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Quando as vozes de mulheres pretas, de pessoas trans, de indígenas ou de pessoas com deficiência serão ouvidas? Com a proposta instigante de refletir sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos, o primeiro grande debate da 17ª Conferência Nacional de Saúde, em 2 de julho, demonstrou que o país do amanhã precisa ser construído hoje com a inclusão da diversidade.

“Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”, diz um provérbio do povo acã, na atual Costa do Marfim, representado por um ideograma conhecido como Sankofa. A imagem de um pássaro com a cabeça voltada para trás — o mais conhecido símbolo da escrita adinkra — adverte que aprender com o passado é a chave para entender o presente e construir o futuro, como também ressaltou Michely Ribeiro, uma das participantes do debate.

O que ficou para trás, ao longo da história brasileira, foram as vozes excluídas do poder e do exercício da comunicação, mas que representam a diversidade do país — e sem as quais não há resposta para a pergunta: “Que Brasil queremos?”. De forma inédita, o primeiro grande debate da 17ª encarou o desafio de trazer esse olhar sobre os “diversos” que não podem ser esquecidos, ao reunir as falas de uma mulher trans, uma mulher negra e um jornalista ligado a outro tema negligenciado: a garantia do direito à comunicação.

Pessoas trans existem e precisam receber atenção nas políticas públicas, destacou Alícia Krüger. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Pessoas trans existem e precisam receber atenção nas políticas públicas, destacou Alícia Krüger. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Nós existimos

“Mulheres trans e travestis são mulheres”. A afirmação, por mais óbvia que pareça, é um grito pelo direito de existir e contra a transfobia, e quem declara é Alícia Krüger, travesti, farmacêutica, sanitarista e assessora de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade em Saúde, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS). Ela chamou atenção para contextos em que pessoas trans são silenciadas e veem seus anseios e necessidades negligenciadas, tanto no cotidiano quanto nas políticas públicas.

Alícia apontou para vazios e incompletudes que existem nos dados estatísticos, que desconsideram informações sobre sexualidade, raça e identidade de gênero — com isso, algumas populações se tornam invisíveis para a promoção de direitos. “A gente precisa fazer uma revolução no olhar da epidemiologia desse país. Os epidemiologistas não podem mais ser transfóbicos e racistas e têm que realmente completar os campos [das estatísticas], para gerar informação e saúde pública como a gente precisa”, pontuou.

A farmacêutica questiona o conceito de igualdade, ao afirmar que ele é insuficiente para promover os direitos dos “diferentes”. Em seu lugar, ela defende a noção de equidade, presente desde a criação do SUS, com a Lei 8.080, de 1990. “A gente precisa falar de justiça social. Precisamos financiar corretamente o Sistema Único de Saúde e garantir as condições para que trabalhadoras e trabalhadores trabalhem da melhor maneira possível”, ressaltou.

Os determinantes sociais, acrescentou Alícia, revelam as vulnerabilidades existentes na sociedade e que afetam as condições de saúde. “O que explica que mulheres trans e travestis como eu sejam as que mais agregam prevalência do HIV?”, questionou. “Se pessoas trans são jogadas para fora da escola, se são tolhidas do direito básico e constitucional de acesso à educação, elas vão saber o que é síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) e quais são os mecanismos de prevenção?”.

O SUS precisa dar atenção a esses diferentes contextos de existência, considerou Alícia. “SUS é sobre olhar a territorialidade. É sobre olhar a vida real”, afirmou. “O nosso SUS é pago todos os dias em impostos e é esse SUS que nos garante atendimento integral, universal e equânime. Mas, infelizmente, esse mesmo SUS ainda não consegue atender principalmente a essas travestis que são as mais vulneráveis”. 

Alícia ressaltou que a noção sobre o que é ser homem ou mulher não se reduz à biologia, mas também decorre do tempo e da sociedade. A pesquisadora pontuou que, no contexto da escravidão, mulheres pretas não eram consideradas mulheres. “Hoje mulheres trans não são consideradas mulheres. Cabe a nós fazermos a revolução de pensamento”. E, em um convite para convergir todas as bandeiras de luta, ela propôs outro olhar sobre a história e a formação do Brasil: “A cara do Brasil é a cara de uma mulher preta”, sintetizou.

Mulheres negras são protagonistas do processo de mudança, afirmou Michely Ribeiro. — Foto: Eduardo de Oliveira.
Mulheres negras são protagonistas do processo de mudança, afirmou Michely Ribeiro. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Nós lutamos

“A história de nosso país foi construída com violência”, enunciou Michely Ribeiro, ativista da Rede Mulheres Negras do Paraná (RMN/PR) e das Organizações de Mulheres Negras do Brasil (AMNB) e ex-conselheira nacional de saúde. Com esse ponto de partida, ela percorreu o caminho proposto pelo ideograma Sankofa de revisitar o passado para transformar o presente e construir o futuro. E não há amanhã, segundo ela, sobretudo para as pessoas negras e indígenas do Brasil, sem reconhecer que as marcas da escravidão são sentidas ainda hoje — “O racismo segue presente”, afirmou Michely.

