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Na gira encantada da história, dançam orixás e heróis como Zumbi, Luísa Mahin, Luís Gama, Tereza de Benguela, João Cândido e, com o ofá de Oxóssi nas cores verde e amarela da bandeira brasileira, Abdias Nascimento. A essa galeria de personagens históricos, o próprio Abdias acrescentaria os enforcados da Revolta dos Alfaiates (1789) e do levante dos Malês (1835) e tantos nomes anônimos da resistência negra e quilombola.

O resgate da memória negra é uma necessidade, nas palavras do poeta, artista plástico, escritor, dramaturgo, político, professor universitário e ativista dos direitos humanos, Abdias Nascimento (1914-2011). Oriundo da fileira de personalidades negras brasileiras, ele foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, após a publicação da lei 14.800, em 9 de janeiro de 2024 — e passa a figurar ao lado de nomes como Tiradentes e Deodoro da Fonseca, que encabeçam a lista.

Abdias é considerado um dos mais importantes intelectuais a tratar da temática afro-brasileira. Foi ativo defensor dos direitos da população negra e transformou sua arte em uma poderosa aliada no combate ao racismo. Destacou-se como artista plástico, com obras que estão em parte reunidas no Museu de Arte Negra (MAN), que ele fundou, e foi um dos pioneiros nas discussões sobre o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) — finalmente declarado feriado nacional no fim de 2023. Criou ainda o Teatro Experimental do Negro (TEN) e ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado.

Em um país que se acostumou a condenar o negro a “sofrer calado e sem reclamar”, como ele mesmo afirmou, reconhecer a contribuição de pessoas negras à história é algo recente — e uma imensa dívida a ser reparada. Quem consideramos heróis? “Os mártires negros da nossa independência são sistematicamente esquecidos pela sociedade brasileira ‘oficial’”, escreveu Abdias, em seu célebre livro O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista.

Resgatar o protagonismo de pessoas negras e indígenas na história do Brasil é como acender um candeeiro que ilumina o passado, o presente e o futuro. Essa sempre foi uma preocupação de Abdias Nascimento, para quem o apagamento da memória do africano havia sido a primeira providência da violência colonizadora. 

“Caso o negro perdesse a memória do tráfico e da escravidão, ele se distanciaria cada vez mais da África e acabaria perdendo a lembrança do seu ponto de partida”, detalhou. O africano escravizado estava condenado a esquecer: sobretudo, as lembranças daqueles que vieram antes, seus ancestrais e heróis. “Quem não tem passado não tem presente e nem poderá ter futuro”, completou.

Por isso, em seus escritos e em sua militância, ressurgem não apenas as sombras, mas as histórias vivas de africanos e brasileiros afrodescendentes. Abdias resgata e, ao mesmo tempo, encarna o espírito dos quilombolas das matas do Urubu, em 1826, na Bahia, liderados pela negra Zeferina; ou dos pretos Cosme e Manuel Balaio, que enfrentaram o exército imperial comandado por Caxias, no Maranhão, em 1839, na Revolta da Balaiada; ou ainda a coragem do jangadeiro cearense Chico da Matilde, o Dragão do Mar, ao se recusar a transportar escravizados que seriam comercializados.

Abdias ensina que o legado de todos esses homens e mulheres ainda vive. São ancestrais do povo negro. Assim como ele mesmo é hoje, na dança do tempo.

“Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial.”

No livro Quilombismo

Quem foi Abdias Nascimento 

Filho de pai sapateiro e músico e mãe doceira, neto de ex-escravizados, Abdias Nascimento nasceu em Franca, no estado de São Paulo, em 14 de março de 1914. Trabalhou desde os 7 anos de idade e formou-se em economia na Universidade do Rio de Janeiro em 1938.

Nos anos 1930, participou da Frente Negra Brasileira e dos movimentos de protesto contra a discriminação racial e o Estado Novo de Getúlio Vargas, o que o levou à prisão. Encarcerado por 2 anos na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, fez florescer na prisão seus primeiros passos como dramaturgo: fundou o Teatro do Sentenciado, no qual os próprios prisioneiros organizavam as peças teatrais. Seus escritos no período deram origem ao livro Submundo: Cadernos de um Penitenciário, publicado recentemente (Editora Zahar, 2023).

Uma de suas mais importantes contribuições à cultura brasileira viria, logo depois, com a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944. Ao romper as barreiras raciais existentes na arte brasileira, a iniciativa ajudou a formar uma geração de atores e atrizes negras, entre os quais Léa Garcia (1933-2023), com quem Abdias foi casado e teve dois filhos.

Entre 1950 e 1968, ele se dedicou a organizar o Museu de Arte Negra: a exposição inaugural ocorreu, em 68, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. No auge do regime militar, com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), Abdias, que havia sido filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), estava em viagem ao exterior e não pôde retornar ao país: ele passaria 13 anos no exílio, nos Estados Unidos e na Nigéria. 

