Estar em casa é se sentir livre para ser quem você é. Sem amarras ou camisas de força, sem julgamentos ou pressões. Casa é lugar de aconchego, do cheiro bom de comida, de andar descalço, de se sentar no sofá despreocupado com a vida. É onde se está à vontade. Esse sentimento é ainda mais verdadeiro para quem passou uma parte da vida entre os muros de um manicômio, privado de liberdade e classificado como louco.
Luiz Carlos da Silva, 70 anos, está em casa à vontade. No celular, ele escuta uma canção de Maurício Mattar e repete baixinho. O cachorro Floquinho brinca a seus pés. A seu lado, sentada no mesmo banco, está Fabiana das Graças, sua companheira. Luiz foi interno do Hospital Estadual Teixeira Brandão (HETB), na cidade do Carmo, no interior do estado do Rio de Janeiro, na divisa com Minas Gerais, a cerca de 190 quilômetros da capital. Hoje é morador de um serviço de residência terapêutica (SRT), uma das 17 moradias que existem na cidade, onde os egressos do antigo hospital psiquiátrico, fechado em 2005, vivem em liberdade.
Numa manhã fria de junho, em que o sol custava a sair, Luiz Carlos nos recebe em sua casa para uma conversa e um almoço, junto com os outros seis moradores: Denir, Paulo Francisco (mais conhecido como Peixe), Benedito, Claudemiro, Paulo Pinheiro e Fabiana. Fã do cantor Roberto Carlos, ele logo nos convida a desbravar seu maior tesouro: a coleção de vinis do Rei.
Sua identidade se mistura com a do cantor e, por vezes, ele é chamado de “Roberto Carlos” nas oficinas do Centro de Convivência Paula Cerqueira ou no Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Luiz Carlos espalha os discos pela cama e vai nos mostrando um a um, com orgulho, enquanto sussurra uma canção — “Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada”. E confessa: “Sou fã do Roberto Carlos desde novo”.
Na conversa, ele diz que viver na residência terapêutica é “muito bom” — muito melhor do que antes, no hospício. “Lá no hospital eles batiam na gente, enchiam de remédio. Enfermeiro batia nos outros lá, não deixavam a gente dormir na cama, tínhamos que dormir às vezes no chão”, relata. Pergunto quanto tempo ele ficou no hospital. “Muitos anos”, responde, sem muita precisão.

