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Avó, filha e neta. Três gerações de mulheres indígenas viviam em uma casa pobre nas imediações da Estação Ferroviária da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, desterradas de sua comunidade de origem, expulsas pela violência colonizadora contra as populações originárias. Migrante, analfabeta, paraibana e indígena, a avó, Maria de Lourdes, vendia bananas na feira, acompanhada pela neta, que a tudo observava.

Em silêncio, a pequena Eliane aprendeu, desde menina, a absorver todas essas vivências e a guardá-las em sua memória — e as lembranças da pobreza, da exclusão e da luta das mulheres de sua família se transformaram em matéria-prima para prosa e poesia. Suas palavras originárias foram espalhadas pelo vento e, de suas mãos, surgiu uma literatura que se tornou arma e voz para a luta indígena no Brasil, em sintonia com a defesa da Mãe Terra.

Hoje a menina é Eliane Potiguara, nascida em 1950, escritora, poeta, professora, ativista indígena e contadora de histórias, como ela mesma costuma se definir. E foi com sua avó que ela aprendeu a arte da contação de vida: “Vovó me contava coisas, a gente se sentava no final da tarde, todos os dias, eu e meu irmão, ela contava muitas histórias”.

Eliane é uma pioneira na luta das mulheres originárias e na organização do movimento indígena brasileiro, desde os anos da ditadura militar até a redemocratização, ao lado de nomes como Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Paulo Bororo. Autora de dez livros, entre eles o clássico Metade Cara, Metade Máscara (Grumin Edições), foi a primeira mulher originária a se destacar na literatura. 

Em um momento em que três mulheres indígenas assumem posições de liderança na política nacional (a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara; a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas — Funai, Joenia Wapichana; e a deputada federal Célia Xakriabá), ela se emociona e recorda que as sementes desse protagonismo indígena feminino foram lançadas lá atrás, por outras lideranças mulheres que deixaram suas pegadas na história. Em 1976, em meio à luta contra a ditadura militar, Eliane fundou o Grumin (Grupo Mulher — Educação Indígena), um coletivo de mulheres indígenas que pautava temas como violação dos direitos originários das mulheres, saúde reprodutiva e o papel da educação.

É o legado de lideranças femininas como Quitéria Pankararu e Marta Guarani Kaiowá, já falecidas, que ela reivindica para dizer que sua literatura é porta-voz da ancestralidade feminina, não apenas do presente, mas das vivências das avós e das avós das avós [Conheça algumas dessas mulheres aqui]. “Eu repasso toda a humanidade que recebi dessas mulheres que hoje são encantadas, ancestrais”, afirma à Radis. Formada em Letras e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eliane recebeu o título de doutora honoris causa, em dezembro de 2021, concedido pela mesma instituição em reconhecimento pelo conjunto de sua obra.

Nascida em uma família indígena expulsa do território na Paraíba após o assassinato de seu bisavô, Chico Solón, Eliane descobriu nas memórias de sua avó, Maria de Lourdes, e de mulheres como ela, a maioria anônimas, um caminho para unir outras mulheres originárias pelo Brasil afora. Rodou o país, viajou para diversas comunidades, falou sobre liberdade e questões de gênero em plena ditadura militar, recebeu ameaças de morte, não desistiu. 

Casou-se com o cantor e compositor Taiguara (1945-1996), uruguaio radicado no Brasil, considerado por alguns como o artista mais censurado pelo governo militar. Em 2005, foi indicada para o Projeto Internacional “Mil Mulheres pelo Prêmio Nobel da Paz” e, em 2011, nomeada Embaixadora Universal da Paz em Genebra, além de colecionar outros prêmios, como os concedidos pelo Pen Club da Inglaterra e pelo Fundo Livre de Expressão dos Estados Unidos.

Mãe de três filhos, Eliane também é avó de seis netos. Hoje é ela quem reparte o legado de suas antepassadas com a literatura que escreve para jovens, crianças e adultos. Seu livro mais recente, O Vento Espalha Minha Voz Originária, acaba de sair pela Grumin Edições. Em conversa com Radis, Eliane falou sobre o protagonismo feminino na luta pelos direitos originários, destacou o papel da educação e da literatura para transformar mentalidades e combater preconceitos e ressaltou que a humanidade precisa despertar uma memória ancestral e reencontrar um caminho de amor, solidariedade e equilíbrio entre os povos e com a Mãe Terra. O que já era tema, há mais de 40 anos, de um de seus poemas, Amor entre Povos.

