Primeiro momento
O guerreiro do tempo comum
Dia quente de primavera, aproveito o sinal de trânsito vermelho e atravesso a rua Taquari em direção ao boteco que fica na esquina com a Sapucaia. São 8 e meia da manhã da última quinta-feira de setembro no bairro da Mooca, Zona Leste de São Paulo. Cheguei cedo para a entrevista marcada com o padre Julio Lancellotti, talvez reflexo da ansiedade que antecede o encontro, há muito planejado.
Aproveito o tempo de espera para tomar um café. Enquanto aguardo esfriar o copo que me é servido no balcão, observo a fachada simples da Igreja de São Miguel Arcanjo, onde vou encontrá-lo, daqui a pouco. Nas poucas mesas ocupadas, dois rapazes assistem desinteressados à televisão, enquanto três senhores conversam, entre uma mordida e outra no salgado, sobre o resultado de algum jogo de futebol.
Raios de sol incidem sobre o vitral redondo da igreja, pintada de amarelo. No dia anterior estava cheia, ouço os três comentarem, referindo-se à comemoração em homenagem ao padroeiro da paróquia. Segundo a tradição católica, anglicana e luterana, dia 29 de setembro é dia do Arcanjo Miguel, padroeiro da paróquia onde o padre recebe parte dos fiéis que o acompanham. Durante a pandemia, ele não parou de celebrar missas, algumas transmitidas no site oficial da paróquia (https://bit.ly/305V6dw).
O tradicional café da manhã que lá era oferecido teve que ser transferido para um lugar maior, dado o aumento do número de pessoas que procuravam a garantia de pelo menos uma refeição no seu dia. A atuação do padre no período de distanciamento social o fez ficar mais conhecido para além das fronteiras da cidade e ganhar seguidores nas redes sociais. Somente no Instagram sua conta já é seguida por quase 900 mil pessoas.
Naquele dia, a calma que cercava a igreja e o entorno, no entanto, não deixava entrever que ali atuava um dos religiosos que mobiliza milhares de pessoas a partir do discurso da solidariedade. Penso na conexão entre o sacerdote e o santo Miguel, considerado um guerreiro espiritual e protetor dos doentes e dos aflitos em meio ao silêncio respeitoso, apenas entrecortado pelo som das folhas movimentadas pelo vento — ou pela campainha de metal que anunciava mais um pedido a caminho do cliente, naquele pouco movimentado bar.
Do outro lado da rua, descansavam sob o sol, nas paredes externas da igreja, grafites que retratam padre Julio em ação. Ao seu lado, o coração rodeado de espinhos — que representa Jesus Cristo, na imagética católica — lembra as dificuldades enfrentadas por quem faz a opção pelos pobres. Retorno à igreja e encontro apenas uma moça rezando, que delicadamente me pede indicações de como chegar ao metrô. Bancos ainda interditados e dispensadores de álcool em gel lembram que ainda estamos numa pandemia.
No altar, chamam a atenção duas placas: “Aqui se entra para amar a Deus; daqui se sai para amar o próximo”. Penso na homilia transmitida pelo padre no domingo anterior, e vejo a coerência dos dizeres com aquilo que dizia: Devemos cuidar dos “microscópicos” e dos “descartáveis”. As flores frescas em homenagem ao santo perfumam o ambiente enquanto dona Roseli organiza a sacristia. “Ele já deve estar chegando, meu filho”, me diz. No portão, duas outras pessoas também aguardam o sacerdote: uma delas acaricia a cabeça de um cachorro.
São nove horas da manhã, horário combinado para a entrevista, quando o padre dobra a esquina e entra no pequeno pátio que une a sacristia à entrada lateral da igreja. A imagem é a mesma compartilhada nas redes sociais. Ele empurra um carrinho de compras vazio, usa calça jeans, sandálias de couro, avental amarelo sobreposto por um jaleco branco, máscara rosa com filtros de respiração.
Ele chega seguido de mais de uma dezena de pessoas, gente de todo o tipo. Uma mulher jovem, com criança no colo, pede a bênção; um rapaz insiste que precisa de uma camisa; um grupo maior oferece ao padre um livro recém-escrito; o rapaz com cachorro pergunta sobre doações; um outro grupo onde estão frades pede para fazer uma foto, enquanto uma senhora indaga onde pode descarregar as cestas básicas que trouxe em seu carro.
