Sete milhões de pessoas deixaram forçosamente a Venezuela em busca de melhoria de vida, desde 2016. Metade desta população migrante é formada por mulheres e meninas. Suas histórias mostram que a crise humanitária venezuelana, marcada pela fome e pela falta de acesso à saúde, atinge de modo diferente homens e mulheres, principalmente quando se leva em consideração as especificidades e as responsabilidades de cuidado femininas.
A saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas é particularmente afetada em seu percurso rumo a outro país, seja reforçando os motivos de sua partida, seja nos riscos que se colocam durante o trajeto, ou ainda nos processos de adaptação para onde migram.
Até janeiro de 2023, o Brasil recebeu 414 mil refugiados e migrantes venezuelanos. Entre as mulheres, a maioria deixou o país em busca de alimentos e de saúde. Além das precárias condições de vida, elas não têm, na Venezuela, acesso a informações ou serviços que as orientem e deem assistência nas questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, como exames preventivos, gravidez ou parto.
No trajeto até o Brasil, ficam expostas ao assédio e à violência, muitas vezes sexual. Muitas partem para a longa jornada já grávidas; outras trazem filhos pequenos, em uma caminhada árdua que combina fome, sede, cansaço e falta de condições de higiene. Ao chegarem ao país, não são compreendidas em suas necessidades e desconhecem como funcionam os serviços públicos de saúde — o que as afasta de políticas e práticas que garantem o seu atendimento no SUS.
Estas são algumas conclusões do projeto Reparando desigualdades de gênero na saúde das mulheres e adolescentes deslocadas em contextos de crise prolongada na América Central e do Sul [conhecido como ReGHID, sigla de Redressing gendered health inequalities of displaced women and girls in contexts of protracted crisis in Central and South America], realizado entre 2020 e 2023 em diferentes países. Acesse o sumário executivo em: https://bit.ly/reghid.
O projeto, interdisciplinar e multicêntrico, reúne diferentes organizações e universidades, sob a coordenação geral da Universidade de Southampton, no Reino Unido. Nas Américas, o ReGHID investigou o trânsito de mulheres venezuelanas em direção à Colômbia e ao Brasil e analisou a situação de “retornadas” após tentativas de migração para os Estados Unidos, incluindo aquelas que vivem em El Salvador e Guatemala.
Coordenadora-geral do ReGHID, a pesquisadora argentina Pia Riggirozzi avalia que o projeto fornece importantes ferramentas para fortalecer o diálogo entre pesquisadores, gestores e profissionais que atuam nas áreas de migração e de saúde — bem como em campos relacionados ao tema, como direitos humanos e assistência social — assim como espera que os dados possam ser utilizados na estruturação de políticas públicas e na conformação de estruturas e práticas sociais que atendam as necessidades de mulheres migrantes.
Ela explica que, no Brasil, a pesquisa revela ainda os impactos da migração forçada nos sistemas locais de saúde e apresenta dados sobre os padrões de desigualdade de gênero que afetam meninas e mulheres migrantes. “Os reflexos da migração forçada não se apresentam apenas em situações de violência que ameaçam a vida das mulheres, mas também se refletem na fome e nas barreiras no acesso à saúde”, reflete Pia, que é co-diretora do Centro Interdisciplinar de Saúde Global e Política da Universidade de Southampton.
“As mulheres e meninas em situação de deslocamento enfrentam uma série de desafios e necessidades de saúde que são amplificados pela sua condição de vulnerabilidade”, diz a pesquisadora, em entrevista à Radis. [Leia entrevista clicando aqui]. Ela informa que, de acordo com estimativas da ONU, existem mais de 50 milhões de mulheres e meninas deslocadas em todo o mundo, o que representa mais da metade da população mundial de refugiados. “Esta realidade complexa traz consigo uma série de barreiras que impactam profundamente o acesso destas mulheres à saúde e ao bem-estar”.
No Brasil, o ReGHID se desdobrou em uma pesquisa, coordenada pela Fiocruz e pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que coletou dados nas duas capitais que mais concentram refugiados venezuelanos (Boa Vista e Manaus), além das cidades de Pacaraima (RR) — principal porta de entrada de venezuelanos no país — e São Luís (MA), que tem recebido muitos migrantes da etnia indígena Warao, também oriundos da Venezuela.
