançar candidatas já em 2020, firmando compromissos com práticas e pautas antirracistas, feministas e populares, como propõe a Agenda Marielle Franco.

Deu certo. Menos para uma parcela da população que se incomodou com a visibilidade das candidatas. Esses não economizaram nos insultos e ameaças. “Se os homens que estão na Câmara não fazem nada, imagina vocês, três mulheres pretas!”, ouviram de uns. Uma companheira branca que ajudava na campanha de rua escutou de outro: “Por que você está se inferiorizando trabalhando para três negras?” Nas urnas, a resposta foi arrebatadora – quase 10 mil votos, um resultado imenso, menor apenas do que o desejo de dias melhores sustentado pelas três mulheres da Mandata Nossa Cara. “Ver esses corpos negros, indígenas, trans, quilombolas ocupando espaços no Executivo e no parlamento é uma resposta a um cenário de retrocessos que implicam diretamente na nossa sobrevivência. É também uma reverência à caminhada de muitas que vieram antes de nós e a esperança de uma mudança real na política”, resume Lila, quase compondo um rap.

II. Professora Jacielma / Orocó (PE)

O grito forte dos quilombos

Umburana é uma das cinco comunidades que compõem o território quilombola Águas do Velho Chico. De lá até a cidade de Orocó são 20 quilômetros que Jacielma Silva dos Santos vai percorrer para chegar à câmara de vereadores. Com 440 votos, foi eleita a primeira parlamentar quilombola da história do município, ampliando também a representatividade negra e de mulheres na casa. “Fui pega de surpresa”, diz ela. “Mas no momento que escolheram meu nome, eu já sabia que não fugiria à luta, porque a luta, para mim, é uma forma de libertação, uma maneira de gritar por nossos direitos”. Em seu mandato que começa agora, promete fazer “um trabalho coletivo e de escuta”. “Vamos ouvir as demandas e descobrir juntos o que podemos construir e o que não podemos”.

Professora Jacielma, como é mais conhecida na região, ainda está emocionada ao falar com a Radis, um mês depois das eleições de 15 de novembro, lembrando de toda a trajetória do seu povo – que há pelo menos um século se instalou às margens do rio São Francisco, mas que teve sua história desconhecida até 2005, quando, a pedido do bispo local, os quilombolas começaram a construir um Livro de Tombo que lhes revelou as origens. “Sentamos com nossos avós e pessoas mais velhas para ouvir a nossa história”, conta. “Devido ao racismo e ao preconceito, durante muito tempo, a gente escutou que ‘negro não presta’. Mas era chegada a hora de saber tudo sobre aqueles e aquelas que lutaram e deram a vida para que a gente conseguisse dizer em voz alta, hoje, quem a gente é”.

Bandeiras

Negra, 45 anos, um filho de 10, professora da rede pública, filiada ao PT, ela esteve em muitos dos momentos recentes que culminaram com o reconhecimento oficial do território quilombola por parte da Fundação Palmares, em 2009. Além de trabalhar arduamente no levantamento histórico do quilombo Águas do Velho Chico, também ajudou a garantir e pôr em funcionamento uma escola que acabou legitimada internacionalmente como a primeira escola quilombola do Projeto da Rede de Escolas Associadas da Unesco (PEA). “Mas eu comecei na base, como animadora de comunidade e em grupos de jovens”, recorda. “Cada vez mais, queremos mostrar que temos sangue quilombola. E quilombo é lugar de organização e luta. Não somos um povo que se amordaça”.

Na campanha, professora Jacielma surpreendeu. Ela contou com o apoio do projeto A Tenda das Candidatas – que fez um trabalho de formação política para mulheres e acompanhou 10 candidatas pelo país, dando assistência jurídica e de comunicação de forma voluntária. Selecionada em uma entrevista, professora Jacielma comemora o resultado. “Nossos adversários diziam que eu não conseguiria me eleger porque não tinha dinheiro para ‘comprar votos’”, diz. “Fizemos uma campanha bonita, coletiva, de escuta. Hoje, eles reconhecem a minha justa vitória”, relata.

Em Pernambuco, foram eleitos sete quilombolas para o cargo de vereador, todos de municípios e territórios diferentes – duas mulheres. Ano passado, o estado aprovou as diretrizes curriculares para educação quilombola e essa é uma das bandeiras que professora Jacielma leva para a Câmara. Vai lutar ainda por projetos de agricultura familiar, creches, hospitais, mais escolas. Defender o SUS e a garantia do direito à saúde. “Ainda mais neste momento de pandemia”, acrescenta. Sabe que no espaço institucional encontrará barreiras, mas não se intimida. “Não quer dizer que eu vá ficar travada nessa outra realidade. Vou em busca de consenso e diálogo e de estratégias para resolver os conflitos. Foi assim que cheguei até aqui”.

III. Benny Briolly / Niterói (RJ)

“Não podemos interromper”

Preta, de favela com muita honra, Benny Briolly foi eleita a primeira vereadora transexual de Niterói, com 4.458 votos. Aos 29 anos, a estudante de jornalismo pretende ampliar os debates de raça, classe e gênero na Câmara Municipal. Já começou denunciando os ataques racistas e transfóbicos que recebeu durante a campanha e depois da eleição. Benny quer vivenciar o parlamento potencializando a luta que desde adolescente vivencia nos territórios e sem se deixar “deslumbrar com a institucionalidade”. Foi o que ela disse nesta entrevista à Radis, por telefone, no mesmo dia em que foi diplomada com nome e gênero feminino, direito conquistado na justiça. Outra vitória.