Fim do manicômio
Ao ser fechado em 2005, o Hospital Estadual Teixeira Brandão (HETB) — antiga “Colônia de Psicopatas do Carmo”, fundada em 1947 — contava com cerca de 260 internos. Muitos pacientes não tinham documentação, alguns sequer lembravam de seus nomes, eram chamados por apelidos. Enclausurados no hospício, estavam literalmente sem identidade. Quando ocorreu a desinstitucionalização, foi preciso um longo esforço dos serviços de assistência social, da saúde e da Justiça para garantir os direitos básicos a essas pessoas, como tirar a documentação e promover o cuidado em saúde no Caps, conta a atual diretora de saúde mental do Carmo, Érica Victório da Rocha.
A experiência do município, que conta com cerca de 17 mil habitantes, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022, é uma mostra do que representou a Reforma Psiquiátrica brasileira. Em 2001, foi promulgada a Lei nº 10.216, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que redefiniu o modelo assistencial em saúde mental, visando a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Foi o marco legal de um amplo movimento de luta antimanicomial, que reuniu trabalhadores e usuários da saúde desde os anos 1970 [Leia Pós-tudo clicando aqui].
No mesmo ano da lei, Carmo começou a viver um processo longo e difícil que iria culminar no fechamento do manicômio. Denúncias de condições desumanas, cárcere privado e uso da mão de obra dos pacientes levaram o Ministério Público a abrir um Inquérito Civil e a formular um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a ser cumprido por estado e município [Leia mais clicando aqui]. Ao mesmo tempo, surgia um novo modelo assistencial no SUS, baseado no cuidado em liberdade, na promoção de saúde e no respeito aos direitos humanos e à dignidade, articulado pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
“Nós, trabalhadores do SUS, fizemos uma aposta na Reforma Psiquiátrica brasileira. O grande pilar dessa reforma são os próprios trabalhadores e trabalhadoras”, afirma Érica, que é psicóloga formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com residência em saúde mental na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) em 2001, ano em que começou a trabalhar como servidora municipal no Caps do Carmo, que havia acabado de ser criado. Em 2024, ela concluiu mestrado em Atenção Psicossocial no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), sobre a experiência da Reforma Psiquiátrica na cidade.
Érica relembra que o processo de desinstitucionalização não foi simples nem imediato. Não se tratava apenas de fechar o hospício, mas era preciso definir como cuidar dos pacientes que lá estavam internados — a maioria deles há mais de 10 anos e sem nenhum vínculo social ou familiar.
Foi assim que surgiram, em 2004, as quatro primeiras residências terapêuticas (RT) — atualmente, existem 17 delas na cidade. São moradias inseridas na comunidade e previstas pela legislação, em que vivem os egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuem suporte social e laços familiares. “A experiência de Carmo traz a confirmação de como é possível transformar a vida das pessoas: pessoas que estavam enclausuradas por 20 ou 30 anos no hospício e [combater] práticas de violência e exclusão que foram naturalizadas”, ressalta Érica.
Mas a residência terapêutica não existe sozinha. Ela está inserida numa ampla rede de cuidados no SUS, em que o coração é o Centro de Convivência Paula Cerqueira, o primeiro a ser criado no estado do Rio de Janeiro, que funciona no Centro Cultural Jair Nunes Macuco. No espaço, ocorrem oficinas de capoeira, dança, música, teatro e artesanato, e os pacientes de saúde mental — a maioria idosos que passaram anos no hospital psiquiátrico — participam de atividades artísticas e culturais.
“Hoje eles vivem em liberdade. Têm o direito a passeio, ao lazer, ao comércio, e a gente vê como a cidade se transformou, ao acolher e incorporar essas pessoas no dia a dia da comunidade”, descreve Érica. A experiência do Centro de Convivência e das residências terapêuticas do Carmo foi premiada na 4ª Mostra do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (Cosems RJ) e está inserida na Plataforma IdeiaSUS da Fiocruz, que reúne iniciativas desenvolvidas por trabalhadores e unidades do SUS, em todo o país.
Radis visitou o Carmo, conheceu as residências terapêuticas, almoçou e conversou com os egressos do hospital psiquiátrico, participou das oficinas do Centro de Convivência e testemunhou como a cidade se transformou ao abraçar a Reforma Psiquiátrica e fazer da liberdade e da arte um caminho para a promoção de saúde.

Conviver é terapêutico
O toque do berimbau de Mestre Costelinha convida para formar a roda. Ao som das palmas, o corpo é convocado ao movimento e a imaginação voa, sem barreiras. A oficina de capoeira é a primeira atividade no Centro de Convivência na manhã de terça-feira. Os alunos, moradores de residências terapêuticas, chegam cedo, animados; entre eles, Luiz Carlos e Fabiana.
“A roda de capoeira integra. Às vezes as pessoas olham e pensam: ‘Como pode trazer um maluco para a roda?’ A gente ouve essas grosserias. Mas a capoeira convida a deixar os preconceitos de lado”, afirma Marcos José Ferreira, conhecido como Mestre Costelinha, do Grupo Sementes da Boa Terra, responsável pela oficina. Ele conta que já levou os alunos em encontros regionais de capoeira que ocorrem em cidades vizinhas: poder participar dessas atividades é sempre um motivo de alegria para os moradores das RT e inspira outros grupos a desenvolverem projetos na área de saúde mental.
Um dos alunos mais empenhados é Paulo César — no passado, um paciente psicótico grave; hoje, um gentil senhor que entra na roda e faz uma bananeira, sob os aplausos dos colegas. “Cada um contribui do seu jeito: um bate palma, o outro quer jogar, todos querem doar o seu melhor”, comenta Costelinha.



Além da capoeira, os moradores das residências fazem outras atividades artísticas e culturais. “A arte tem um papel fundamental no cuidado em saúde mental, especialmente para pessoas que viveram por anos institucionalizadas em hospitais psiquiátricos”, afirma Catarina Guiza, terapeuta ocupacional e coordenadora do Centro de Convivência. “É uma linguagem potente, que permite expressar sentimentos e memórias que muitas vezes não conseguem ser ditas em palavras”.
Catarina trabalha no Carmo, com saúde mental, desde antes do fechamento do hospital psiquiátrico. Ela afirma que viver a transição para outro modelo de cuidado foi profundamente transformador, como pessoa e como profissional. “Testemunhar antigos internos, muitos deles considerados ‘crônicos’, caminhando em direção a uma vida mais livre e cheia de possibilidades, foi algo que me marcou para sempre”, conta à Radis.
Para Érica Victório, que também acompanhou o processo de transição desde o início dos anos 2000, o Centro de Convivência é um grande diferencial no cuidado em saúde. “É olhar o sujeito não somente em relação à doença, mas como alguém que precisa de lazer, de arte, de cultura”, aponta. “Isso é promover saúde, não apenas cuidar dos sintomas e sinais, mas cuidar da vida”.