Padre Julio atende a cada um com cuidado, mas é enérgico nas respostas aos apelos. Explica que não tem mais a tal camisa — na verdade um moletom que havia sido distribuído nos dias frios do fim de inverno —, que ali ele não tem alimentos para doar ou ainda que não sabe quando vai ter novamente sacolas. “Para te dar o que você me pede, eu preciso ter o que você me pede. E eu não sei quando eu vou ter”, repete, com altivez e carinho.
Seu dia não havia começado ali. Como em todos os outros, ele já vinha do Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, conveniado com a prefeitura, onde funciona a ONG Bompar, lugar onde o padre distribui diariamente alimentos, kits de higiene e roupas, no café da manhã. Por isso o carrinho de compras que trazia vinha vazio. São muitas demandas e ele tenta administrar todas. Ao seu lado, um grupo pequeno se desdobra para ajudá-lo. Naquele dia, estavam ali, além de Roseli, da sacristia, Paulo, Daniel, André e Gabriel.
O chileno Paulo Escobar é sociólogo e acompanha o padre Julio há mais de 20 anos. Eles se conheceram quando atuavam na assistência às pessoas usuárias de drogas que viviam no Centro de São Paulo, na região que ficou conhecida como Cracolândia (Radis 178); o fotógrafo Daniel Kfouri registra a rotina do padre — boa parte das imagens postadas nas redes sociais de padre Julio são dele, e parte das fotografias que ilustram esse relato, também — e é ativista em diferentes projetos sociais. Os rapazes André Alexandre e Gabriel Bruno são seus escudeiros. Recebem doações, carregam caixas, atendem pedidos. Sempre com sorriso no rosto.
Gabriel me conta que havia saído da casa dos pais pouco antes de a pandemia começar. Havia trabalhado como lavador de ônibus e funileiro, mas estava desempregado. Naquele momento, sem alternativas, foi viver nas ruas, onde conheceu André; ao se encontrarem com padre Julio, ambos decidiram se voluntariar para ajudá-lo, mesmo sem remuneração. Tempo depois, conseguiram, graças ao padre, um teto para morar. Sobrevivem de doações e “bicos”, quando aparecem, distribuindo panfletos, recolhendo materiais recicláveis. Agora, planejam juntar dinheiro “para comprar uns panos e vender no farol”. “Graças ao padre conseguimos um teto, e isso já é muita coisa”, me diz.
André lembra que viu o padre pela primeira vez quando ele distribuía café às pessoas em situação de rua. Ele era uma delas. Foi parar nas ruas para fugir da perseguição do namorado policial de sua antiga esposa, no litoral paulista. Chegou a São Paulo “com a cara e a coragem”. Hoje, além de teto para morar, ele se orgulha em poder ajudar a oferecer o café que um dia confortou seu estômago. Voluntário, se vira como dá, como o amigo Gabriel. “Eu não chamo nem ele de padre, chamo de pai”, revela, sem disfarçar a importância da convivência com padre Julio.
Apresento-me como repórter da Radis e padre Julio me pede para esperar. São muitas as prioridades, explica, e logo terá outro compromisso a cumprir. Sento-me em um dos bancos e aguardo, observando o grupo que acompanha o autor do livro a fazer fotos. O sacerdote logo está ao meu lado e convida um rapaz para acompanhar a conversa. José Vitor Costa Macedo, 26 anos, é estudante de Neurociências na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e saiu de Natal em uma viagem que atende a uma busca existencial e espiritual. Ele explica que veio ao encontro do padre por ele ser um líder que está em sintonia com o que acredita. “Ele dá voz às pessoas invisíveis na sociedade”.
A entrevista começa (leia clicando aqui) e é muitas vezes interrompida; cada resposta dada, direta, curta e objetiva, é pronunciada em voz alta, de modo que chegue aos ouvidos de quem está ao redor; ele tem um olho no relógio, outro nas pessoas que não param de chegar e sair. A conversa vai findando, momento em que ele troca de máscara e sobe ao altar para que eu faça fotos. Comenta que acompanha com interesse o trabalho realizado pela Fiocruz, durante a pandemia, e registra sua admiração pela pesquisadora Margareth Dalcolmo (Radis 221): “Ela é uma heroína, né?”