Ao lado da deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, Eliane participou da Marcha das Mulheres Indígenas, em 2023, em Brasília. — Foto: Tania Rego / Agência Brasil.

“Essa história não é só minha”

Ao lado da deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG), da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da presidente da Funai, Joenia Wapichana, Eliane participou da Marcha das Mulheres Indígenas, em 2023, em Brasília. — Foto: Tania Rego / Agência Brasil.

Em mais de quatro décadas de militância, o que mudou na luta e no protagonismo das mulheres indígenas?

Para mim é uma vitória a gente conseguir essa visibilidade, haja vista que temos uma ministra [dos Povos Indígenas], a Sonia Guajajara, a deputada Célia Xakriabá [Psol-MG], e a própria presidente da Funai, a Joenia Wapichana. Isso não vem de agora. Vem de trás, da luta, da responsabilidade e de um amadurecimento das mulheres indígenas com relação à política. As mulheres que organizaram as suas lutas nos seus locais de vida e de moradia avançaram nesse sentido. Tivemos algumas mulheres, como a Quitéria Pankararu [1939-2010], já falecida, de Pernambuco, que foi uma mulher muito batalhadora, muito guerreira, que combatia o inimigo localmente, vendia os seus artesanatos, estava sempre em Brasília reivindicando seus direitos. Também tivemos a Quitéria Xukuru-Kariri, outra mulher de grande compromisso, também falecida. Dona Marta Guarani Kaiowá [1942-2003], do Mato Grosso do Sul. Mulheres que eu conheci pessoalmente, com quem conversei ao pé do ouvido. Deolinda Prado [do povo Desana, falecida em 2023], que criou a primeira casa da empregada doméstica em Manaus. Tive contato com muitas mulheres pelo Brasil — chegou uma época, depois que acabei a faculdade, que comecei a viajar para os locais. Era convidada por uma organização, por outra, e já publicava meus textos. A Oração pela Libertação dos Povos Indígenas e Ato de Amor entre Povos, que eu publiquei em pôster, eram um material panfletário, revolucionário, que eu carregava comigo para onde eu ia. 

E como surgiu o seu interesse pela literatura?

Eu escrevo há muito tempo, desde cedo, desde criança, com sete ou oito anos. Fui alfabetizada dentro da minha casa: minha família chamou uma pessoa para me alfabetizar, porque toda minha família não lia, não era das letras, era da cultura oral. As mulheres potiguaras, minha avó, minha tia, minha tia-avó, meus tios, todos éramos da cultura oral. Tive que escrever as cartas da vovó para a Paraíba porque minha família é migrante, foram para Pernambuco inicialmente, e depois para o Rio de Janeiro. Eu recebia essas cartas e lia para elas. Só que eu não tinha muito entendimento da questão indígena, nem do que era ser pobre, ou não ter casa para morar, nem a situação de violência que minha família sofreu no estado da Paraíba. Tiveram que fugir para não serem assassinados, porque meu bisavô desapareceu no plantio do algodão. Nós, indígenas, éramos escravizados naquela época, em 1910, na monocultura do algodão. Justamente quando surgiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) [em 1910].

Eu não tenho minha aldeia
Minha aldeia é minha casa espiritual
Deixada pelos meus pais e avós
A maior herança indígena

Poema “Eu não tenho minha aldeia”

Como a trajetória de sua família influenciou a sua escrita? 

Comecei a escrever para elas [as mulheres da família] e depois minhas coisas pessoais, meus pensamentos, e com os estudos que adquiri na escola, fui ser professora. Tive contato com a filosofia de Paulo Freire. Nós vivíamos num gueto indígena, na Central do Brasil, no Morro da Providência [no Rio de Janeiro]. Tive toda uma base indígena que me despertava paulatinamente para um dia eu saber de onde eu vinha, que eu vinha da questão indígena. Foi aí que percebi o sofrimento dessas mulheres, mulheres imigrantes, pobres, indígenas, nordestinas, mulheres que precisavam de apoio. Nem antes nem depois de 1950, quando eu nasci, existia uma política para pessoas migrantes, como a gente não tem até hoje.

E como você se descobriu uma mulher indígena?