As pesquisadoras realizaram um inquérito com cerca de duas mil mulheres e adolescentes venezuelanas, com idade entre 15 e 49 anos, que migraram para o Brasil entre 2018 e 2021, e que vivem em Manaus e Boa Vista. Também trabalharam em um estudo qualitativo (com entrevistas, grupos focais e histórias de vida), que incluiu gestores, profissionais de saúde e agentes de instituições (governamentais ou não) envolvidos em atividades relacionadas aos contextos migratórios.
Em um segundo inquérito, de base hospitalar, entrevistaram cerca de 900 mulheres que haviam dado à luz entre junho e novembro de 2022, quando compararam a atenção ao parto e as características obstétricas, assim como desfechos clínicos, entre puérperas brasileiras e venezuelanas.
Os resultados permitem não somente identificar as necessidades das mulheres migrantes — e desafios no acesso delas a serviços de saúde sexual e reprodutiva no SUS — bem como avaliam o impacto da alta da demanda nos serviços públicos locais de saúde provocada pelo deslocamento forçado de venezuelanas. Por consequência, a pesquisa indica pistas sobre a efetividade da garantia do direito à saúde de refugiadas e migrantes no país. A partir dos depoimentos de Rossmari, Yesica, Solange, Eudismary, Ivonne e Geisy, colhidos no Encontro sobre direitos sexuais e reprodutivos de mulheres migrantes, que aconteceu em Manaus, em julho de 2024 [Leia sobre o encontro aqui], Radis repercute alguns resultados do projeto e revela como a saúde de mulheres migrantes é afetada em suas jornadas em busca de melhores condições de vida no Brasil.
“O acesso gratuito e universal ao SUS foi um elemento importante na decisão de migrar.”
Rossmari (de vermelho), com a mãe Rosa e o filho Dylan, já nascido no Brasil: acolhidas pelo SUS em Mauazinho, na periferia de Manaus
A difícil decisão de partir
Por que as venezuelanas migram para o Brasil? Os números do ReGHID demonstram que fome, falta de acesso à assistência à saúde, insegurança e violência, além da busca por trabalho, são os principais motivos que mobilizam as venezuelanas a tentar uma vida melhor no país vizinho.
Quando o projeto se debruça sobre os achados qualitativos, encontra narrativas que colocam a crise econômica, a falta de perspectiva laboral, os baixos salários e o pouco acesso a itens essenciais, como água, alimentação e educação — além da precariedade da saúde e a insegurança — como preponderantes para a decisão de migrar para o Brasil.
Os relatos também mostram que, para as venezuelanas entrevistadas, o acesso gratuito e universal ao SUS foi um elemento importante na decisão de migrar, assim como a busca pela reunificação da família, tanto para mulheres que já tinham parentes no Brasil, bem como para aquelas que deixaram filhos e pais na Venezuela.
Rossmari Ruiz veio da Venezuela há seis anos, ao lado do marido, brasileiro. Viviam na capital Caracas, mas a situação política e econômica do país os obrigou a migrar, conta emocionada à Radis. Grávida, com ameaça de aborto, não tinha acesso à assistência médica e nem a medicamentos, mesmo trabalhando.
Engenheira industrial em uma empresa que fabricava alumínio, ela e o marido viram a inflação subir e as despesas aumentarem ao ponto de não conseguirem se sustentar. Decidiram migrar para que o filho pudesse nascer em segurança. “Não tivemos opção a não ser migrar”, relembra Rossmari, ao lado da mãe Rosa e do filho Dylan, que já completou cinco anos. A família vive hoje em Manaus.
Em 2016, a também engenheira Solange Blanco dava aulas na Universidade de Maracaibo, mas não se sentia segura vivendo no país. Os conflitos estavam nas ruas: “Eram muitas bombas, gás lacrimogêneo, eu me sentia insegura”. Formada em engenharia química, com mestrado na área, ela já se considerava refugiada mesmo antes de partir. “Eu tinha que fugir daquela situação que colocava a minha vida em risco. Era uma questão de vida ou morte conseguir a liberdade. Aqui posso caminhar sem medo de que alguém vai me agredir”, justifica. Migrou para o Brasil onde já vivia um dos filhos. O marido só se juntou a eles anos depois.
A educadora Yesica Torcat deixou o país 15 dias após sofrer um aborto espontâneo. Lá, ela não contou com assistência médica. Além da falta de acesso às condições básicas de sustento, Yessica também sentia falta de orientação sobre questões íntimas de saúde. “Eu não tive direito de receber qualquer informação sobre saúde sexual e reprodutiva, o que me impedia de viver minha sexualidade plena”, conta.
