Trinta e oito quilômetros. Essa é a distância entre os bairros Higienópolis e Itaim Paulista. Qualquer morador da cidade de São Paulo, a depender do meio de transporte, deve ter uma rota preferencial ou mais rápida para chegar de um ponto a outro. Janaína, por sua vez, não tinha escolha: pegava o trem na estação do Brás todos os dias às 17h.
Se você conhece São Paulo e leu o trecho acima deve ter se arrepiado ou pensado em alternativas para escapar dessa combinação de horário do rush com transporte público. Mas, novamente, Janaína não tinha opção: ganhava 800 reais na época e precisava terminar o ensino médio. Trabalhava como babá em Higienópolis e estudava — e morava — em Itaim Paulista. Tinha só 17 anos e já enfrentava uma rotina laboriosa, de assalariado adulto.
“Era minha primeira experiência. Eu era muito ingênua”, recorda a jovem, agora madura, aos 30 anos. O ano era 2010 e Janaína Costa foi trabalhar no seu primeiro emprego remunerado — e reconhecido — como babá. Cuidava apenas da criança e, por isso, conseguia chegar na escola a tempo do último sinal antes do início das aulas: às 18h45. “Estava dando tempo. Mas, logo no início da minha chegada, houve um atrito entre a patroa e a empregada que fazia o serviço da casa, e a patroa a mandou embora”.
De repente, Janaína estava cozinhando, lavando e passando roupa, fazendo faxina e, ainda, exercendo a função de babá. Tudo isso por 1000 reais. “Eu achava que estava ganhando muito bem. Veio todo o serviço da casa por 200 reais a mais. O que aconteceu, porém, foi que não estava conseguindo chegar na escola”.
É importante adiantar que Janaína conseguiu finalizar o segundo grau. Mas foi aos trancos e barrancos, conta. “Na escola, eles foram flexíveis. Mas, nos últimos quatro meses, quase não conseguia ir às aulas”. Ficou dois anos na casa dessa família, mas esse não foi seu primeiro contato com o trabalho doméstico.
Se cursar o ensino médio foi o começo de uma série de fissuras que Janaína abriu em uma herança coletiva de discriminações, por outro lado, a sua história profissional é semelhante à de outras milhares de trabalhadoras domésticas e revela o legado de segregação do Brasil. “Nós somos sete mulheres [na família]. Todas empregadas domésticas, mulheres negras. A maior parte das minhas primas são empregadas domésticas. É uma realidade muito presente”, relata.
Antes delas, a avó Menan foi lavadeira e doméstica — tendo, até mesmo, essas funções indicadas no registro de nascimento — e a mãe Betinha, acompanhante de idosos, doméstica, e muito mais: fez serviço braçal, esteve em colheita de café e trabalhou na roça. Enquanto as sete irmãs trabalhavam como domésticas, os cinco irmãos eram — e são, até hoje — boias-frias. “Eles vão para colheitas de café e usinas de corte de cana. Para mim, não existe traço mais colonial ou escravista do que o trabalho doméstico, o de usina de corte de carne e de colheita de café. Até porque são esses postos de trabalho que erguem o Brasil economicamente”, enfatiza.
Cheiro de água sanitária
Natural de Minas Gerais, Janaína foi criada na comunidade quilombola de Macuco, no Vale do Jequitinhonha. É a caçula das irmãs. Na pré-adolescência, aos 12 e 13 anos, já era responsável pelas tarefas da casa e pelo cuidado dos irmãos e sobrinhos e, ainda, trabalhava como babá e doméstica para famílias da sua cidade natal.
Depois disso, não parou mais: o trabalho doméstico já deslocou Janaína para bairros, cidades, estados e até países diferentes — esses processos migratórios realizados pelas domésticas no Brasil, inclusive, foram o objeto de estudo de sua tese de mestrado. “Eu já perdi a conta de quantas casas trabalhei, porque já exerci vários postos dentro do trabalho doméstico. Já fui cuidadora, diarista, fiz faxina, fui a empregada que cuidava da casa e das crianças, já fui a babá folguista, enfim”.
De função em função, ela viveu experiências das mais hostis até as mais desumanas. Morou no subsolo do condomínio daquela primeira patroa. “Eu estava suscetível a violências que, se acontecessem, ninguém ia perceber, porque ninguém morava lá embaixo. Era um depósito e o único banheiro que tinha era compartilhado com os prestadores de serviço do prédio”, relembra.