Qual o significado da sua eleição e o que Niterói pode esperar do seu mandato?

Niterói é uma cidade que tem resquícios muito fortes do processo escravocrata. Ser eleita aqui representa o quanto as pessoas estão revoltadas, indignadas e cansadas das marcas desse processo sobre suas vidas. Significa que, de alguma forma, o que a sociedade civil e os movimentos sociais vêm construindo até aqui reverbera. Acho que a minha representatividade vem casada com uma política combativa a um modelo sistêmico que pesa nitidamente sobre esses corpos. Nosso mandato vai ser um instrumento para potencializar nossas lutas, aquelas lutas que já reivindicamos e construímos nas favelas, nas periferias enquanto mulheres, população LGBTQIA+, para que nossos corpos possam andar tranquilos pela cidade.

Quais os maiores desafios do seu mandato?

A gente tem uma série de desafios. O primeiro é não se deslumbrar com a institucionalidade, porque a institucionalidade é um mecanismo do sistema capitalista e isso não é o que a gente acredita enquanto alternativa de mundo e de sociedade. Mas há também uma série de outros desafios, como por exemplo reorganizar a nossa gente, fazer com que o nosso mandato seja um mandato de cobrança contínua tanto de fiscalização do Executivo quanto de iniciativas de leis e orçamentos para potencializar nossa luta e aquilo que nós, movimentos, construímos aqui fora. Mas sempre entendendo que esse é um caminho, não é um fim. É só um dos meios para tocar um projeto de luta revolucionário, daquilo que a gente acredita, do nosso sonho por uma sociedade mais justa e igualitária

Como você tem reagido às ameaças que recebeu?

Como se sente a cada tentativa de intimidação? Pois é, na campanha, a gente recebeu muitas ameaças – ameaças de morte, inclusive – e agressões racistas e lgbtfóbicas, nas ruas e nas redes. Registramos algumas ocorrências e seguimos registrando, entendendo o quanto a sociedade ainda reproduz de forma criminosa e racista a lgbtfobia, o machismo, a misoginia. Entendemos que esse seria um dos motivos, inclusive, de quererem tirar nossas vidas [Uma das mensagens anônimas que Benny recebeu por email dizia: “Não adianta avisar a polícia ou andar com seguranças. Nada no mundo vai me impedir de te matar. Vou te matar do mesmo jeito que meu grupo matou a Marielle! Pois é. Nós matamos a Marielle”]. Me sinto vulnerável. Estou tendo que andar de carro blindado e limitar minha vida a uma série de fatores a que não estava acostumada. Isso é muito difícil, ainda mais para a gente que é do território popular, que temos nossas questões enraizadas no dia a dia, na vida concreta das pessoas. Mas a gente vai tentando dar um jeito de superar, entendendo que não podemos nos calar, que não podem nos interromper

A que você atribui a eleição dessas muitas candidaturas que reforçam a representatividade de mulheres negras, de indígenas e quilombolas, da população LGBTQIA+ no Brasil de hoje?

Acho que o Brasil é um país em que a institucionalidade tem marcos históricos de promoção de desigualdade e, consequentemente, as pessoas foram se afastando da política. Porque a política, na sua construção e no formato como ela foi consolidada no Brasil, realmente não é um espaço construído a partir do povo e das pessoas que historicamente são excluídas de seus direitos, como as mulheres, a população LGBTQIA+, as pessoas pretas, pobres e faveladas. Só que as mulheres negras que vieram antes de nós já vêm desde sempre traçando estratégias de como seria romper com essa lógica. Quando a gente olha para Lélia González [filósofa brasileira e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado], Carolina de Jesus [autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”], Dandara [guerreira que lutou no Quilombo dos Palmares], tantas outras, a gente vê o quanto esses marcos que estão acontecendo agora são traçados pela história delas. E cada vez mais essas vozes vêm se ampliando. Acho que o processo eleitoral é só uma expressão daquilo que historicamente a gente vem construindo e do quanto a gente vem lutando para mostrar que, de fato, a política da branquitude ou o modelo político construído até hoje é falho e errôneo. Estamos avançando na construção de um projeto de sociedade antirracista, que a gente acredita que é possível.

Como a luta da vereadora do Rio, Marielle Franco, assassinada em março de 2018, inspira essas candidaturas?

Marielle era uma amiga, além de ser uma companheira de partido. Ela muito nos inspirou não só na sua eleição enquanto parlamentar, mas muito antes disso, na forma como dirigia e conduzia os processos nos movimentos populares. Marielle sempre foi uma inspiração para nos organizarmos da melhor forma possível, deixando as questões de raça e de classe expressas nos marcos de luta da esquerda. Muitas sementes surgiram depois da execução da Mari, mas acho que já havia muitas sementinhas nascendo durante a sua vida. Com a sua história, acho que a gente tem uma lição muito forte do quanto o atual Estado brasileiro, junto com esse atual governo, é genocida e do quanto eles não têm medo e nem vão medir esforços para nos interromper e nos silenciar. A execução de Marielle deixa nítido que todo o projeto de sociedade que nós mulheres negras estamos construindo é um projeto que está dando certo e que ameaça concretamente todas as políticas racistas, genocidas, misóginas e lgbtfóbicas que estruturam o pilar do capitalismo brasileiro.

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