Eu venho dessa luta, desse povo sofrido: inicialmente na comunidade e depois como uma migrante que adquiriu um pouco de conhecimento a partir da escola e da visão que eu tinha da minha família — porque se eu fosse só para a escola, não poderia descobrir que eu vinha de uma comunidade indígena. Eu só soube que vinha de uma comunidade porque minhas tias-avós falavam, elas contavam, elas choravam, elas sofriam. Toda a família adoeceu por causa do desterro e do assassinato do meu bisavô. Foi quando percebi que essa história não era só minha, era a história das mulheres indígenas, das pessoas indígenas que saíam de suas comunidades por qualquer motivo, por violência, ou porque queriam buscar melhores condições de vida, ou porque foram estudar, ou porque foram expulsas. O grupo indígena que saísse de sua comunidade iria na realidade cair na miséria. Foi o que aconteceu com a minha família. Um grupo de judeus, no Rio de Janeiro, apoiou a minha avó, para que ela conseguisse trabalhar na feira, com uma barraca de banana. Foi assim que a gente conseguiu sair do estado de pobreza e da rua, e ter o mínimo de dignidade morando numa casa, apesar de que o banheiro era fora e coletivo para mais de 50 pessoas. A gente morava num quarto, em que tinha um porão em que passavam muitos ratos. Era um lugar insalubre. Eu estava sempre doente. Quando eu me redescobri com Paulo Freire — eu até o visitei quando fui a Pernambuco —, a minha cabeça mudou totalmente, porque eu precisava saber o que tinha acontecido com minha família, de onde eu vinha. Foi assim que entrei para o movimento indígena.

“Uma redescoberta de mim mesma como indígena”

De que forma as mulheres indígenas começaram a se organizar politicamente?

A gente veio lutando e, nesse processo todo, fui conhecendo as mulheres. Nessa altura, entre 1970 e 80, eu já estava criando o Grumin, um grupo de mulheres preocupadas com a situação da mulher indígena no Brasil. Nós constituímos um grupo, que foi formalizado na aldeia Potiguara, com apoio de algumas lideranças e caciques. E a gente começou a trabalhar as nossas filosofias de vivificação da cultura e a elaboração de material didático, como cartilhas de alfabetização, trazendo a memória da sociedade indígena potiguara para as crianças, as palavras indígenas do tupi antigo, o que as mulheres pensavam, suas lutas, e o que elas não falavam, como a questão do alcoolismo e da violência doméstica. A falta de trabalho, a própria falta de apoio da Funai naquela época, porque a gente sabe que foram anos difíceis para os povos indígenas durante a ditadura militar.

E como foi viajar pelo Brasil para fortalecer a mobilização indígena? 

Antes de entrar para o movimento indígena, eu já tinha viajado, porque o meu esposo era músico e compositor [o cantor Taiguara, nascido no Uruguai e radicado no Brasil], e ele me ajudou para que eu pudesse, na época, viajar, e aproveitava para fazer visitas às comunidades de mulheres. Eu viajei para Norte, Sul, Leste e Oeste, por todo o Brasil, e depois participei do Movimento Indígena Brasileiro, da União das Nações Indígenas, junto com Ailton Krenak, Álvaro Tukano, Paulo Bororo e outros. Eu era a única mulher que participava desse grupo. Ouvia muito, às vezes falava, às vezes não falava, mas estava ali. Sempre busquei conversar com as pessoas. Não era um trabalho acadêmico. Só fiz a universidade, o bacharelado, mas recebi o título de doutora honoris causa por causa dos meus livros. Tenho dez livros publicados. O Metade Cara, Metade Máscara é hoje um livro de cabeceira, como as pessoas dizem. Mas o meu primeiro livro mesmo foi A Terra é a Mãe do Índio [lançado em 1989], que publiquei na terra potiguara. 

Como você percebeu que a sua literatura poderia ser porta-voz da luta indígena?

