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Cinco mulheres conversam descontraidamente. Barulhos de xícara. O som da chuva. Burburinho. Passos na escada. Quase se pode sentir o cheiro do bolo de fubá e do café coado que uma delas oferece às demais. Não precisa de muito esforço para imaginar a cena que chega pelas ondas sonoras. Daqui a pouco, o bate-papo vai entrar em um terreno delicado. Ouve-se um choro contido — às vezes, um pranto. Uma voz suave. O silêncio.

A essa altura, o ouvinte já foi apresentado a Regina, Rosa, Graça, Benê e Malu, personagens do podcast No Ar: PositHIVas na Prevenção, uma produção do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP) — rede criada para fortalecer mulheres que vivem com HIV e aids, que já foi tema de reportagem de Radis 231. Em quatro episódios de cerca de 20 minutos cada, a série mergulha no cotidiano dessas mulheres, como se estivéssemos em uma roda de conversa. 

Longe da opção mais tradicional de entrevistas ou mesas redondas, o podcast aposta no formato narrativo, semelhante ao de uma radionovela, para tratar das vidas por trás de um dado real. No Brasil, estima-se que, atualmente, um milhão de pessoas vivam com HIV. Desse total, 350 mil são mulheres. Diga-se que, considerando o sexo atribuído no nascimento, as mulheres apresentam piores desfechos em todas as etapas do cuidado. 

Vá contando: enquanto 92% dos homens estão diagnosticados, apenas 86% das mulheres possuem diagnóstico; entre os homens, 82% recebem tratamento antirretroviral, o número de mulheres em tratamento não passa de 79%; além disso, 96% dos homens estão com a carga viral suprimida — quando o risco de transmitir o vírus é igual a zero — mas o número fica em 94% entre as mulheres. Esses são dados do Relatório de Monitoramento Clínico do HIV, divulgados pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2023. 

Idealizado para chegar em regiões onde a informação por vezes não chega, a radionovela está disponível no site do MNCP e na plataforma de streaming Spotify, e pode ser utilizada também como instrumento para profissionais de saúde, movimentos sociais e lideranças dialogarem sobre os temas propostos. “A maior arma contra o preconceito é a informação”, disse a coordenadora do projeto, Renata Soares, em live de lançamento do projeto, transmitida pela Agência Aids. 

A linguagem do podcast é simples — e esse é mais um mérito do roteiro assinado por Etel Frota, baseado em histórias reais. Coube à escritora e roteirista costurar centenas de depoimentos que chegaram às redes sociais do MNCP, atendendo a uma convocação do projeto, para construir a identidade das personagens.

Na ficção, as cinco mulheres que vivem com o HIV reúnem-se semanalmente e, sob a batuta de uma delas, falam sobre diagnóstico, transmissão vertical, prevenção, preconceito, discriminação, autocuidado, acolhimento, políticas públicas, os serviços ofertados pelo Sistema Único de Saúde e as opções de tratamento. Os encontros podem acontecer na casa de uma delas ou na antessala de um consultório médico e, embora cada episódio seja centrado na biografia de uma personagem, as histórias se cruzam ao longo da temporada. 

Regina

Bem-humorada, generosa, dona de si, Regina é a mais experiente do grupo. Tem sempre algo a dizer. É dela o sonho narrado na abertura do episódio de estreia de No Ar: PositHIVas na Prevenção. Tinha apenas 24 anos quando contraiu o vírus depois que o parceiro, numa relação sexual, retirou o preservativo sem o seu consentimento — atitude que tem nome, o stealthing, ela saberia depois, e configura abuso sexual. Ele era o seu segundo namorado.

Numa época em que a aids era considerada uma sentença de morte, ela enfrentou muitos rótulos. Foi taxada de promíscua e teve de lidar com a vergonha, a culpa, as reações hostis e a falta de forças para continuar. Superado o estado de choque inicial, tomou coquetéis e assistiu à chegada dos antirretrovirais. 

Na atualidade, às vésperas dos 50 anos, Regina relembra o momento em que, ao se deparar com o resultado dos exames, desacreditou de Deus e se perguntou: “Por que eu?”. Agora, ela já sabe que procurar a resposta é um desperdício de energia. Em vez disso, faz questão de compartilhar o passo a passo de sua jornada como uma forma de ajudar quem está vivendo experiência parecida. 

Graça

Graça faz graça. A mais desbocada das cinco mulheres é piadista e provoca risada, até nos momentos menos divertidos. É ela quem puxa o fio da meada no segundo episódio do podcast e conta a sua história sob o pretexto de falar ao ouvinte sobre a transmissão vertical — principal via de infecção pelo HIV na população infantil, quando o vírus é transmitido da mãe para filho. No Brasil, essa forma de transmissão tem sido responsável por cerca de 90% dos casos notificados de aids em menores de 13 anos.