Identificar o racismo estrutural e seus impactos na sociedade não é ficar de mãos atadas. Ao contrário, “é importante pensar que esse Brasil que nós queremos envolve compreender primeiramente que nós, populações negras, somos maioria”, destacou a ativista, que é também mestranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). 

Se são maioria, nada mais justo que mulheres negras sejam também protagonistas da história. “A democracia que queremos é aquela em que a mulher esteja no primeiro plano, em que a mulher negra seja protagonista do processo de mudança, onde o legado, o conhecimento e a experiência nas práticas coletivas sejam levados em consideração”, ressaltou Michely. 

Para que este sonho seja realidade, é preciso que haja mecanismos e políticas públicas de enfrentamento ao racismo, de forma consistente, bem como das iniquidades que ele gera, pontuou. Ela também defendeu a implementação efetiva da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. E chamou atenção para pautas que afetam a vida das mulheres: “É preciso garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas que podem gestar, tendo por base a justiça reprodutiva com atenção aos princípios do SUS”.

Contudo, todas essas pautas de enfrentamento ao racismo e às iniquidades exigem que os movimentos sociais despertem para o que Michely chama de “batalha assimétrica na comunicação”. “O Brasil que queremos precisa estruturar e implementar uma política nacional de comunicação pública do SUS, abarcando a universalidade e a equidade, a fim de tornar todas as pessoas protagonistas da comunicação”, apontou. “Precisamos de mais ferramentas para efetivar essa comunicação e conseguir fazer um enfrentamento significativo daquilo que nós queremos pautar para a sociedade”.

“Uma comunicação que trate a todos como interlocutores” é a defesa de Rogério Lannes para a comunicação pública no SUS. — Foto: Eduardo de Oliveira.
“Uma comunicação que trate a todos como interlocutores” é a defesa de Rogério Lannes para a comunicação pública no SUS. — Foto: Eduardo de Oliveira.

Nós comunicamos

“Comunicar não é apenas um instrumento. É uma estrutura. É algo que está presente o tempo todo”. Inspirado por essa ideia, Rogério Lannes, editor-chefe e coordenador do Programa Radis, trouxe à cena a reflexão de que a comunicação deve ser encarada como direito de todas as pessoas e dever do Estado, sem a qual não há saúde garantida. E comunicação está ligada, umbilicalmente, ao princípio da participação social, constitutivo do SUS. “Somente com democracia participativa faremos as mudanças necessárias”. 

Pelos registros das capas da revista Radis, Rogério recontou a história do SUS e dos avanços e retrocessos na participação social ao longo dos últimos 40 anos. “O movimento sanitário colocou na Constituição a garantia da seguridade social e a saúde como direito”, afirmou. 

Na história das Conferências Nacionais de Saúde, a representação de mulheres e pessoas pretas e indígenas era bem menor no passado — na 12ª, há exatos 20 anos, em 2003, a mesa de abertura era composta apenas por homens e a presença de uma mulher foi aclamada pela plenária, relembrou o jornalista. Por isso, é simbólica a participação majoritária de mulheres nos debates da 17ª, ressaltou ainda Rogério.

Sobre o tema da comunicação, ele relembrou que a 15ª, em 2015, aprovou uma moção importante que define o direito à comunicação como essencial e estruturante para o direito à saúde. “Não se exerce, não se conquista, não se amplia o direito à saúde se não tem direito a comunicação, no sentido de falar e ser ouvido, tanto os indivíduos quanto as coletividades”, resumiu.

Rogério defendeu ainda a construção de uma política de comunicação pública no SUS, a partir dos debates promovidos pela 2ª Conferência Livre de Comunicação e Saúde, em maio de 2023. Porém, de acordo com o entendimento proposto, a finalidade não seria a de comunicar para divulgar ou transmitir informação — ou seja, para dizer “como as coisas devem ser”. “É uma comunicação que trata todos como interlocutores e na qual quem tem poder ouça mais do que fale”, definiu. 

Para reconstruir as políticas públicas, o jornalista propôs que a experiência da participação social deve ser ampliada: “Não é com a democracia representativa que nós conquistamos as mudanças. Essa democracia burguesa, representativa, deve ser ocupada, mas ela é feita para manter essa estrutura”. Segundo Rogério, o caminho é o da democracia participativa, pelo qual será possível construir um país diferente do passado. “Tem que haver pressão e ocupação das esferas simbólicas em que a disputa é travada. A gente quer um SUS 100% público e temos que disputar com quem quer privatizá-lo. Democracia participativa sempre!”.

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