O silêncio vai voltando a ocupar seu espaço à medida que as pessoas vão saindo, os portões vão sendo fechados e padre Julio vai se preparando para o compromisso seguinte, que me parece inusitado: a inauguração de um grande supermercado, na mesma quadra da igreja. Antes da saída, uma paroquiana chega com mais doações, prontamente guardadas na sacristia por André e Gabriel. Sem desanimar, ele convida a todos que ainda estão ali para que o acompanhem.
Logo está de novo nas ruas, lugar onde consolidou o perfil que atrai tantos seguidores no mundo laico, sem perder a conexão com o mundo espiritual. De novo me vêm à cabeça palavras suas, quando explicou que, diferente do tempo da Páscoa ou do Advento, o “tempo comum” inspira os fiéis a ter coragem para dar seguimento aos ensinamentos de Cristo — o mesmo “Jesus das ruas” que está grafado no título do livro em que estão registradas conversas entre ele e Paulo, seu companheiro de jornada.
Segundo momento
O arcanjo das conexões improváveis
Converso com o sociólogo, ativista e escritor Paulo Escobar, autor de O Jesus das ruas na trajetória do padre Julio Lancellotti (Córrego Editora), sobre sua relação com a personagem de seu livro e a razão de estar ali. Estamos em frente a um grande supermercado, que está sendo inaugurado na rua Taquari, a poucos metros da igreja onde atua seu interlocutor. Ao nosso redor, uma pequena multidão de moradores aguarda o corte da fita inaugural e a fala de padre Julio, enquanto provam guloseimas e aguardam brindes. Crianças se divertem com coloridos chumaços de algodão doce e artistas fantasiados de heróis de filmes de ação.
No estacionamento, um pouco afastados da temerosa possibilidade de aglomeração, Paulo me conta que nasceu no Chile e chegou ao Brasil ainda criança acompanhando o pai, ativista que fugia da ditadura de Augusto Pinochet. As dificuldades do exílio o tornaram sensível para as questões sociais e, desde cedo, ele passou a dar assistência ao “povo da rua”, como prefere dizer. Foi em um destes “corres” que ele conheceu padre Julio, quando juntos distribuíam alimentos e roupas, orientavam sobre a saúde e acompanhavam operações policiais na região da Cracolândia.
Uma parceria que não rendeu somente um livro, mas se transformou em uma missão. Juntos, hoje eles também trabalham em outros pontos da cidade, como na ocupação no viaduto Alcântara Machado, também no bairro da Mooca. Autor de outros cinco livros, incluindo Os mais pobres e a pandemia – contos e crônicas da rua durante o vírus (Editora Córrego, disponível gratuitamente em https://bit.ly/3q78s48), ele salienta que o trabalho do padre nem sempre foi visível ou recebeu apoio.
“A pandemia gerou uma maior visibilidade para o corre do dia a dia, potencializou a solidariedade, que já começou inclusive a diminuir”, afirma. Ele lamenta que nas redes sociais as pessoas só vejam e se interessem pela “parte linda do rolê”, mas fala comigo sem perder de vista padre Julio, que acaba de fazer um pequeno discurso pós-corte da fita inaugural. Ele comenta: “Acho louco as pessoas te elogiarem e te seguirem no Instagram simplesmente por você ser humano”.
Neste momento, padre Julio está abraçado com o artista que interpreta um “transformer” — personagem de uma série de filmes inspirado em um brinquedo que mistura carro e robô — já saindo do estacionamento. Paulo me chama para acompanhá-lo. “Precisamos ficar de olho, esta semana a gente achou que ele ia desmaiar”, me diz, já a caminho do bar — onde o padre havia marcado encontro com um grupo de advogados, o pessoal que mais cedo ofereceu a ele um livro. O autor estava ansioso para conversar sobre sua obra. Padre Julio entra no bar e logo o autor pede uma salva de palmas. Todos levantam e o cumprimentam, ele aceita tomar um chá. Faz questão que todos nós sejamos incluídos à mesa e recomenda que todos aproveitem para lanchar.