Cotidiano de uma residência
É hora do almoço na casa de Luiz Carlos e Fabiana. O cheiro convidativo da comida se espalha no ar. Cada um dos sete moradores prepara seu prato, alguns com o auxílio das cuidadoras — elas são responsáveis por apoiá-los, durante o dia e a noite, em algumas tarefas cotidianas, principalmente no caso dos mais idosos ou daqueles com alguma sequela mais grave, sempre buscando promover autonomia.
Érica relembra que a chegada das primeiras residências terapêuticas na cidade, em 2004, foi acompanhada do medo da população de conviver com os egressos do hospício, que ficava em uma fazenda, a cerca de 8 quilômetros do município — o que reforçava a ideia de segregação e isolamento. A sensação era de que “a loucura iria invadir a cidade”. “No início dos anos 2000, enquanto o hospital inicia o processo de reorientação da assistência, o Carmo começa a se preparar para receber essas pessoas”, recorda.
Não havia muitas experiências para se basear na época, observa. “Tudo começou do que a gente entendia que seria inclusão social e construção de autonomia e de empoderamento do usuário”, explica. A psicóloga, na época uma jovem profissional do Caps, conta que precisaram lidar com muita resistência por parte da população e principalmente da classe política, que se beneficiava com a existência do manicômio.
Mais do que simplesmente fechar o HETB, era preciso transformar os olhares e as práticas dos serviços de saúde. Érica relata que uma cena marcante que testemunhou, ainda no início do processo, ocorreu quando os internos do hospital começaram a vir à cidade para frequentar o Caps. “Na hora do almoço, eu me deparo com a cozinheira fazendo barulho com a tampa da panela. Ela disse que aquele era o sinal sonoro para que eles soubessem que era hora do almoço”, conta. “Isso mostrava o quanto havia de naturalização do hospício e o quanto a gente tinha que quebrar essa cristalização das práticas manicomiais”.
A convivência inicial com a vizinhança gerava medo e inquietação: será que eles vão ficar nus? Será que vão defecar nas ruas? Eram perguntas que a população fazia, diante do imaginário em torno da loucura e dos relatos que chegavam do manicômio, como relembra Érica. “Trazer essas pessoas para o convívio social foi um processo longo”, resume. Ela considera que os cuidadores tiveram um papel fundamental nessa adaptação. “O cuidador era alguém da cidade, era um vizinho também dessas pessoas, e ajudou por meio do afeto a desconstruir esse olhar de medo, de pavor em relação àquelas pessoas que ficaram 20, 30 anos internadas”, pontua.

Residência terapêutica não é novo manicômio
Que não reste dúvida: os serviços de residência terapêutica (SRT) não são um lugar para onde devem ser encaminhadas pessoas com grande sofrimento psíquico. Não são um espaço para internação. E muito menos, não podem ser confundidos com as chamadas comunidades terapêuticas, instituições que revivem a ideia de isolamento e segregação social dos manicômios e são voltadas para pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas, geridas comumente por igrejas ou associações religiosas.
Os SRT são destinados a pessoas que viveram longas internações em hospitais psiquiátricos e têm dificuldades de retomar suas vidas pela falta de apoio familiar e social. “Hoje o grande desafio é as pessoas entenderem que a residência terapêutica não é um substituto do manicômio”, reforça Érica. “É uma estratégia para que a gente tenha o fim dos manicômios. Ela é utilizada pontualmente, para que a gente possa fechar todos os leitos de longa permanência no Brasil”.
A gestora de saúde mental do Carmo conta que é procurada, com frequência, por pessoas que querem internar um idoso ou um familiar com transtornos mentais em um SRT, por não terem condições de cuidar. Essa não é a solução, explica, pois o poder público e a sociedade precisam discutir e criar uma política do cuidado para esses casos. “Está mais do que na hora de isso acontecer. A gente entende que muitas famílias não têm condições de cuidar dos seus entes, sejam idosos ou pessoas com deficiência”, analisa. Contudo, essa não é a função de uma residência terapêutica.
“O hospício um dia tomou esse lugar perverso. As famílias que não conseguiam cuidar dos seus entes depositavam no manicômio”, resume Érica. Para Paulo Amarante, pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/Fiocruz), as residências terapêuticas são dispositivos que fazem parte da Reforma Psiquiátrica e oferecem a possibilidade de viver na cidade e usufruir a cidadania [Leia Pós-tudo clicando aqui].