Refugiados venezuelanos abrigados provisoriamente em Boa Vista. — Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil.
Uma jornada árdua e arriscada
As três mulheres venezuelanas decidiram partir, rumo ao Brasil, mesmo sabendo que o percurso não seria fácil — e que a adaptação demandaria tempo. Mas naquele momento não tinham opção. Após a difícil decisão de deixar o país, a família e o que construíram em sua terra natal, mulheres como Rossmari, Solange e Yesica enfrentam muitos desafios no percurso até o Brasil.
O ReGHID identificou que, entre as participantes da pesquisa, quase todas entraram no país cruzando a fronteira terrestre por Pacaraima (RR), vindas de distritos venezuelanos mais próximos do território brasileiro. Muitas destas mulheres percorrem longas distâncias a pé, como Yesica. Ela relata que foram sete dias, andando, até chegar ao Brasil. No trajeto, dormiu ao relento, passou fome. Somente 15 dias depois de ter saído de casa, conseguiu tomar um banho de verdade. “Foi muito difícil”, relata, destacando a falta que sentia de outro filho que ficou em seu país de origem.
Os números do ReGHID mostram ainda que a maioria das refugiadas chegam acompanhadas de parentes (87%), principalmente de parceiros — e 8% delas chegam grávidas, como Rossmari que já trazia Dylan na barriga.
Eudismary Mariano não estava grávida, mas atravessou a fronteira do país trazendo sozinha dois filhos. Promotora de saúde, indígena da etnia Warao, ela narra que os três caminharam cinco dias até chegar a Roraima, onde viveram por dois anos, até migrarem novamente para Manaus. “Foi um período muito duro, eu não conhecia ninguém, não falava português e não sabia para onde ir”, diz, com os olhos perdidos no passado.
O ReGHID também registrou riscos que correm as venezuelanas migrantes em sua jornada até o Brasil, principalmente quando viajam sozinhas ou na companhia de crianças ou outras mulheres. A técnica de informática Ivonne Caroline Yndriago, por exemplo, passou maus bocados depois de muito caminhar até Roraima.
Ela conta que chegou ao país com medo, desconfiada das pessoas e assustada com propostas que pareciam de ajuda e, na verdade, eram armadilhas sexuais. Foi enganada por um motorista de aplicativo que ofereceu carona e quase caiu em uma outra tentativa de golpe, quando um homem fez uma oferta de trabalho — que não existia.
Além dos casos de assédio e violência sexual, o relatório lista dificuldades adicionais — extorsões, roubos, condições geográficas adversas, longas caminhadas, fome, sede e cansaço, falta de acesso ao banheiro, especialmente no período menstrual — que criam riscos específicos à saúde sexual e reprodutiva das mulheres migrantes. Uma situação que se intensificou durante o período da pandemia de covid-19, quando as fronteiras foram fechadas e os caminhos percorridos passaram a ser clandestinos, aponta a pesquisa.
Por que as Venezuelanas migram para o Brasil?
54% têm dificuldade de conseguir alimentos
37,8% não conseguem acessar serviços de saúde
27,3% são vítimas de insegurança e/ou violência
23,2% buscam oportunidades de trabalho
Fonte: ReGHID
Chegada não resolve os problemas
Cruzar a fronteira, no entanto, não é o fim da jornada enfrentada pelas mulheres venezuelanas que migram para o Brasil, mostram os resultados do ReGHID. Para começar, não existem garantias, mesmo para aquelas que entram regularmente no país, de que vão rapidamente se estabelecer, poder descansar e cuidar da higiene íntima e da saúde. A barreira do idioma é outro fator complicador: sem poder se comunicar, fica mais difícil obter documentos, conseguir trabalho e ter acesso à moradia e aos serviços de saúde. Tudo isso em um momento em que ainda estão fragilizadas da viagem.
“A falta de abrigamento e a demora em obter documentação aumentam mais ainda os riscos à saúde sexual e reprodutiva e à saúde mental”, registra o sumário executivo da pesquisa. “Em um momento sentimos que estamos subindo a montanha e pensamos que vamos nos estabilizar. No momento seguinte caímos e voltamos a levantar. Essa é a vida da mulher migrante”, descreve Solange.
Hoje na presidência da Associação de Venezuelanos do Amazonas (Assoveam), que presta auxílio no acolhimento e na inserção de compatriotas no mercado de trabalho, ela conta que ao chegar ao Brasil sofreu muito com a saudade e com a solidão. Sem falar português, passava os dias em casa, esperando o filho voltar do trabalho. Neste período, sofreu com muita ansiedade e depressão. “A situação não deixa você olhar além. É muito importante o apoio de alguém de confiança para seguir adiante”, recomenda.