Antes desse processo, eu me meti na universidade com os chamados “poetas malditos”, e eles escreviam contra a ditadura militar, contra a opressão e o racismo que o Brasil vivia. Eu fazia parte daquele movimento estudantil. Para mim foi muito fácil continuar dali e viajar para a minha comunidade, para rever meus parentes antigos, tomar conhecimento dos que haviam falecido. Foi uma redescoberta de mim mesma a partir da identidade indígena que eu recebia na minha casa, com todas as histórias, todas as vivências, a alimentação saudável, a cultura, as tradições e, principalmente, com toda a ancestralidade. Vovó me contava coisas, a gente se sentava no final da tarde, todos os dias, eu e meu irmão, ela contava muitas histórias. E esse mundo onírico e místico foi que me deu toda a inspiração, junto com a minha experiência de professora primária e depois com o movimento indígena, para eu começar a escrever. Por isso continuo escrevendo e colaborando com materiais didáticos, e fico muito feliz com isso. A gente precisa que a literatura indígena flua. Conseguimos uma grande vitória com o Ailton Krenak na ABL [Academia Brasileira de Letras, em abril de 2024] e isso para nós é um reconhecimento da oralidade dos nossos povos.

“Chega de matar minhas cantigas e calar a minha voz

Não se seca a raiz de quem tem sementes

Espalhadas pela terra pra brotar”

Poema “Oração pela Libertação dos Povos Indígenas”

Em seu livro Metade Cara, Metade Máscara, você traz a memória de sua avó indígena Maria de Lourdes, paraibana, migrante, expulsa pela ação colonizadora. Como a história dessas mulheres indígenas, muitas delas anônimas, influenciaram a sua trajetória e a sua literatura?

Foi a partir das lágrimas que eu via nos olhos delas, dos cochichos. Eu escutava muito os cochichos das minhas tias-avós, eram muitas, eu fecho os olhos e as vejo. Elas me pegavam no colo, me davam carinho, eram muito gentis, eu recebi muito amor dessas mulheres. Até hoje eu sonho com elas. Quando eu sonho com elas, não é no mundo real, é em outro mundo, um mundo mágico e onírico, de cores e formas, de histórias, onde existem muitos animais, cobras, pássaros. Tenho essa força ancestral que me segue, me dá inspiração e determinação para escrever. Tudo o que escrevo é baseado nos ensinamentos que tive dessas avós, dessas tias-avós, muito mais mulheres que homens. Por isso sou muito ligada à Mãe Terra, ao útero, à Pacha Mama. Nos olhos delas eu via a realidade, a tristeza, a miséria, a pobreza, as dores, a saudade da terra delas, a vontade de voltar para a comunidade e não poder, porque eram pessoas extremamente pobres. Nossos móveis eram de caixote. Depois minha avó foi melhorando. Ela ia para a porta da minha escola vender banana, as crianças discriminavam. A gente sofria um racismo muito grande no local onde a gente morava, apesar da solidariedade dos judeus, italianos e portugueses, que também eram pobres. Eles vinham trabalhar na carvoaria, fugidos da Segunda Guerra. E o mais interessante é que a Funai e o SPI nunca souberam que existia essa comunidade, esse verdadeiro gueto indígena, vindos do Nordeste, nessa região do Rio.

Como diz o título do seu novo livro, O Vento Espalha Minha Voz Originária, sua literatura ecoa as vozes da ancestralidade, correto?

A literatura que escrevo hoje não é minha. Não me pertence. Apenas sou uma porta-voz. Eu repasso toda a humanidade que recebi dessas mulheres que hoje são encantadas, ancestrais. Antes delas, nos meus próprios sonhos, eu já vi essas outras indígenas avós e bisavós das tias-avós, é uma coisa muito forte. Eu tinha a visão dessas mulheres muito antigas, com as peles enrugadas, e elas me acolhiam. Sempre tive esse mundo interior na memória. Não somente nós, indígenas, mas toda a humanidade precisa despertar essa memória ancestral sobre como era o amor entre os povos, daí o título de um poema meu, Amor entre Povos, que tem mais de 40 anos. A minha vida, a minha espiritualidade, a minha essência de mulher, a minha alma está toda transbordada desse mundo mágico que eu recebi, dessa educação ancestral, e é por isso que eu escrevo. Eu não escrevo para mim.

Eliane na Marcha das Mulheres Indígenas: “A luta das mulheres indígenas não vem de agora”. — Foto: Tania Rego / Agência Brasil.

“Território também é corpo”

Eliane na Marcha das Mulheres Indígenas: “A luta das mulheres indígenas não vem de agora”

O que ainda é preciso desconstruir em relação a estereótipos e preconceitos sobre os povos indígenas e qual é o papel da educação e da literatura nesse processo?