Atualmente, são 101 moradores nas RT da cidade. A maioria é habitada por homens, já que o hospital psiquiátrico era exclusivamente masculino. Porém, algumas mulheres passaram a fazer parte desse serviço, como egressas da desinstitucionalização de outras unidades da região. É o caso de Fabiana. Ela vive com Luiz Carlos e é a única mulher entre os sete moradores da casa que visitamos. Conta que sente saudades dos parentes, com quem tem pouco contato.
Na conversa com Radis, Luiz Carlos e Fabiana narram um pouco de sua rotina na casa. “Acordo de manhã, tomo café e vou para o Centro Cultural, fazer capoeira e oficina de arte”, diz Fabiana. Já Luiz relata que gosta de jogar dominó, assistir a novelas antigas e escutar músicas de Roberto Carlos. “Eu tenho tanto para lhe falar, mas com palavras não sei dizer…”, canta, quando perguntado sobre as músicas de sua preferência. Eles citam que também cuidam da limpeza da casa, varrem o chão e arrumam o banheiro. Coisas simples do cotidiano, que somente quem sabe o valor da liberdade consegue dimensionar a importância que têm.

Casa é lugar de aconchego
Quando criança, Rosélia Martins morava em uma fazenda nas proximidades do HETB. Morria de medo de cruzar com algum interno pelas estradas, fugindo com seus uniformes azuis. Jamais poderia imaginar que, anos depois, por necessidade financeira, iria se ver trabalhando como cuidadora em uma residência terapêutica com aqueles mesmos egressos do manicômio.
Hoje, não se acanha em dizer: “Fiquei apaixonada”. Há mais de 10 anos como cuidadora, ela ressalta que aprendeu com os moradores das RT a ter um novo olhar sobre a vida e a saúde mental. “A gente pensa que está aqui ensinando alguma coisa, mas acaba aprendendo muito também”, reflete.
No dia a dia, passou a partilhar um pouco de sua memória e convivência familiar com aquelas pessoas de quem ajuda a cuidar: seus filhos e netos também frequentam a casa e construíram laços afetivos com os moradores. “Costumo dizer que eles são a nossa segunda família, porque passo mais tempo aqui do que na minha casa”, relata. “O que mudou? Sempre faço essa pergunta. Eles tomam medicamento ainda? Tomam. O que mudou foi o jeito de tratá-los, o carinho, o amor”, pondera.

Seu Paulo Pinheiro, 88 anos, é o morador de mais idade da residência. É um senhor de voz tranquila, bem-humorado, com quem também conversamos durante o almoço. Ele conta que nasceu no distrito de Aparecida, em Sapucaia, no interior do estado do Rio de Janeiro, e viveu parte da adolescência em São José do Vale do Rio Preto. Desse período, tem poucas lembranças: “Não conheci nem pai nem mãe”.
Paulo era trabalhador rural nas lavouras da região. Pobre, sem família, passou a viver em situação de rua e fazer uso de álcool, até que bebeu além da conta e foi levado preso pelo delegado da região. Da cadeia, foi direto para o hospício, de onde não mais saiu. No HETB, passou mais de três décadas de vida.
Trabalhava para a família de um funcionário sem receber salário, em condições análogas à escravidão. “Existiam relações perversas no hospício, de exploração econômica e da força de trabalho dos antigos internos”, explica Érica. Hoje, ele vive uma vida pacata na residência terapêutica, é querido por todos por seu jeito amável. Depois de almoçar todo o prato preparado pelas cuidadoras, Rosélia pergunta: “Tem espaço para a sobremesa, Seu Paulo?” Ele responde: “Claro que tem”.