A tradutora Geisy Sulamita Rodríguez diz que os reflexos da migração em sua saúde mental reverberam até hoje. “Eu tinha um papel principal na minha história. Quando cruzei a linha imaginária da fronteira, há 19 anos, eu joguei isso fora”, revela, indicando que toda mulher que migra perde um pouco de si mesma no caminho.
Geisy se formou assistente social no Brasil e hoje atua no Instituto Mana, que trabalha questões relacionadas ao empoderamento feminino. Ela, que também se dedica a tarefas de acolhida e de assistência a refugiados indígenas Warao que chegam a Manaus, desde que era estudante universitária, considera que o refúgio é responsável por uma “fragmentação do eu” que tem como consequência certa perda de autonomia. “Quando migramos, a gente enterra o eu e recomeça fragmentada”, avalia.
Eudismary relata outra dificuldade, relacionada à vida sexual e reprodutiva de mulheres refugiadas que vivem em abrigos, que é a falta de privacidade para a vida íntima. Os abrigos disponíveis para migrantes são lugares de grande concentração de pessoas, a maioria delas desconhecidas, com regras rígidas de convivência. Os espaços destinados a famílias são pequenos, desconfortáveis e conflituosos. Ela relata que trocou Boa Vista por Manaus por não se adaptar à rotina do abrigo, onde se sentia presa e insegura.
O relatório do ReGHID destaca, ainda, a situação delicada enfrentada pelas migrantes que chegam irregulares, para quem é mais difícil obter informação sobre saúde e providenciar documentos; vivem sob o medo de serem deportadas. O documento também aponta impedimentos para a vida das mulheres que migram com filhos, já que não contam com redes sociais ou institucionais que possam lhes dar apoio, deixando-as desempregadas ou sujeitas a condições precárias de trabalho.
“O SUS aparece como a segunda razão da migração relatada pelas entrevistadas pelo ReGHID — atrás apenas da busca por alimentos.”
Sob a proteção do SUS
A existência do SUS, no entanto, funciona como uma espécie de contrapartida para os tantos desafios colocados pela vida no exílio das venezuelanas que migram para o Brasil. Mesmo diante da sobrecarga nos serviços de saúde locais, causada pela demanda de mais de 400 mil venezuelanos que chegaram ao país nos últimos anos — entre outros migrantes, de outras nacionalidades — o acesso universal, equânime e integral, base do sistema, é uma novidade para as estrangeiras.
Não é à toa que o SUS aparece como a segunda razão da migração relatada pelas entrevistadas pelo ReGHID — atrás apenas da busca por alimentos. O pré-natal do pequeno Dylan, filho de Rossmari, foi todo feito na Unidade Básica de Saúde de Mauazinho, bairro da periferia de Manaus, onde ele vive com os pais até hoje.
Mesmo as 16 horas de espera pelo parto — “O menino estava atravessado” — não fizeram Rossmari deixar de reconhecer o mérito de um sistema de saúde público gratuito. “O atendimento foi ótimo”, considera.
Poucos anos depois, foi a vez de Rosa, mãe de Rossmari, migrar para o país. Veio conhecer o neto, um pouco antes da pandemia de covid-19. Com a crise sanitária em curso — e o acesso à vacinação — resolveu ficar. Ambas relatam saudade de sua terra natal, mas somente a mãe pensa em um dia voltar. A filha, por sua vez, quer reconstruir a vida por aqui e para isso estuda português e empreendedorismo. “Quero montar um negócio”, relata à Radis.
Eudismary considera que o atendimento de saúde está longe de ser o ideal, ainda sente dificuldades de comunicação nos serviços, reclama das diferenças de abordagem que esbarram em questões culturais importantes, mas reconhece que aqui teve assistência para cuidar da gravidez, do pré-natal, do nascimento e do cuidado com dois filhos que teve com o novo companheiro, brasileiro.
Também ressalta que não tinha nenhum conhecimento sobre seus direitos sexuais e reprodutivos e espera um dia poder trabalhar como agente de saúde na aproximação do povo Warao com o SUS. “A maioria não entende português, então é muito difícil para eles”, explica, enquanto afaga os cabelos de Hermine, a pequena filha brasileira que traz no colo.