Graça nasceu com o vírus, 26 anos atrás. O diagnóstico precoce e o tratamento adequado lhe garantiram uma vida sem sobressaltos. Ela está sempre em busca de informação sobre a doença que levou seu pai a óbito. É ela quem apresenta ao grupo uma publicação do Ministério da Saúde com recomendações a serem seguidas pelas equipes multiprofissionais no cuidado integral às pessoas que vivem com HIV — um manual a que ela sempre recorre.

— Foto: Divulgação.

Rosa

Ingênua, a novata do grupo é Rosa, mãe de primeira viagem, que carrega uma culpa que não lhe cabe e muitas perguntas que ela nem tem coragem de fazer. Neste episódio, um dos mais impactantes da radionovela, o grupo de mulheres se encontra na rua, em frente a um Centro de Testagem e Atendimento (CTA), onde Rosa busca o resultado dos exames da filha, de pouco mais de um ano. 

Enquanto aguardam, entre soluços, ela conta sua saga de violência doméstica, a fuga da comunidade ribeirinha onde morava, desnorteada, grávida e com um teste de HIV positivo — uma realidade não muito diferente daquela vivida por muitas mulheres no Brasil. Na cidade grande, Rosa passa a morar em uma ocupação. Com a ajuda do grupo de mulheres, decide enfrentar seus fantasmas. Precisa saber se a filha também tem o vírus. 

A atriz que dá vida à Rosa é Maíra Fernanda, uma jovem mulher de 35 anos, que vive com HIV desde os 20. Assim como a personagem que ela interpreta, Maíra também é mãe. “Fiquei muito feliz que pude levar a maternidade para a radionovela”, disse, na live de lançamento do podcast. “Durante todo o meu processo de gestação e parto, fui acompanhada por uma equipe maravilhosa e me mantive indetectável. Meu filho não tem o vírus”. 

Benê

É negra a Benê. No quarto e último encontro da temporada, enquanto o podcast revisita os temas tratados anteriormente, o ouvinte vai descobrir que a vida da professora Benê é marcada por um duplo preconceito. Depois de superar uma vida de luta contra o racismo, ela enfrentou uma segunda batalha. Infectada com o HIV pelo marido, muita gente passou a lhe olhar torto.

No Brasil, a aids ainda mata mais pessoas negras do que brancas. Segundo o boletim epidemiológico de 2023, houve aumento de casos entre pretos e pardos, representando mais da metade das ocorrências desde 2015.

Para Benê, a segregação não era uma escolha. Mãe de dois filhos, ela decidiu que era hora de dar a volta por cima. Começou de novo. Namorou. Conheceu outro companheiro com quem agora forma um casal sorodiferente — mais uma palavra para o glossário de termos apresentados pelo podcast: um casal sorodiferente (ou sorodiscordante) é aquele formado por uma pessoa que vive com HIV e outra pessoa que não vive com HIV.

Malu (a mediadora)

A travesti Malu não ganhou um episódio — quem sabe em uma próxima temporada, já que o MNCP pretende dar continuidade ao podcast. A propósito, em março, foram gravados dois episódios que devem estar disponíveis em breve tratando especificamente da sífilis. 

Cabe a Malu costurar todas as histórias, como uma espécie de irmã mais velha do grupo. Na trama, ela é vivida pela atriz Helena Agalenéa. Também travesti, escritora, bacharel em artes cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e militante da causa LGBTQIA+ há pelo menos uma década, ela se emocionou ao lembrar das gravações dos episódios. “Com a radionovela, aprendi a ver esse assunto por vários ângulos”, disse, durante o lançamento. “Além de ser uma possibilidade de pensar diferentes Brasis dentro do Brasil”.

FICHA TÉCNICA

Produção e assessoria de conteúdo:

Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP) com apoio do Fundo Positivo

Roteiro:

Etel Frota 

Trilha Musical:

Felipe Radicetti (composição e execução)

Vozes:

Helena Agalenéa (Malu), Lêda Maria (Regina), Maria Bia (Graça), Maira Magalhães (Rosa), Renata Souza (Benê) e Emília Ferreira (canta ao final de cada capítulo)

PARA OUVIR

No Ar: PositHIVas na Prevenção. Radionovela em 4 capítulos que pode ser acessada por meio da página do MNCP (www.mncp.org.br) ou via Spotify (https://bit.ly/podcastmulheresposithivas). Em breve, nas rádios comunitárias e demais rádios que abrirem espaço para veiculação da produção.

Leia mais sobre o Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP) na Radis 231 (dezembro de 2021)

40 anos da pandemia de aids: a luta por reconhecimento e direitos de mulheres que vivem com HIV. — Nossa capa: fotografia de Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas (MNCP).
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