Na última década, o apelo por uma mudança radical na psiquiatria tornou-se mais forte e mais organizado e, na América Latina, não havia vozes mais altas — ou mais eficazes — do que a de Fernando de Freitas e seu colega Paulo Amarante. Juntos, eles lideraram um esforço psiquiátrico crítico de grande alcance; lançaram o Mad in Brasil em 2016; e eles se tornaram associados ao Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (IIPDW) quando foi fundado, com Fernando viajando para Gotemburgo, Suécia, para sua reunião inaugural.
Fernando, aos 68 anos, faleceu na última segunda-feira, 30 de janeiro, após cinco meses lutando contra um câncer no pâncreas.
À medida que a notícia da morte de Fernando se espalhava — para seus colegas no Brasil, para a comunidade internacional Mad in America, para os membros do IIIPDW e outros — havia um sentimento comum em suas expressões de pesar: Fernando de Freitas era um “querido amigo”, que deixou sua marca em todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo, e ele foi um guerreiro por mudanças radicais.
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Fernando Ferreira Pinto de Freitas doutorou-se em psicologia, com ênfase em psicologia social, pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Ele e Paulo Amarante se conheceram em 1982, no curso de saúde mental; Fernando era aluno e Paulo Amarante, professor. Para Amarante foi um “curso pioneiro, que iniciou o processo de crítica em psiquiatria — crítica ao modelo de psiquiatria manicomial e da medicalização no Brasil.”
Juntamente com outros ativistas, e inspirados pelo trabalho de Franco Basaglia na Itália — que ganhou fama por abolir os hospitais psiquiátricos naquele país —, eles ajudaram a fomentar um esforço de desinstitucionalização no Brasil. No final da década de 1980, Amarante foi um dos principais autores da legislação nacional que previa o tratamento comunitário de pacientes psiquiátricos e procurava proteger seus direitos humanos.
Em 2007, Freitas e Amarante uniram forças para criar um fórum de saúde mental e direitos humanos em cooperação com a Universidad das Madres de Plaza de Mayo na Argentina. Este foi um primeiro passo para iniciar a reforma psiquiátrica na década de 1980, quando os manicômios foram, em sua maioria, suplantados por uma rede nacional de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e outros dispositivos de cuidado. Em seguida, Freitas e Amarante participaram da criação da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Por um tempo, Freitas foi um dos diretores da Abrasme, que é a maior entidade “crítica” de saúde mental da América Latina. Sob sua liderança conjunta, a Abrasme realizou conferências anuais, que foram projetadas em parte para ajudar a promover um movimento liderado por usuários no Brasil. (…)
Ao perseguirem essas iniciativas, Freitas e Amarante o faziam dentro da mais destacada instituição de ciência e tecnologia: a Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Ambos eram professores da escola, e Amarante também dirigia o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fiocruz. Freitas era um dos pesquisadores do laboratório.
Através de seus esforços, a Editora Fiocruz publicou uma tradução para o português de Anatomy of an Epidemic, com Freitas e Amarante co-escrevendo o prefácio. Em 2016, eles lançaram conjuntamente o Mad in Brasil, com Freitas e Amarante atuando como co-editores.
Em entrevista ao Mad in America no ano passado, Freitas contou como eles queriam que o Mad in Brasil promovesse uma transformação nos cuidados de saúde mental. “[Queremos] promover, criar, uma ruptura radical em nossa relação com o modelo psiquiátrico”, disse ele. Mesmo em uma abordagem centrada na comunidade, os elementos medicalizados — a confiança no diagnóstico, a ênfase nas drogas — precisam ser questionados”.
“Refletir, repensar, questionar. Queremos mudar a conversa”, disse. (…)
Depois de lançar Mad in Brasil, o próximo projeto de Freitas e Amarante era criar um “Seminário Internacional sobre a Epidemia de Drogas Psiquiátricas” anual. Eles organizaram seis dessas conferências, que normalmente envolviam convidar um grupo internacional de pesquisadores, pessoas com experiência e profissionais para dar palestras (primeiro por meio de apresentações presenciais no Brasil e depois online durante a pandemia). A lista de palestrantes internacionais inclui muitos nomes familiares ao Mad in America: Irving Kirsch, Laura Delano, Will Hall, Joanna Moncrieff, John Read, Lucy Johnstone e Jaakko Seikkula, para citar apenas alguns. Em novembro passado, para o sexto seminário internacional, eles convidaram Allen Frances e Andrew Scull para um debate sobre os méritos da psiquiatria e seus tratamentos.
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Fernando deixa uma filha, Natália, e uma enteada, Lara. Como revelam as expressões de pesar, sua morte é uma perda para todos que desejam ver a psiquiatria “radicalmente transformada”.
* Robert Whitaker é um jornalista e autor de dois livros sobre a história da psiquiatria, Mad in America e Anatomia de uma Epidemia (Editora Fiocruz). Texto originalmente publicado no portal Mad in Brasil (3/2). Leia na íntegra: https://bit.ly/3IhOZqp.
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