“Quando as mulheres ficam frente a frente com um médico, ele não entende, fica distante, não há sinergia”
Solange Blanco , presidente da Associação de Venezuelanos do Amazonas (Assoveam)
Solange acredita ser muito importante potencializar o atendimento por meio da inclusão de tradutores nas equipes de saúde, de modo que as mulheres estrangeiras se sintam mais à vontade para procurar os serviços. “Quando as mulheres ficam frente a frente com um médico, ele não entende, fica distante, não há sinergia”, avalia.
O Brasil é um país acolhedor, mas é preciso que os profissionais saibam lidar com as refugiadas, recomenda, lembrando a situação das indígenas Warao — muitas não entendem nem espanhol — e das haitianas — que só entendem a língua criola. “Elas optam pelo silêncio. Muitas delas têm diabetes e nem sabem. Na Assoveam tentamos fazer a ponte para que a relação médico-paciente seja mais harmoniosa”.
Os números da imigração
7 milhões de pessoas fugiram da Venezuela, desde 2016
414 mil refugiados e migrantes venezuelanos entraram no Brasil, até janeiro de 2023
50% dos migrantes são mulheres e meninas
87% das mulheres vieram com suas famílias
8% chegaram ao país grávidas
Impactos da migração no SUS
Uma das coordenadoras do ReGHID no Brasil, Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), avalia que muitos resultados da investigação foram inesperados. Em primeiro lugar, destacou a principal motivação das mulheres para migrarem para o Brasil: a fome. “Naquele momento, em 2021, quando fizemos a pesquisa, elas vinham para o Brasil em busca de alimento. Isso é um dado real”, revela à Radis.
A segunda questão importante que se extrai do estudo, enumera, é a descoberta de que grande parte delas migrou por conta da existência de um sistema público de saúde no país. Neste ponto a pesquisadora, que foi responsável pelo desenho dos inquéritos do ReGHID, chama atenção para o fato de os serviços de saúde terem dado conta desse aumento de demanda. “As mulheres venezuelanas usaram quase três vezes mais os serviços de saúde oferecidos pelo SUS do que as brasileiras. E o SUS cumpriu o seu papel, acolhendo essas mulheres”, avalia.
Duca [como Maria do Carmo é conhecida por alunos e colegas] informa ainda que os dados revelam que as mulheres venezuelanas tiveram acesso e tratamento bastante parecidos ao que é oferecido às brasileiras na oferta de serviços relacionados à atenção pré-natal e ao parto.
Também integrante da equipe do ReGHID, Thaiza Carvalho explica que o foco do projeto sempre foi identificar as necessidades de saúde sexual e reprodutiva das mulheres migrantes, entendendo vulnerabilidades e especificidades — nem sempre levadas em consideração pelas políticas gerais de saúde e de acolhimento às pessoas em situação de migração e refúgio.
Desafios e determinantes
Os dados e as informações levantados pelo ReGHID também propõem desafios para o SUS, apontam Duca e Thaiza. O primeiro deles é melhorar a oferta de contraceptivos. “Isso é uma necessidade, principalmente porque elas são mulheres com muitos filhos e com uma paridade muito alta em relação às mulheres brasileiras”, diz Duca.
Ela acredita que esta é uma demanda silenciada. As migrantes gostariam de ter acesso a esses métodos, que estão disponíveis no SUS, mas é preciso investir em um “processo proativo de oferta”, que leve em consideração as especificidades culturais e que seja capaz de ultrapassar as barreiras do idioma.
Thaiza chama atenção para outros determinantes de saúde que devem ser considerados, ainda que não sejam responsabilidades diretas da saúde, destacando entre eles o acesso ao mercado de trabalho. Ela relata que as mulheres migrantes, mesmo as mais qualificadas, não encontram ofertas qualificadas de emprego.
A pesquisadora enfatiza que o problema não é a ausência de qualificação e nem a falta de documentos. O que não há é oferta de vagas. “Elas já enfrentam dificuldades com a língua, têm que cuidar dos filhos e não encontram trabalho com remuneração justa, que assegure seus direitos”, demonstra. Segundo ela, isso cria um círculo vicioso de vulnerabilidade que também afeta a saúde dos filhos. “As poucas oportunidades de trabalho as mantêm em situação de vulnerabilidade”.
Outro desafio mencionado por Duca e Thaiza é a continuidade do estudo, de modo a acompanhar a vida das migrantes depois de quatro anos da coleta do estudo. “Nós queremos ouvi-las, saber se elas se sentem integradas, se têm trabalho, se estão estudando, trabalhando, se fizeram amizades — ou por outro lado, se se sentem discriminadas”, adianta Duca, ressaltando que a coleta de dados foi feita há quatro anos, quando se vivia um contexto de pandemia.