Precisamos trabalhar com as escolas brasileiras e nossas professoras, com materiais didáticos que estejam de acordo com a inclusão social dos povos indígenas, que expliquem para crianças, educadores e gestores sobre o racismo estrutural. Precisamos estimular uma mudança de mentalidade para que a criança seja criativa, participativa e amorosa, e que ela tenha dentro de si o sentimento de cooperação e solidariedade. Já existem alguns programas de educação nesse sentido. Os indígenas estão cantando, fazendo rap, fazendo pinturas e obras de arte, os museus estão abrindo as portas, ou melhor, nós é que estamos conquistando esse espaço, mostrando a nossa cara. São iniciativas que contribuem para uma compreensão melhor do que é ser indígena, do que é ser pobre, do que é viver na miséria, e quais as mudanças que podemos fazer nós mesmos. Temos que propor aos governos políticas públicas para povos indígenas, como educação diferenciada, proteção às línguas indígenas, que são mais de duzentas no Brasil. Vários indígenas estão indo nas escolas explicar para as crianças o que é ser um povo originário. Nós não somos “índio”. Toda uma mudança precisa ser realizada na cabeça dos professores e dos pais dos alunos, para que a gente tenha uma educação infantil que combata esse racismo e todo o processo de discriminação social. Nós temos muitos professores preocupados com a implementação da Lei 11.645/2008 [que determina a inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial das escolas de ensino fundamental e médio], que propõe levar para a escola os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas para que possam contribuir com o reflorestamento, com o meio ambiente. Povos indígenas têm muito a contribuir nas escolas, na televisão.

O tema da Mãe Terra sempre esteve presente em sua literatura. Como os saberes dos povos indígenas podem nos ajudar a lidar com as questões ambientais e as mudanças climáticas? 

Quando a gente escreve um livro, quando damos palestras, ou quando Fernanda Kaingang assume a direção do Museu Nacional dos Povos Indígenas e realiza ali um grande evento, com comidas, danças, tradições, com remédios e ervas, trazendo esses conhecimentos, isso contribui para que os saberes tradicionais cheguem aos nossos governos. A Rio-92 trouxe os governos de todo o mundo para o Rio de Janeiro em uma conferência sobre o meio ambiente. Eles sabem, mas ainda não disponibilizam recursos, não têm vontade política de promover a defesa do meio ambiente. As disputas políticas e econômicas não deixam que os conhecimentos tradicionais fluam para que a gente possa contribuir com a defesa do meio ambiente. Quando o Davi Kopenawa fala sobre “a queda do céu”, ele está chamando atenção para isso. Os indígenas estão alertando que o mundo está para acabar e que a gente tem que fazer alguma coisa. Os conhecimentos tradicionais precisam ser assumidos, têm que estar dentro dos museus, nas escolas, na televisão, na internet, em tudo quanto é espaço, para que os governantes se sensibilizem mais com recursos financeiros para a defesa do meio ambiente e, consequentemente, da nossa Mãe Terra.

Recentemente, você acompanhou a posse de Ailton Krenak na ABL. O que representa esse reconhecimento da literatura indígena hoje?

Muitos escritores no passado, brasileiros, mas que não eram indígenas, escreviam sobre as nossas culturas. Chegou o momento em que os próprios povos indígenas precisaram colocar a sua oralidade no papel para que outras pessoas, como sertanistas, indigenistas e escritores, não continuassem a contagiar a sociedade brasileira com mais racismo e mais discriminação. Nós tivemos que entrar de cabeça em nossa oralidade e colocá-la no papel como um instrumento de luta e libertação, um instrumento de resistência política a favor da nossa cosmovisão indígena. Está lá no papel, mas também nos nossos velhos e nossas velhas, nas nossas comunidades. Os indígenas, muitos deles, estão assumindo essa forma de luta. A gente vê a luta em passeatas, nas manifestações políticas, nas escolas, em todos os espaços. E a literatura indígena é também um instrumento de luta.

“Conseguimos uma grande vitória com o Ailton Krenak na ABL e isso para nós é um reconhecimento da oralidade dos nossos povos.”

Em abril de 2024, o Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena do país, completou 20 anos cobrando a demarcação de terras. Por que a luta pelo território é tão fundamental para os povos indígenas?