São 10 e meia da manhã e o boteco em frente à igreja de São Miguel Arcanjo está movimentado. Padre Julio se acomoda à grande mesa, onde o grupo o espera, animado. “Padre, o senhor está muito bem, eu imaginava o senhor uma pessoa bem mais velha! Mas o senhor está aí, magrinho, elegante”, diz um deles. Bem-humorado, o sacerdote responde: “Mas eu sou velho mesmo! Vou fazer 73 anos daqui a dois meses!”
A conversa segue nas próximas horas, com pausas para fotos e goles de café. No tempo em que ficou com o grupo, padre Julio falou um pouco da sua relação com a política e os políticos e descartou a sugestão de pleitear uma posição no Legislativo: “Não quero! Quem entra lá, entra na máquina. Além disso, se tem alguma coisa que eu não aspiro é o poder. Nenhum tipo de poder, nem o eclesiástico”, refuta, convicto. Ele critica o modelo econômico liberal e cita o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), quando ele criticou a política argentina: “O poder é como o violino. Você pega com a esquerda, mas toca com a direita”. “No fundo eu acho que a nossa estrutura política é viciada”, comentou.
“Padre Julio é o único no Brasil que dá a cara a tapa em prol das vidas LGBTI”, diz um dos rapazes à mesa. O sacerdote observa que há outros, e salienta que é preciso cuidado ao tratar desta questão, ainda tabu no âmbito da Igreja Católica. Ele citou dois episódios em que foi bastante criticado por posturas públicas que assumiu. A primeira delas foi defender a ativista transexual Viviany Beleboni, quando fez uma performance em que simulava estar crucificada, durante a 19ª Parada LGBTQIA+ de São Paulo, em 2015. “Eu fui o primeiro a defendê-la”, lembrou.
Anos depois, ele e o pastor evangélico José Barbosa Júnior também foram duramente criticados por terem convidado a mesma artista a participar da cerimônia do lava-pés, na Páscoa de 2018, como forma de manifestar humildade e pedir a ela desculpas pelas ameaças e ofensas que sofreu. “Ainda há muita resistência dentro da Igreja”, observou, mesmo reconhecendo os avanços recentes sinalizados pelo papa Francisco. De todo modo, ressaltou a importância em discutir o assunto, já que hoje já começam a aparecer crianças, filhas de casais homoafetivos, para serem batizadas ou preparadas para a primeira eucaristia. “Hoje o direito civil está mais avançado que o direito canônico”, assinalou.
O grupo requer mais uma foto, padre Julio se certifica que todos comeram e se prepara para deixar o bar, não sem antes defender uma solução prática para as pessoas que vivem em situação de rua: a locação social. “É a experiência que o André está vivendo. Uma pessoa que veio nos visitar se comprometeu em pagar, durante um ano, o aluguel de um grupo: André, Gabriel e Denis”, conta. Pergunto como funciona a locação social. Ele me explica que o sistema consiste em ceder imóveis vazios em troca de um aluguel que corresponda a 10% da renda que o locador pode gerar. “Não dá o direito de propriedade, mas dá o direito de morar. Isso já existe em São Paulo e funciona muito bem”, assegura, não sem antes advertir os dois rapazes. Lembra que a cada dia está mais perto do momento em que não terão mais ajuda nas despesas com moradia. “Precisam estar preparados”.
O padre se despede das pessoas, atravessa a rua e volta à igreja, onde mais uma vez um pequeno grupo o espera. Recebe mais uma doação, despede-se de André e Gabriel e me pergunta para onde irei, naquele momento. “Vou conhecer a ocupação Alcântara com o Paulo”, respondo, recebendo de volta o sorriso que me certifica que terei em breve muitas histórias para contar.
Pede para que eu o espere porque iremos juntos até a estação de metrô. Revejo as minhas anotações e percebo quantas pessoas e quantos mundos ele é capaz de conectar, sempre a partir da solidariedade. Talvez seja mesmo a inspiração no Arcanjo Miguel, considerado mensageiro de Deus, que o impulsione a usar a comunicação para colocar em prática o que preconiza a doutrina que professa. Mais uma vez, aguardo para segui-lo.
