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Durante 35 anos, Fábio carregou a “vontade de morrer” como companhia. Já Selma travou uma batalha dura e colecionou vitórias: Sophia, sua filha, desde cedo foi rotulada como uma menina mal-educada, mimada e birrenta. Enã tinha problemas na fala e maneiras diversas de se expressar e de compreender outras pessoas. James sentia falta do suporte familiar e escolar. Tábata não entendia as outras pessoas. Thaís sofreu bullying e foi chamada de esquisita na escola. Como os demais, passou a aceitar seu jeito de ser e de se expressar quando recebeu o diagnóstico de que era uma pessoa autista.

O diagnóstico mudou a vida de Thaís, Fábio, Selma, Sophia, Enã, James e Tábata. Foi assim que eles conseguiram virar a chave na forma como se viam e se relacionavam com o mundo que não é plural. Por ser esta uma reportagem sobre e feita com pessoas autistas, é preciso explicar metáforas. Autistas geralmente são mais diretos e literais, podem não captar a linguagem figurada e ter dificuldades em compreender cenários, mesmo os usuais. Em comum, as pessoas autistas ouvidas nesta reportagem relatam a sensação de não pertencimento e assumem que é difícil viver em um mundo capacitista. Por trás de cada história, há enfrentamentos diários para se adequarem nesse ambiente neurotípico, que pouco abre espaço para a diversidade, e apresenta barreiras que dificultam e impedem sua interação de inúmeras maneiras [veja na Radis 232 uma matéria ampla sobre pessoas com deficiência].

Não há informações exatas sobre o total de brasileiros com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas estima-se um número próximo a 2,1 milhões de pessoas. A lacuna nos dados oficiais deve ser melhor aproximada pelo Censo 2020, que será realizado a partir de agosto de 2022. Da nova pesquisa, pode emergir um retrato de pessoas autistas que expresse a desigualdade racial e étnica no acesso aos serviços de saúde, ainda restrito para boa parte dessa população. É importante saber quantas pessoas autistas existem, como também ter o diagnóstico.

Mas autismo não é só isso, como alertou Mariana Ferreira, psicóloga da rede de saúde mental do SUS, em uma entrevista à Radis [180]. “Quando a gente pensa apenas a partir de categorias diagnósticas, deixa de enxergar muitas questões singulares”, disse. Para ela, é preciso perceber o autismo para além de uma visão biologizante. “Estamos presos à ideia da falta. Fala-se muito do que falta, mas nunca sobre tudo o que essas pessoas têm a oferecer. Fala-se que não conseguem se comunicar e não se percebe que elas se comunicam de outra forma”, disse. “Eu estou cansada de ver as pessoas colocando nós autistas para baixo, como se fôssemos sempre o problema. Acho que precisamos falar um pouco mais sobre coisas que todo mundo precisa aprender com as pessoas autistas”, escreveu Tábata Cristine Barroso em um post no Instagram.

Apesar de ter características comportamentais semelhantes, o autismo é uma condição mental multifatorial que se manifesta de forma individual com diferentes níveis de suporte, variando do 1 ao 3. A detecção e a intervenção precoces podem evitar o agravamento de sintomas e permitir uma melhoria na qualidade de vida. Para isso, o sistema de saúde deve estar preparado para acolher de forma multiprofissional pessoas autistas em qualquer condição.

Nem sempre os profissionais de saúde sabem identificar os sinais do autismo porque permanece o estigma do autista como uma pessoa não funcional e com dificuldades extremas de comunicação, linguagem e socialização, moldado por um padrão de ser que não contempla a diversidade. “O estereótipo do autista ainda é o de um homem branco, cisgênero, heterossexual ou assexual, com uma capacidade quase nula ou nula de comunicação, ou com uma inteligência privilegiada ou esquisitices e excentricidades muito evidentes”, afirma Sophia Mendonça. James Raphael Ramos foge desse padrão e peregrinou por especialistas, por Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e clínicas até chegar ao diagnóstico correto, feito em uma unidade particular. “O diagnóstico empodera e liberta de um monte de obrigações que antes você achava que era obrigada a conseguir”, salienta Thaís Cardoso.