Resgatar a vida
Dançar, para Carla Aparecida da Silva, é caminhar nas nuvens. Ela é frequentadora assídua das oficinas de dança, capoeira e teatro no Centro de Convivência. “A dança me leva a muitos lugares”, conta a jovem, que é paciente do Caps do Carmo.
A proposta da oficina de dança, segundo a professora Arianna Santos, é permitir que os participantes revivam experiências musicais perdidas em sua memória, ao mesmo tempo em que são levados pelo prazer. “A dança precisa ser prazerosa, um momento para se curtir. Muitos dos moradores [de SRT] passam mais tempo dentro de casa, por isso a dança ajuda no desenvolvimento motor e na comunicação”, avalia.

Um dos maiores orgulhos da equipe do Centro de Convivência é o bloco carnavalesco Enlouquece Carmo, com a participação dos usuários da saúde mental, que abre a festividade na cidade. A responsável por organizar o desfile e confeccionar as fantasias é Ângela Câmara, educadora de arte e uma das oficineiras mais antigas do projeto. Segundo ela, as oficinas permitem que os participantes explorem a criatividade e desenvolvam habilidades manuais, além de trabalhar a autoestima. “Muitos chegavam tímidos, não se comunicavam, e hoje são muito falantes. Eles expressam suas emoções e se sentem acolhidos por nós”, relata.

Ela também organiza o Clube do Lazer, que promove viagens com os moradores das RT a pontos turísticos do estado, como o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar, e passeios nas praias. Além do Benefício de Prestação Continuada (BPC), os antigos internos do manicômio recebem um auxílio do Ministério da Saúde, por meio do Programa de Volta para Casa (PVC), destinado a egressos de longa permanência em hospitais psiquiátricos. Eles usam uma pequena parte desses recursos para contribuir, de forma solidária, com um fundo que financia os passeios e permite a eles aproveitar o melhor da vida.
Um dos momentos mais emocionantes para Ângela foi quando muitos deles conheceram o mar pela primeira vez, já bem idosos. Brincavam na areia e experimentavam a água salgada. “Essas experiências ajudam a fortalecer e a construir laços sociais”, constata. A manutenção do Centro de Convivência é feita de modo partilhado: a prefeitura do Carmo oferece a infraestrutura e a Associação de Usuários, Familiares e Amigos dos Serviços de Saúde Mental do Carmo (AUFASSAMC) custeia os oficineiros.

Para a coordenadora do Centro de Convivência, Catarina Guiza, práticas que estimulam a sensibilidade por meio da arte potencializam a autonomia, o afeto e a dignidade. “Para essas pessoas, que historicamente tiveram suas vozes silenciadas, a arte se torna um canal de escuta, de reconstrução de identidade e de pertencimento. Em contextos como as residências terapêuticas, ela também ajuda a tecer laços com a comunidade e a reinventar o cotidiano, trazendo leveza, criatividade e sentido para a vida”, pondera.
Segundo ela, a saída dos muros do manicômio exigiu de toda a rede de cuidado e dos profissionais de saúde uma escuta mais sensível e um comprometimento com os desejos e o tempo de cada um. “Ver essas pessoas retomando projetos de vida, participando da cidade e descobrindo novas formas de existir é a prova viva de que o cuidado em liberdade é possível, necessário e profundamente humano”, destaca.

Pelo fim das práticas manicomiais
É hora de Roberto Carlos subir ao palco. Luz, maquiagem e som preparados. A plateia, lotada, em expectativa. Mas o Rei não vem só: ele é acompanhado por Alcione, Rita Lee, Erasmo, Reginaldo Rossi e um trio de instrumentistas com guitarras cintilantes. “Está entrando no ar a sua, a minha, a nossa Rádio Liberdade”, anuncia o locutor.
Assim começa a apresentação teatral que lota o auditório do Centro Cultural do Carmo, na manhã de quarta-feira. “Eu sou terrível”, canta o Rei. “Você não sabe de onde eu venho/ O que eu sou, e o que tenho”, dubla Luiz Carlos, encarnando Roberto. Fabiana é Alcione; Bira, Reginaldo Rossi; Paulo “Peixe”, Alexandre Pires; Carla, com uma peruca, se transforma em Rita Lee; Domingos reclama que não lhe deram a guitarra de papelão, com pisca-pisca. Todos, moradores de residências terapêuticas e pacientes da rede de atenção psicossocial. “Quem tem imaginação, é só deixá-la solta”, diz a oficineira Ângela, enquanto fotografa os artistas.
Experiências como essa, que envolvem arte e cultura, são formas de “cuidar da vida, despatologizar as vivências sofridas e transformar a convivência em acolhimento e afeto”, nas palavras de Érica Victório. Ela afirma que o Caps também deveria ser espaço de interação, mas acaba se tornando o lugar do tratamento em saúde mental. “É lá que se busca a consulta médica, o atendimento do psicólogo e dos especialistas. Lá tem o prontuário e o diagnóstico”, reflete.