Relações entre migração e saúde
Thaiza chama atenção para outro aspecto que emerge do estudo, que guarda relação com o que a literatura científica relata como “efeito do migrante saudável”. Ela explica que o deslocamento das mulheres é forçado, na medida em que elas se sentem “obrigadas” a deixar o seu país em busca de subsistência, seja para si ou para seus filhos. Quando chegam aqui, tendem a se sentir bem de saúde, talvez por vislumbrar esperança no futuro.
A sensação de bem estar, no entanto, parece temporária, já que boa parte delas deixa alguém para trás: pai ou mãe, outro filho. Isso reflete diretamente na saúde de quem partiu, exemplifica a pesquisadora. Os resultados do ReGHID demonstram exatamente isso, segundo Thaiza. “As mulheres que deixaram alguém para trás tendem a avaliar sua saúde como pior”, diz ela, assinalando que curiosamente são exatamente estas que trabalham mais, já que se sentem responsáveis pelo sustento de quem ficou. E a pesquisa comprova: quase todas mandam parte do dinheiro que ganham, mesmo quando é pouco, para a Venezuela.
Estes e outros aspectos levantados pelo ReGHID acentuam a importância dos estudos que se debruçam sobre a relação entre migração e saúde, indica Duca. Ela lembra que ao mesmo tempo em que o país recebe mais imigrantes e tem uma legislação “humanitária e acolhedora”, é preciso que o Brasil se prepare para receber as pessoas, como assegura a Constituição, promovendo sua inserção com cidadania plena, com trabalho, emprego e renda, de modo a viabilizar o desenvolvimento de todo o seu potencial.
Thaiza destaca a contribuição de estudos que não somente analisam o fenômeno da migração entre países que estão no eixo Sul-Sul e que demonstram como o fato de um país ter um sistema universal de saúde protege as pessoas e diminui as iniquidades sociais a partir da saúde. “A migração vai sofrer transformações, mas não vai acabar. É um fenômeno do século 21 que precisa ser estudado a partir do olhar da saúde e não somente da segurança pública”.
“É preciso interpretar a vinda desses migrantes como uma riqueza para o país e não um prejuízo, considerando a diversidade cultural que trazem para nossa sociedade”
Maria do Carmo Leal, uma das coordenadoras do estudo
Neste sentido, sinaliza Duca, o ReGHID traz importante contribuição para compreendermos o fenômeno atual da migração sul americana para o Brasil e o papel que exerce a Constituição democrática e cidadã de 1988, que garantiu aos migrantes, exilados e apátridas o acesso ao SUS, também criado nesse mesmo contexto. “Ao fortalecer o acolhimento aos migrantes e refugiados, o Brasil se mostra como uma referência mundial no tratamento dispensado aos venezuelanos, o que é um orgulho para nós. É preciso interpretar a vinda desses migrantes como uma riqueza para o país e não um prejuízo, considerando a diversidade cultural que trazem para nossa sociedade”, avalia Duca.
Coordenadora das atividades de campo do ReGHID, Rita Bacuri, pesquisadora da Fiocruz Amazônia, corrobora o que diz Duca, revelando à Radis que se surpreendeu satisfatoriamente com o trabalho. “Foi uma experiência rica e inspiradora, pois tivemos a oportunidade de aprender com a força e com a coragem de outras mulheres”.
Ela manifesta o desejo de que a pesquisa possa alterar procedimentos e revelar desigualdades que promovam inquietações e que contribuam para a melhoria das condições de vida das mulheres venezuelanas em todo o Brasil. “Desejo ainda que os dados, sobretudo os quantitativos, sejam humanizados. Mostrar que por trás dos números existem histórias reais de mulheres reais que trazem o peito cheio de desafios e esperanças”, diz.
Por fim, ressalta a riqueza do aprendizado compartilhado com as participantes do projeto: “Não há migrante fraco. Todos os migrantes trazem consigo uma força extraordinária que faz com que acreditem no futuro”, avalia. Para ela, eles vivenciam o verdadeiro sentido da expressão “uma luz no fim do túnel”, demonstrando coragem para buscar o que lhes falta. “As mulheres, em especial, sabem e externalizam que sua luta é por uma vida melhor para seus filhos e família… Muitas até se excluem desse bem-estar. Isso é inspirador”, define.
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