Fábio, Selma, Sophia, Enã, James, Tábata e Thaís mostram que não há um único jeito de ser autista. Abraçando a causa, eles expõem suas vidas e seu jeito de ser nas redes sociais, quebram tabus e trazem o olhar das pessoas autistas sobre a sua própria condição. Assim, eles transformam a linguagem, derrubam preconceitos e fazem do ambiente virtual um lugar para criar uma cultura autista menos patológica e medicalizada. “O autista é um ser humano. Ele não está nem na ponta do coitadinho, nem na da genialidade”, defende Selma Sueli Silva. “O autista pode estar em qualquer lugar”, completa Fábio Sousa. O autismo, diz Enã Rezende, “não me torna melhor ou pior que ninguém”. Radis revela um pouco da trajetória dessas pessoas em diferentes fases de suas vidas que mostram que é preciso quebrar padrões limitantes baseados em um olhar patológico para definir uma única forma de ser humano.

— Foto: Acervo pessoal.

Camuflagem social

Com o diagnóstico, Selma deixou para trás um jeito de ser mãe, profissional e dona de casa. “Naquele momento, eu senti não ser quem eu era e não era quem eu sou”, resume a jornalista que descobriu ser autista aos 53 anos. Selma é mãe de Sophia, também autista, e foi a filha que, aos 18 anos, levantou a possibilidade de a mãe ser neurodivergente. Até então, Selma tinha conseguido disfarçar as características do transtorno por meio de estratégias de camuflagem social [ou masking], algo comum para autistas, especialmente mulheres, se adequarem às normas sociais. Ela conta que o diagnóstico deu a ela o “norte” para que conhecesse a regra do jogo e se posicionasse melhor no convívio social.

O foco de Selma sempre foi Sophia, diagnosticada aos 11 anos de idade. “Toda mãe ouve: ‘é melhor cuidar de você para cuidar melhor da sua filha’”. Selma é formada em Relações Públicas e Jornalismo e enfrentou dificuldades na época da faculdade. “Na primeira graduação foi complicado porque, além de eu não entender as regras, não conseguia incorporar os códigos sociais”, relembra. O diagnóstico tardio deu a ela a possibilidade de entender seu passado e seus limites no presente, tornando sua vida profissional e familiar menos conflituosa e estressante. “Melhorei a relação com a minha filha e a família. Passei a me respeitar mais porque antes eu me cobrava muito para agir como os outros. A relação com Sophia ficou mais equilibrada”, conta. Juntas, mãe e filha criaram, em 2015, o canal Mundo Autista que tem 60 mil assinantes no Youtube, e outros 15 mil seguidores no no Instagram (@mundo.autista), onde abordam diversos temas ligados à vida autística.

Selma conviveu de perto com o capacitismo [preconceito contra pessoas com deficiência] e, junto a ele, recentemente, viu emergir um outro, o etarismo [a discriminação por idade]. “Por que uma mulher de 53, casada, com filhos, com profissão consolidada precisaria de um diagnóstico? Causou estranheza. Mas eu não vejo a vida limitada a um número de quantos anos cada um viveu. Eu me sentia apta para uma série de coisas e sofria muito para realizar outras em função da falta do meu autoconhecimento e de ter introjetado algumas regras do convívio social que não eram minhas”, salienta.

A história de Selma está imbricada com a de Sophia — e a mãe reconhece que a filha deu outro valor à sua vida. Ela recorda que era muito rígida e assertiva e foi Sophia que mostrou que “as coisas nunca são como a gente vê e que a verdade não é absoluta”. “Ela é e foi uma estudante e profissional diferente de mim; é diferente na visão de mundo. Ela me fez conhecer a riqueza da diversidade de gênero, que não tem a ver com sexualidade; isso ampliou largamente os meus horizontes”, comenta. Para ela, foi preciso debruçar o olhar sobre “essa filha diferente” para tecer um novo caminho de vida, construindo dia a dia “a nossa revolução humana”. “Se não fosse Sophia na minha vida, eu não seria essa mulher que hoje tem um horizonte mais alargado e muito maior de possibilidades para viver”, reflete.