Terceiro momento
O mensageiro dos que são invisíveis
“Qual o livro do Galeano você mais gosta?” me pergunta padre Julio, na caminhada que fazemos juntos em direção à estação do Metrô da Mooca. O livro dos abraços e a trilogia Memória do fogo, respondo, observando aquele senhor de boné, bolsa à mão esquerda, bengala à direita, cuja vitalidade faria muita gente jovem invejar. São uma e meia da tarde e ele segue firme, conversando, orientando, cumprimentando as pessoas na rua, fazendo observações sobre as pessoas com quem trabalha, rindo de antigas histórias e de outras, não tão antigas assim.
Conta-me que no fim dos anos 1980 teve o privilégio de conhecer o escritor uruguaio, numa viagem que fez pela América Latina, a convite do Unicef. O roteiro incluía Guatemala, Panamá e El Salvador, mas foi na Casa das Américas, em Havana, que teve a oportunidade de ver ao vivo uma conferência de Galeano. O padre me contou o quanto achou bonito o relato que ouviu do escritor, ao narrar a história de um povoado chamado Salvador Allende (presidente chileno deposto em 1973 pela ditadura de Augusto Pinochet, tio da escritora Isabel Allende).
“Ele conta essa história em um vídeo no YouTube”, lembrou Paulo. Segundo a narrativa, havia nas montanhas mexicanas de Nayarit uma comunidade de indígenas huichol que não tinha nome. Havia séculos que o procuravam e um dia, por acaso, um de seus habitantes, Carlos González, o encontrou. Em uma ida à cidade, conta o escritor, o indígena achou no lixo um livro que falava de um país de nome estranho, que ele nunca ouvira falar, e contava a história de um homem que soube cumprir a sua palavra.
Ao chegar à aldeia, Carlos anunciou sua descoberta e leu o livro em voz alta para todos. Ao fim da leitura, todas as famílias concordaram com o batismo do lugarejo. “Agora eles têm um nome. Esta comunidade leva o nome de um homem digno que não hesitou em escolher entre a traição e a morte. ‘Vamos a Salvador Allende’, dizem agora os caminhantes”, concluiu o escritor, no vídeo indicado por Paulo. [O vídeo pode ser assistido na íntegra em https://bit.ly/3bH0XbY].
A nossa caminhada continua e padre Julio segue falando da admiração por Galeano, pelo educador Paulo Freire e pelo escritor Ariano Suassuna. Cumprimenta um, acena para outro e ri das histórias que Paulo e Daniel contam sobre um amigo que têm em comum. Testemunho ali, na prática, a simplicidade descompromissada de um homem que há muito firmou compromisso com a vida. Um homem que, em silêncio, vem levando conforto aos desafortunados e lutando pela garantia dos direitos daqueles que a sociedade finge não ver. Um homem que luta pela vida do homem; um homem que não hesitou em escolher estar do lado dos mais fracos.
Lembro de sua formação e de sua trajetória, sempre pautada pela defesa dos desafortunados, e aprimorada com os estudos de Teologia, de Pedagogia, de técnicas de Enfermagem e pela vivência com grupos que têm em comum a invisibilidade: adolescentes em conflito com a lei, detentos em liberdade assistida, pessoas que vivem com HIV/aids e populações de baixa renda e em situação de rua.
Uma trajetória que, se também foi marcada por incompreensões e polêmicas midiáticas, não o impediu de fundar casas de apoio para crianças com HIV, no começo dos anos 1990, ou acolher de braços abertos a missão de vigário episcopal do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo — responsável por vários projetos municipais de atendimento à população em situação de vulnerabilidade, como o programa “A Gente na Rua”, formado por agentes comunitários de saúde e ex-moradores de rua.
Chegando a um ponto do nosso trajeto, despeço-me do padre, que segue para sua casa de táxi, e acompanho seus amigos à estação de metrô, a caminho de outra pauta — a Ocupação Alcântara Machado, cuja história vamos contar em breve, aqui na Radis. Já à espera do trem que nos levará até lá, no terminal de passageiros, vejo uma senhora vestida com roupas muito humildes e olhar triste a carregar uma criança no colo e me dou conta de que nunca mais olharei do mesmo modo o sofrimento do outro.
A porta do vagão se abre, perco a mulher e a criança de vista e me distraio com a multidão, quando me vem à mente a imagem do Arcanjo Miguel, espada na mão, a perpetuar, feito ícone, a eterna luta do bem contra o mal. Ou dos homens contra a injustiça, penso eu.
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