Para a psicóloga, o Centro de Convivência se afirma como um lugar para promoção de vida e saúde. “Lá a gente não fala de diagnóstico, doença e medicamento. Não tem prontuário. As pessoas vão para conviver”, ressalta. “Saúde é arte, cultura e convivência”.
Segundo ela, ao longo dos mais de 20 anos da experiência de Reforma Psiquiátrica no município, a comunidade carmense percebeu que era possível conviver com o diferente e com a loucura. Ela cita o exemplo de comerciantes e taxistas que contam que os moradores das RT são excelentes pagadores e movimentam o comércio local. “No início da reforma, ninguém queria alugar imóvel ‘para maluco’. Hoje, as pessoas vêm oferecer suas casas. O acolhimento mudou a economia da cidade: são vários empregados direta e indiretamente pelo projeto”.
“Quando a gente começa a desconstruir o medo e a construir uma nova convivência, o que percebo são relações de afeto”, destaca. Érica ressalta que os impactos positivos que a Reforma Psiquiátrica teve em um município de pequeno porte, como Carmo, podem inspirar outras realidades do SUS, no país. “Carmo construiu uma rede tão potente que a gente consegue ser referência para alguns lugares, mas tenho certeza de que cada município constrói a sua própria rede, com as suas relações no território e as próprias vivências culturais”, pontua.
Ela reforça que a desinstitucionalização é um processo contínuo, que não para enquanto existirem pessoas egressas de hospitais psiquiátricos. “É preciso garantir que a autonomia prevaleça. A gente não pode deixar que a residência vire um ‘mini manicômio’. O manicômio não está na estrutura física, está nas práticas manicomiais”, adverte.
Essa é a missão que Érica e sua equipe têm diante de si, para que o passado sirva de lição para o presente. “Que as práticas manicomiais não se repitam na cidade e que a gente possa realmente sustentar que eles são livres. É legítimo que eles possam ter a oportunidade de reconstruir a sua história, que foi sequestrada pelo hospício”, considera.A apresentação teatral se encerra, sob aplausos. “O pessoal do Centro de Convivência está de parabéns”, diz Carla, ao microfone. Os versos da canção “Eu sou terrível”, de Roberto Carlos, entre guitarras e delírios, parecem fazer ainda mais sentido: “Não é preciso nem avião, Eu voo mesmo aqui no chão”. Quando se constrói relações de cuidado baseadas no respeito e na dignidade, é possível voar, no chão, com liberdade.
Entenda a Rede de Atenção Psicossocial (Raps)
- Raps: A Rede de Atenção Psicossocial é formada por um conjunto integrado e articulado de diferentes pontos que buscam garantir a integralidade do cuidado a pessoas com sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
- Centro de Atenção Psicossocial (Caps): São serviços estratégicos, abertos à comunidade, constituídos por equipes multidisciplinares que realizam atendimento às necessidades de saúde mental das pessoas, com base em projetos terapêuticos singulares.
- Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT): São moradias inseridas na comunidade, destinadas a acolher e cuidar das pessoas em sofrimento psíquico egressas de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares.
- Programa de Volta para Casa (PVC): é uma estratégia de desinstitucionalização e inclusão social, criada pela Lei 10.708 de 2003, destinada às pessoas com sofrimento psíquico, egressas de internação de longa permanência em hospitais psiquiátricos e de custódia.
Fonte: Ministério da Saúde
Residências terapêuticas não são comunidades terapêuticas: Entenda a diferença
Residências terapêuticas
- Moradias inseridas na comunidade destinadas a pessoas egressas de internações psiquiátricas de longa duração, sem vínculos sociais e familiares
- Integradas ao SUS
Comunidades terapêuticas
- Instituições que revivem a ideia de isolamento e segregação social para o tratamento do uso de álcool e outras drogas
- Geralmente mantidas por igrejas e associações religiosas
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