Diversidade de gênero

Jornalista, escritora, youtuber, desenvolvedora e autora de nove livros, Sophia sabe que é autista desde os 11 anos de idade. Junto com sua mãe Selma, ela cria conteúdo para o canal Mundo Autista, que traz abordagens mais amplas sobre o TEA. Jornalista e pesquisadora, Sophia é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma mulher transgênero. Sua dissertação, defendida em março de 2022, analisou a interseccionalidade entre autismo e transgeneridade no Twitter, em que busca entender como a questão do gênero atravessa a vida das pessoas autistas. “Era como se eu precisasse performar um personagem que não era eu. Era muito difícil ver negado o direito de ser eu mesma”, afirma.

Sophia revela que há estudos que indicam maior prevalência de diversidade sexual e de gênero no autismo do que nas pessoas típicas. Hoje, ela faz tratamento hormonal, fez a cirurgia de afirmação de gênero e tem acompanhamento com psicólogo especialista em autismo e psiquiatra especialista em transgeneridade. “A minha ansiedade e depressão diminuíram muito. Agora posso me expressar do jeito que eu sou”. Segundo ela, as pessoas autistas não se resumem a um diagnóstico. “Elas têm etnia, classe social, orientação sexual, identidade de gênero e tudo isso também vai afetar a maneira como elas interagem com o mundo”, aponta.

Quando criança, a hoje jornalista foi rotulada como “mal-educada”, “mimada” e “birrenta” porque tinha traços e manias consideradas “esquisitas”, “excêntricas” ou “fora do padrão”. “Eu tinha uma dificuldade de autorregulação, com mudanças na rotina e com o próprio ambiente que não era acessível, que fazia com que sensibilidades sensoriais e sociais ficassem mais aguçadas”, relembra. Juntou a isso um atendimento feito por profissionais conservadores com conduta medicalizante, o que acrescentou um “ar robótico” à sua comunicação. Seu desejo sempre foi outro. “Eu sempre quis ser aceita por ser uma vida única, singular. Não queria, como me falaram, ter trejeitos mais masculinos, ou falar de futebol para ter amigos. Eu queria compreender como as outras pessoas funcionavam e queria que elas compreendessem como eu funcionava para que a gente construísse algo legal juntos. Fui conseguindo isso aos poucos”, ressalta.

Além do encaminhamento clínico, Sophia diz que o diagnóstico dá amparo à pessoa autista, em qualquer fase da vida. “A pessoa autista é uma pessoa com deficiência e tem uma característica que esbarra na limitação do ambiente. Ter um amparo na legislação já é um começo, mesmo nos casos mais sutis”, observa. Além disso, ela entende que o diagnóstico possibilita o autoconhecimento e traz mais conforto e autocompaixão consigo e com o outro. Hoje, ela comenta que conseguiu encontrar o equilíbrio para conviver melhor em sociedade. “Eu me sinto mais feliz, segura e plena mesmo enfrentando vários desafios”. [Leia a história aqui]

— Foto: Acervo pessoal.

A liberdade é azul

Na história de vida de Fábio, designer formado pela Universidade Anhembi Morumbi, bonequeiro e criador de conteúdo infantil, existe um antes e um depois. No antes, Fábio queria morrer por não se encaixar no mundo. Tinha muitas questões e o sentimento permanente de que possuía algum “defeito” que precisava ser “consertado”. A ideação suicida que estava presente desde 2010 foi superada quando, em 2019, aos 36 anos, confirmou ser autista. Foi nesse ponto que ele conta que “a morte deixou de ser uma solução”. O diagnóstico tardio significou a “libertação e perdão por tudo que foi difícil na vida”, afirmou à Radis. “Você passa a querer entender tudo aquilo que aparentemente não tinha resposta. O diagnóstico permite finalmente nos conhecer por completo. Ele pode salvar e mudar vidas”, reforça.