É muito importante a questão territorial porque no Brasil só se considera indígena quem tiver as suas terras, a sua territorialidade, incluindo a língua, as tradições e a cultura. Sendo que atualmente temos muitos indígenas que estão saindo das comunidades para estudar ou trabalhar, ou por qualquer motivo. É aí que surge também um movimento intenso que são os indígenas de origem urbana. Eles também participam do ATL, para que possam se conectar com seus parentes e seus antepassados. O ATL tem a função de aglutinar pessoas com o mesmo objetivo, com o mesmo sentimento de território. Território também é corpo. Nós como corpos somos indígenas. Nós temos nossa territorialidade. A nossa alma, o nosso pensamento, a nossa ciência que está em nossa cabeça, isso tudo é territorialidade. Por isso existe a luta pelo território, para vivificar e trazer os nossos companheirinhos que acabaram tendo que migrar de suas terras, ou que nasceram fora de suas terras, mas que são corpos indígenas, são nações indígenas. São pessoas que vêm de uma ancestralidade. O ATL é um lugar de muita espiritualidade, arte, poesia, pintura e discussões políticas. É um momento de muita articulação, não somente política, mas também dos conhecimentos tradicionais.

Como pessoas não indígenas podem ser aliadas dessa luta, sem usurpar o protagonismo e sem uma apropriação cultural indevida?

Quando eu falei daqueles escritores que pegavam as histórias e lendas indígenas e transformavam nos seus livros, eles modificavam o cunho da história. De certa forma, existe uma apropriação da história e dessas culturas indígenas. Aos poucos, outra pessoa vem e conta de outra forma e aquela história não é mais parte do âmago da ancestralidade, das histórias antigas. Quando um parceiro dos povos indígenas quer colaborar, que ele abra caminhos ou apoie a abertura de caminhos, para que possamos mostrar as nossas artes, mas que não utilize indevidamente a nossa cultura. Tenho visto muitas pessoas não indígenas com cocar, mas tem que haver um pouco de honestidade para poder ser um perfeito apoiador da questão indígena, abrindo espaços. Os povos precisam disso.

Conheça alguns dos livros de Eliane Potiguara

  • A Terra é Mãe do Índio (1989)
  • Metade Cara, Metade Máscara (2004)
  • O Pássaro Encantado (2014, infantojuvenil)
  • A Cura da Terra (2015, infantojuvenil)
  • O Vento Espalha Minha Voz Originária (2023)

Conheça mais sobre ela. (com o link: http://www.elianepotiguara.org.br/)

Assista à entrevista completa com Eliane Potiguara no canal do Youtube de Radis

Guerreiras da ancestralidade


Quitéria Pankararu [1939-2010]

Nascida na aldeia Saco dos Barros, em Pernambuco, Dona Quitéria Binga tornou-se uma liderança importante do Povo Pankararu e dos indígenas do Nordeste, já nos anos 1970, destacando-se na defesa do direito à educação e das mulheres.

Conheça mais de sua história: https://bit.ly/quiteriapankararu.


Marta Guarani Kaiowá [1942-2003]

Da aldeia Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul, Marta Guarani, conhecida como Kunhã Gevy, destacou-se desde jovem na luta contra violências e abusos cometidos contra os povos indígenas da região e foi perseguida pela ditadura militar por defender o acesso à terra e os direitos das mulheres.

Leia mais: https://bit.ly/martaguarani.


Deolinda Prado [1953-2023]

Em Santa Cruz do Turi, no Alto Rio Negro, no Amazonas, nasceu Deolinda Freitas Prado, do Povo Desana, uma das fundadoras da Associação Mulheres Indígenas do Rio Negro (AMARN), com o objetivo de acolher outras mulheres indígenas, como ela, expulsas de sua terra e que chegavam a Manaus. Participou ativamente das discussões da Constituinte de 1988.

Leia mais: https://bit.ly/deolindaprado.


Andila Kaingáng [1954]

Nascida na Reserva Indígena Carreteiro, no Rio Grande do Sul, Andila é educadora, escritora, contadora de histórias e artesã. Além do envolvimento na educação escolar indígena, atuou como liderança no processo de retomadas de terra, inspirada por seu pai, Cacique Manoel Inácio.

Leia mais: https://bit.ly/andilakaingang.


Chiquinha Paresí [1960]

Professora desde 1977 e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, Francisca Navantino Pinto de Ângelo nasceu na Aldeia Rio Formoso, do Povo Paresí, em Tangará da Serra (Mato Grosso). É conhecida como liderança aguerrida na defesa da educação diferenciada indígena e dos direitos originários.

Leia mais: https://bit.ly/chiquinhaparesi.


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