Na ocasião, Janaína precisou sair da casa da irmã onde morava e os patrões comentaram da possibilidade de a jovem morar no trabalho. “Eles tinham um quarto de hóspedes livre no apartamento e, logo, pensei que ficaria nele. Quando cheguei, ela [a patroa] simplesmente falou que tinha um quartinho lá embaixo, no subsolo”, conta. “Demorei a entender o que aquilo significava. Eu era ‘como se fosse da família’, mas não fiquei lá em cima, não fiquei no quarto vago. Eu fiquei no depósito”.
Nessa época, Janaína era universitária, estudante de Biologia — “não me perguntem por quê” — numa faculdade particular de São Paulo. Novamente estava dividida entre trabalho e estudo, mas dessa vez havia um agravante: não gostava do curso. Sua primeira opção era História, mas ouvia das pessoas que “isso não dá dinheiro, não”, então era melhor não arriscar.
Insistiu em Biologia, semestre após semestre, com mensalidades atrasadas, trancamentos e pouco rendimento nas aulas, já que não conseguia estudar durante o dia nem nos finais de semana por conta de caprichos, insinuações e arbitrariedades da patroa.
Mais de dois anos se passaram. Nesse meio tempo, Jana saiu do trabalho onde morava, passou por outro, morou numa pensão e foi caixa de supermercado. E assim veio finalmente o estalo: “O que eu estou fazendo nesse curso? Vocês imaginam a quantidade de dinheiro que eu tinha investido ali. Mas pensei ‘Quer saber? Vou fazer História’”. Essa clareza, na verdade, era um engasgo. “Comuniquei para a minha patroa [essa escolha], que disse ‘Nossa, Jana, mas para que você vai trocar? Você já tá terminando. Essa área é muito difícil’. Comecei a sacar por que eu deveria fazer História”, esclarece a hoje mestre na área.
Deu-se conta de que fez a escolha certa nas matérias de História do Brasil. Uma aula de pós-abolição em específico marcou a memória de Jana. “Eu tinha feito uma faxina e estava tão cansada, mas tão cansada naquele dia, que não consegui tomar banho depois do trabalho. Estava com um cheiro de água sanitária tão forte que me causava dor de cabeça só de sentir na minha mão”, recorda.
No meio disso, a professora falava sobre o processo de inserção e colocação de mulheres negras na sociedade brasileira daquele período e, novamente, Jana teve um estalo: viu refletida naquelas falas a sua história “hereditária” como trabalhadora doméstica, e o racismo e machismo estruturais do Brasil. “Parece até cena de filme quando uma coisa vai conectando com a outra”, brinca.
Redes sociais e mestrado
Com sentimento parecido com o que a levou a trocar de graduação — e por causa das aulas que frequentava —, Janaína sentiu-se motivada a mais uma empreitada, que trouxe novos frutos e mais um título, o de blogueira e influenciadora digital. Hoje gerencia o perfil no Instagram Ela é só a babá, com mais de 46 mil seguidores.
Tudo começou no último ano de faculdade e como um espaço de desabafo. “Era uma espécie de diário”, conta. O nome da página veio de tanto ouvir patroas repetirem “Ela é só a babá”, quando alguém perguntava: “Quem é ela?”. “Eu não tinha nome”, diz.
“Quando criei [o perfil], eu estava com tanto ódio, mas era aquele ódio que você sabe que não vai te consumir ou te engolir, mas te motivar, porque ele tem razão de ser”, relembra. No início, seus relatos eram anônimos, sem muitos detalhes sobre as situações abusivas que passava. Tinha medo de ser descoberta pelas patroas e demitida, ou não conseguir mais trabalhos.
“Eu passava o dia inteiro trabalhando. Aconteciam situações que me deixavam quase explodindo. Quando eu tinha um tempinho, às vezes, corria no banheiro, escrevia na página no Facebook”, conta sobre as condições que a impediam de expor livremente suas ideias.