Fábio conta que foi atendido em alguns Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e Unidades Básicas de Saúde até encontrar uma profissional que confirmou a suspeita do autismo. “Infelizmente a busca por diagnóstico de TEA para grau 1 no SUS é loteria, pois muitos profissionais estão desatualizados e desconsideram que exista autista que consiga casar, fazer faculdade, ter filhos etc. Em 2020, obtive o laudo médico confirmando que sou autista nível de suporte 1 [leve]”, completa. Um ano depois, Fábio confirmou ter Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e a superdotação, configurando tripla condição fora do padrão normalizado.

Ele considera que a sociedade ainda precisa aprender a conviver com a deficiência. “A inclusão que nos deveria ser ofertada é cobrada como se não tivéssemos limitações. Ninguém pede para um cadeirante levantar e andar ou um surdo passar a escutar, mas querem que nós, autistas, sejamos mais sociáveis e que funcionemos como todas as outras pessoas”, afirma, acrescentando que é preciso reconhecer que sempre vão existir limitações.

Paulista, morador de São Bernardo do Campo, ele usa as redes sociais para desmistificar o universo das pessoas autistas, condição que pode afetar 1% da população, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre elas, está Gustavo, seu filho de 4 anos. Hoje, Fábio diz que não vive mais no “piloto automático tentando lutar com algo que desconhecia”. “Tenho trabalhado ativamente para conscientizar as pessoas sobre autismo e como incluir os autistas na sociedade”, resume. Foi lavando louça no canal ter.a.pia que Fábio falou sobre o diagnóstico tardio que diz ter salvado sua vida. Segundo ele, os dois vídeos publicados geraram mais de 5,5 milhões de visualizações.

Conhecido como Tio.Faso, Fábio tem 39 anos e soma 15,2 mil seguidores no perfil @seeufalarnaosaidireito do Instagram e outros 7,1 mil no Facebook. Nas redes sociais ou em palestras, ele relata experiências com bom humor e leveza e um pé na realidade. “Não dá para romantizar”, diz. Fala também sobre a interseção de um homem autista e negro. “Os negros estruturalmente levam desvantagem em tudo, e na saúde mental não é diferente. Se um autista branco tem crise, ele é amparado; já o autista negro na mesma situação corre o risco de ser preso ou morto por ser lido como uma ameaça”, comenta. “Aqui no Brasil, e posso falar em muitos lugares do mundo, ser autista, negro, pobre e periférico é quase zerar o supertrunfo das desgraças que podem acometer uma pessoa. O meu privilégio foi poder suspeitar que sou autista e conseguir a resposta em tão pouco tempo, fazer terapias, receber suporte medicamentoso e ter uma voz ativa que é reconhecida e apoiada”.

O apoio familiar que recebeu agora é retribuído para todos por meio do ativismo. “Abracei a missão de levar informações sobre autismo ao maior número de lugares e pessoas. Acho mágico saber que muita gente se descobriu autista por minha causa”. Para divulgar a “palavra do stim” [movimentos de autorregulação e autoestimulação], Fábio e Liz, sua esposa, criaram o projeto ‘Se eu falar não sai direito’, que busca financiamento coletivo na plataforma Kickante. “Dedico os meus dias a falar de autismo para que mais pessoas possam se entender e receber o apoio que merecem, deixando de sofrer e até mesmo morrer por serem historicamente invisibilizados”, afirma. [Clique aqui para ler a entrevista completa com Fábio Sousa]

— Foto: Dani Cassar.

Família neurodivergente

Nas redes, Thaís Cardoso, de 40 anos, fisioterapeuta e escritora, desmistifica o cotidiano de pessoas autistas e mostra como é essa jornada no perfil @mamaetagarela. Thaís é casada com o psicólogo Rafael Manes, que vive com o TDAH. O casal tem dois filhos, Eric, de 8 anos, que é autista e está sendo investigado para TDAH, e Mia, de 5 anos, diagnosticada autista e com Transtorno Desafiador de Oposição (TOD), e com traços marcantes de TDAH. Thaís faz questão de dizer que é uma mãe atípica. “Mãe atípica é o nome correto, para que de uma vez por todas paremos de romantizar as nossas dificuldades. Todo mundo precisa e quer ajuda”, disse no Instagram.