Nesse tempo, estabeleceu intenso diálogo com os movimentos afro-americanos e se tornou professor da Universidade Yale, em New Haven, nos Estados Unidos, e da Universidade Obafemi Awolowo, em Ilé-Ifé, na Nigéria, entre outras instituições em que desenvolveu estudos sobre as culturas africanas e afro-brasileiras. Sua arte ganhou o mundo ao tematizar a religiosidade de matriz africana. Abdias se afirmou como referência do movimento pan-africano, que valoriza o legado de África no próprio continente e na diáspora.

Em 1978, esteve no Brasil e ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado. Somente em 1981, retornaria de vez ao país e criaria o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que até hoje mantém viva a sua memória. Também ajudou a organizar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), ao lado de Leonel Brizola, sendo eleito deputado federal em 1983. Foi o primeiro parlamentar negro a colocar a pauta dos direitos da população descendente de africanos no Brasil. 

Eleito segundo suplente ao Senado, em 1990, assumiu a vaga em 1997, com a morte de Darcy Ribeiro. Ficou no cargo até 1999, novamente pautando os direitos da população negra. Foi um dos pioneiros na discussão sobre as cotas raciais e, ainda na década de 1980, ajudou a idealizar a Fundação Cultural Palmares, com a proposta de resgatar a história cultural afro-brasileira. Costumava encerrar seus discursos, no parlamento ou nas universidades, com a saudação: “Axé!”

Abdias é autor de dezenas de livros, como O Genocídio do Negro Brasileiro, O Quilombismo e Axés do Sangue e da Esperança — Orikis, além de peças de teatro e pinturas, a maior parte delas reunidas no acervo do MAN [leia abaixo]. Um dos quadros mais famosos, intitulado Oxê Oxóssi, é uma releitura das cores da bandeira brasileira com a exuberância da religiosidade de matriz africana.

Ele faleceu em 2011, aos 97 anos, deixando três filhos, o último deles com a socióloga norte-americana Elisa Larkin Nascimento, com quem foi casado até a morte, e hoje presidente do Ipeafro. 

“A memória do negro brasileiro é parte e partícipe nesse esforço de reconstrução de um passado ao qual todos os afro-brasileiros estão ligados.”

No livro Quilombismo

Quilombismo 

O Quilombismo é mais do que um manifesto do movimento pan-africanista, que Abdias Nascimento ajudou a idealizar. É também expressão do que ele sentiu e defendeu ao longo de toda a vida. Na obra, que reúne dez documentos escritos em diferentes contextos de militância, Abdias faz desde uma análise precisa do racismo estrutural no Brasil até um resgate da identidade e das culturas afro-brasileiras.

“Ninguém no país é racista”, afirma, de forma irônica. Velado, mascarado, o racismo brasileiro pode ser até sorrateiro na aparência, mas é brutal ao apagar a memória e as culturas africanas. O autor também condena o “mantra” da chamada democracia racial, que camufla a realidade e vende a ideia de que o Brasil é um país em que imperou a harmonia entre negros, brancos e indígenas desde a colonização.

Contudo, Abdias não restringe as pessoas negras ao lugar de vítimas, mas ressalta o protagonismo que tiveram ao longo da história, desde a resistência dos quilombos até o papel que desempenharam figuras célebres como Luís Gama, Chico da Matilde, André Rebouças e João Cândido. O quilombo é, para ele, um espaço de resistência e socialidade que ainda hoje resguarda saberes ancestrais que mantêm viva a África no Brasil. 

Axé, Abdias!

Museu de Arte Negra (MAN)

Uma parte das obras de Abdias Nascimento está disponível para acesso online e gratuito no MAN. A instituição foi idealizada pelo próprio artista como um projeto do Teatro Experimental do Negro (TEN), a partir de 1950, para valorizar a arte e a cultura negra e combater o racismo. Após o exílio de seu idealizador, em 1968, o museu foi descontinuado. 

Em 2021, a primeira sede do MAN foi inaugurada virtualmente, por iniciativa do Ipeafro. O acervo abriga também a exposição Borboletas de Franca, com curadoria de Elisa Larkin Nascimento, Julio Menezes Silva e Juliana Muller, sobre a vida de Abdias. Nela, é possível navegar por diferentes momentos da trajetória do artista e utilizar recursos de realidade aumentada para interagir com as obras em casa. Acesse: http://man.ipeafro.org.br/

⁠Autobiografia

EITO que ressoa no meu sangue

sangue do meu bisavô pinga de tua foice

foice da tua violação

ainda corta o grito de minha avó

LEITO de sangue negro

emudecido no espanto

clamor de tragédia não esquecida

crime não punido nem perdoado

queimam minhas entranhas

(…)

PRECONCEITO esmagado no feito

destruído no conceito

eito ardente desfeito

ao leite do amor perfeito

sem pleito

eleito ao peito

da teimosa esperança

em que me deito

(Poema extraído de Axés do Sangue e da Esperança — Orikis, 1983)

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