Certas postagens, Jana lembra bem quando e como foram escritas: “Debaixo do cobertor. Na época, eu dormia no quarto com a criança. Lembro que ela dormia na cama de cima e eu, na de baixo. Então, eu entrava debaixo do cobertor — às vezes, chorando de raiva por conta de uma situação — porque no quarto tinham quatro câmeras. Eu tinha medo de estar escrevendo no meu Facebook e Instagram e aquilo estar sendo observado”. Ao narrar, ela deixa claro, ainda, o ambiente de terror criado nesse trabalho que, segundo ela, foi o que mais a detonou emocionalmente.
“Essa é a patroa dos meus pesadelos, inclusive”, menciona. Com frequência, sonha com as ex-empregadoras lhe dando ordens e com fragmentos de crueldades e intimidações no trabalho. “Já tive sonhos de acordar com crises de pânico. Ultimamente tem acontecido com muita frequência. Eu sonho com uma patroa específica. Mas ela não é só aquela pessoa, ela é todas as outras. É um terror psicológico e fica no nosso subconsciente”.
Janaína não é a única que vive ou viveu essa vigilância involuntária e inconsciente. Recentemente, uma amiga, que também já foi babá, comentou com ela que, ao voltar num lugar que frequentava com os patrões, se viu paralisada, sem reação. Ela teve um ataque de pânico no meio do shopping.
Relatos como esse são comuns no “Ela é só a babá”. O diário virtual de Janaína ganhou novas dimensões e cada vez mais apreciadores fiéis — principalmente trabalhadoras domésticas. “Você está falando a minha língua” era a devolutiva que fortalecia a jovem a continuar escrevendo e denunciando, apesar das críticas e dos desencorajamentos. “Mas não a denúncia pela denúncia, e sim a denúncia com pensamento crítico”, sustenta.
Foi por conta da página que Jana conseguiu o seu emprego mais recente, o que a levou para Bogotá, na Colômbia, a incentivou a entrar para o mestrado naquele país, e mudou a sua perspectiva do trabalho doméstico depois de 13 anos de experiências negativas. “Tive uma percepção mais valorosa da função da babá, porque entendi o que devia ser feito, qual era o papel que eu tinha, qual minha contribuição na vida daquelas crianças e daquela família e vice-versa”, reforça.
“A minha família”
Finalmente, Janaína vivenciava uma relação trabalhista de fato, com salário justo, autonomia e respeito mútuo. A ex-patroa hoje é uma grande amiga. Em dezembro de 2022, ela fez deste o seu último trabalho como babá. Agora, quer descansar, continuar escrevendo e se concentrando nas suas colheitas pessoais.
“Costumo fazer muitas coisas ao mesmo tempo e percebo que sobra pouco tempo para descanso. Então, eu sonho, nesse momento da minha vida, com uma família. E isso é uma das coisas que o trabalho doméstico acaba nos negando, que é essa construção de vínculos. Afinal, você é como da família deles, não precisa ter tempo para fazer a sua”, narra.
Mas e o espaço das redes e o perfil “Ela é só a babá”? “Ele existe fora das redes. Existe na minha pesquisa, no meu ativismo, nas palestras, nos eventos que faço. Vai existir nos livros que quero escrever e no doutorado que quero desenvolver”, explica. O sossego é mais do que merecido. “Estudando no ensino médio, eu trabalhei como babá; fiz a faculdade inteira trabalhando como babá; terminei a faculdade e continuei como babá; fui fazer o meu mestrado trabalhando como babá e, depois de concluído, de novo, continuei nessa função. Na fase que estou agora, se eu entrar para o doutorado, será o primeiro momento em que tenho um respiro”, disse Janaína à Radis semanas antes de descobrir que foi aprovada no doutorado em Política Social na Universidade de Brasília (UnB).
Janaína é uma mulher de ideias potentes: “Dizem que esse trabalho não gera mais valia [valor]. Como não gera? Eu saio da minha casa, presto um serviço na casa de outra pessoa e essa pessoa vai para o mercado de trabalho mover toda aquela economia. [Enquanto isso], estou garantindo o conforto e o cuidado dos filhos dela”, alerta.
“Sou a primeira pessoa da minha família que chegou à universidade. Sou a única mulher graduada desse total de 12 filhos. Sou a primeira que entrou no mestrado e a primeira em várias outras coisas em que não gostaria de ser a primeira”. De voz mansa, mas robusta, ela é isso e será muito mais. “Espero tantas coisas da vida. Coitada da vida, está com a listinha do caderno lotada de coisas [risos]”.
* Estágio supervisionado
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