Thaís soube que era autista com quase 40 anos, depois de anos sentindo que não correspondia ao padrão imposto pela sociedade. “Sou uma mulher que desenvolveu depressão e ansiedade, teve diagnósticos equivocados, mas que hoje finalmente se entendeu e se aceitou”, conta à Radis. Para ela, o diagnóstico permitiu que ela buscasse ajuda e fizesse adaptações em relação a questões trazidas pelo autismo. “Muitas vezes me peguei pensando quem sou eu? Borderline? Bipolar? Com o diagnóstico, veio o alívio. Eu senti que finalmente me encaixava em um grupo, que era livre para não me obrigar a fazer o que a sociedade me exige de fazer. Percebi que não era uma extraterrestre, nem tampouco esquisita como me achava: eu sou autista!”, ressalta.

Morando na Ilha de Malta, na Europa, Thaís entrou nas redes ao notar que tinha acesso a informações que ainda não encontrava no Brasil. “A maioria dos estudos sobre autismo no mundo saem primeiro em inglês, e sei que nem todo mundo fala essa língua. Abracei isso como um dever cívico: compartilhar tudo o que aprendíamos para o pessoal que nos segue ter acesso rápido às informações”, pontua. Assim surgiu o perfil da Família Tagarela, que tem 445 mil seguidores no Youtube e outros 169 mil no Instagram, Pinterest e Tik Tok. Nas redes sociais, Thaís, junto com Rafael e participações eventuais de Eric e Mia, procuram mostrar que o autismo não é uma sentença, ou o fim do caminho. Possuem, também, um site com informações e produtos neurodivergentes feitos, como dizem, por neurodivergentes.

Em vários posts, a Família Tagarela desmistifica padrões e procura despatologizar comportamentos e criar empatia. Atitudes que parecem rudes na verdade podem ser dificuldade ou sobrecarga emocional, exemplificam. Thaís e seus filhos são autistas nível 1 de suporte. Como ela cresceu sem terapias, revela que o caminho da independência está mais longe do que para seus filhos. “Eu sei que é possível, mas não sei se conseguirei”, observa. Ela hoje já não se força a fazer tarefas como dirigir, falar ao telefone ou preencher formulários que a deixam confusa, não se obriga ir a lugares barulhentos e usa o abafador de ruídos em todos os ambientes e está sempre com um mordedor. “Meu cérebro funciona diferente da maioria, e tudo bem. Não sou somente eu que tenho que tentar me adaptar ao mundo. O mundo precisa criar oportunidades para mim e para os outros autistas. Isso se chama inclusão!”, aponta.

— Foto: Acervo pessoal.

Vida que segue

James Rafael Ramos (@jaamesrafaelramos) tem alguns segundos para mostrar um pouco da sua vida no Tik Tok e aproveita cada um deles para falar sobre sua rotina diária e características do autismo. Fala também de convivência e mostra, por exemplo, como é seu dia de trabalho e as estratégias de adaptação ao ambiente. James descobriu o autismo aos 18 anos, quando suas crises estavam no auge e seu cérebro “desligava” por estar super estimulado ou sobrecarregado [shutdown]. Antes, conta que, além da falta de atenção no SUS, também não teve suporte familiar e escolar. Em sua formação, James não teve auxiliar ou explicadora na escola e tinha muitos medos por “não saber quem era”.

Quando criança, ele teve um prognóstico errado de esquizofrenia. Depois, peregrinou em consultórios de especialistas, como neurologista, psiquiatra, psicólogo e psicanalista, passou pelo Caps e também por clínicas e hospitais psiquiátricos. Apesar da dificuldade com sons altos, luzes fortes e de expressão no Português — ele fala também inglês em nível intermediário —, James tem características que não ajudavam a fechar o quadro do TEA. Ele falou com pouco mais de um ano, consegue se comunicar, não teme o contato do olho no olho, o que foge a um padrão de ser autista. “O diagnóstico foi importante porque aprendi a lidar melhor comigo e entender questões que antes pareciam ser impossíveis. Também pude buscar o porquê de tal coisa acontecer e conhecer meus direitos”, disse à Radis.

James tem 21 anos e, nas redes sociais, aconselha seus seguidores a procurarem mais de um especialista a fim de fechar o diagnóstico. Quando vem a confirmação, ele estimula as pessoas a seguirem em frente. “Não pare a sua vida. O diagnóstico faz parte de você, muda para o bem. Você vai saber quem é e que tudo que passou tem um motivo”, diz. “Eu comecei a me aceitar e entender melhor. Me acolheram de forma mais consciente e me ajudaram”, assume.

Carioca, ele mora com Juliana, sua noiva, concluiu o Ensino Médio e trabalha no setor público com atendimento ao cliente, emitindo carteiras de identidade. Seus vídeos nas redes sociais têm milhares de curtidas e aproximam os seguidores (45 mil no Tik Tok e 31,2 mil no Instagram). James afirma que gosta de ser uma inspiração para as pessoas e tem planos para construir uma vida no Canadá. Para ele, os profissionais de saúde deveriam se aproximar mais para entender a diversidade que existe no TEA. “É preciso profissionais competentes que tenham mais sensibilidade e empatia não só pelo autista, mas com todo ser humano”.

— Foto: Stefany Claudino.

A porta que abre

No Dia do Orgulho Autista, em 2020, a designer Tábata Cristine Barroso recebeu o laudo que confirmava o diagnóstico. Tinha 30 anos e logo depois começou a compartilhar seu dia a dia no perfil @tabata_meumundoatipico, que tem 33 mil seguidores. Em um post, a designer apontou o que aprendeu depois do diagnóstico tardio. “Não sou fresca, mimada, dramática, exagerada, chata e ranzinza. Sou diferente e muitas pessoas não sabem respeitar isso”, escreve. Em outro, ela reafirma que a detecção precoce é um presente, e não um luto. “É uma porta que se abre para uma vida muito mais leve”.

Quatro anos antes do diagnóstico, a vida de Tábata era oposta. Ela estava perdida e continuava deslocada, como escreveu no seu perfil. “Imitava tanto as pessoas, que não sabia mais quem eu de fato era, o que me levou a procurar terapia e depois um médico”. Novas descobertas vieram após a confirmação do TEA. Primeiro, foi o TDAH. Depois, veio a superdotação e altas habilidades e, no fim de 2021, foi diagnosticada com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB). “Há anos divido momentos de depressão com agitação excessiva”. Mas, quero dizer que sou muito mais do que esses diagnósticos! Sou esposa, filha, irmã, tia. Sou designer gráfico numa empresa que eu adoro e tenho minha própria agência com meu sócio”, escreveu em um post de apresentação aos novos e antigos seguidores. Cria, ainda, estampas de camisetas com dizeres anticapacitistas que reforçam o valor da diversidade.

Tábata é paulista e há três anos mora em Joinville com a esposa Suelen Cristina. Foi Suelen quem a estimulou a buscar um diagnóstico, feito na rede particular. Na região, não há médico no SUS para atender autista adulto, diz Tábata. O diagnóstico foi considerado como “um marco libertador”. “É o momento em que as perguntas começam a ser respondidas e a vida passa a fazer mais sentido”, afirma. “Ele mudou tudo. Todos os relacionamentos melhoraram depois que descobri ser autista. Pude me conhecer melhor e ajudar as outras pessoas a me entenderem e respeitarem mais as minhas individualidades”. No seu perfil, Tábata tem questionado a forma como os autistas são vistos pelas pessoas neurotípicas. “Você não pede para uma criança cega para que ela enxergue para poder ensiná-la. Se uma das características do autismo é não curtir olhar nos olhos, por que cobrar isso do autista?”, compara.

Tábata sofre duplo preconceito por ser autista e lésbica e confessou à Radis que é uma “luta constante para existir e ser respeitada”. Diariamente ela perde seguidores e assegura que não é pela qualidade do conteúdo que produz. “É porque não sou triste como muita gente gostaria e assim não sou ‘autista o suficiente’ para ter minha fala valorizada”, escreveu em um post. “Além disso, sou lésbica, o que também muita gente já deixou claro que não respeita”. Ela garante que vai continuar pedindo respeito e mostrando que o mundo típico precisa mudar para incluir os atípicos.

“Autistas são capazes! Já passou da hora de desconstruir a ideia de que somos menos do que as outras pessoas. Precisamos de uma verdadeira inclusão que abranja as mais diversas áreas da sociedade, começando pela escola, passando pela universidade e pelo mercado de trabalho”, defende. E ela deixa um recado para os profissionais de saúde: “Eles precisam entender que autistas crescem e não apresentam mais os comportamentos esperados do diagnóstico infantil, mas isso não significa que não precisamos de atendimento e suporte também”.

— Foto: Acervo pessoal.

Leveza de ser assim

O autismo severo de Isabelle, irmã mais nova de Enã Rezende Bispo do Nascimento, foi o ponto de partida para que Érika, sua mãe, começasse a estudar sobre o transtorno. E foi ela quem primeiro desconfiou que Enã também estaria enquadrado no espectro. “Aos dois anos, tive um diagnóstico errôneo de psicose infantil. Sempre soube ser diferente, porém não conhecia ainda o autismo”, relembra. Ele recorda que, na escola, essa diferença era marcada, por exemplo, pelo desvio do olhar dos professores. “Olhava para o teto e os professores achavam que era desinteresse. Mas não era”, disse Enã em um live no Instagram, em dezembro de 2020 — rede em que é seguido por cerca de 22 mil seguidores no perfil @ena.nascimento.

Até chegar ao seu diagnóstico, aos 19 anos, ele conta que enfrentou uma série de dificuldades. “Minhas barreiras foram impostas pelo preconceito. Eu tinha problemas na fala e maneiras pouco usuais de me expressar e de compreender”, comentou. Passou por cima de tudo, desfez previsões como a da professora que disse que não seria alfabetizado, cursou a educação formal e, em 2018, se formou em Medicina na Universidade de Cuiabá (Unic). Seu maior entrave na faculdade ocorreu no aprendizado do relacionamento médico-paciente, que pedia contato visual, algo que sempre evitou. “Na época, eu não tinha contado que era autista. Com o tempo acabei me aperfeiçoando”, lembra. Hoje, ele é médico generalista e divide o seu tempo entre o trabalho em uma Unidade de Terapia Intensiva Covid, o estudo para as provas de residência e as letras — pois é também poeta e escritor.

Depois de formado, Enã trabalhou por dois anos na Atenção Básica como médico de Saúde da Família. Sobre a proteção legal e o atendimento do SUS para pessoas com autismo, ele lembra que a Lei Berenice Piana, como é chamada a Lei Nº 12.764, de 2012, oferece amplo atendimento especializado à pessoa autista no sistema público. Em tese, o diagnóstico não deveria ser necessário para que a pessoa autista, e não só ela, seja tratada com dignidade e respeito. Segundo Enã, na prática não é o que acontece. “Infelizmente, essa lei e outras leis de inclusão não são cumpridas, o que deixa grande parte da população sem assistência. O diagnóstico demorado ou que não é feito acaba diminuindo as possibilidades do pleno desenvolvimento de um autista”, ressalta.

Para o médico, os trabalhadores de saúde devem conhecer o TEA e suas particularidades, principalmente no que diz respeito às condições de processamento sensorial e a linguagem literal. “É importante que todos recebam treinamentos para um melhor acolhimento nas redes de saúde. Os autistas não são todos iguais, têm as suas diferenças e devem ter um tratamento individualizado”, observa.

Enã comemora os ganhos de sua caminhada. No último Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado em 2/4, o projeto Autismo nas Escolas, criado por ele e sua mãe, a neuropsicóloga Érica Rezende, começou a ser levado para as escolas da rede pública estadual de Mato Grosso para que os alunos entendam e respeitem o comportamento de um autista. O projeto surgiu em 2017, em Rondonópolis, município que fica a 200 quilômetros de Cuiabá, e foi baseado na experiência familiar de Enã e sua irmã. Por meio de um vídeo e de uma cartilha, o projeto pretende sensibilizar e mudar comportamentos, diminuindo distâncias e preconceitos. Enã também dá palestras e entrevistas. Em 2020, em um programa de TV, ele disse encarar o autismo com leveza. “O fato de eu ter autismo não me torna melhor ou pior que ninguém”, assumiu.


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