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Seu Cideir Pereira, 74 anos, mostra as esculturas de madeira que esculpiu com canivete. Cestos feitos com papel de jornal, tapetes trançados no tear, passarinhos entalhados à mão. Da cabeça do artista, brota a vida. “A arte é melhor que um remédio para a mente da pessoa”, diz.

Chapéu panamá, camisa vermelha, ele é um senhor negro, de voz mansa, que lembra um griot, contador de histórias africanas. A princípio tímido, vai abrindo aos poucos o baú de lembranças, revelando fragmentos de memórias dos 30 anos que passou no Hospital Estadual Teixeira Brandão (HETB), manicômio fundado na cidade do Carmo (RJ), em 1947, e fechado com a reforma psiquiátrica em 2005.

“Eles falavam que eu era doido”, conta. Das tentativas de fuga, ficaram as lembranças do famigerado cubículo, espécie de solitária em que eram isolados os pacientes tidos como perigosos ou rebeldes. “Quando fugia, eles prendiam a gente no cubículo. Um espaço apertado, de 2 por 2 m. Rato roía até o pé da gente”, recorda.

Nascido na cidade de Cambuci (RJ), Seu Cideir conta que trabalhou na juventude com touradas. “Esse negócio de tourada dá muita bebida. Bebi muito e me internaram na Colônia”, relata. Foram 30 anos como interno do hospício, trabalhando na cozinha, sem perspectiva de futuro. “Davam remédio forte pra gente. A pessoa que chegava muito agitada levava eletrochoque”, afirma.

A história de Seu Cideir mostra outro caminho após a internação de longa permanência em um hospital psiquiátrico: o de quem conseguiu resgatar os laços familiares e não precisou ser acolhido em uma residência terapêutica. O que o motivou foi o amor pelo filho que ele havia tido há pouco tempo. “Quando saí de lá, aluguei uma casa e tirei meu filho do abrigo. Ele tinha 6 aninhos. Botei ele na escola e fui trabalhar. Tive mais filhos por aí, mas desse eu consegui cuidar”, orgulha-se. 

Cleiton, o filho, agora tem 30 anos e trabalha na cidade, com instalação de placa solar. Após deixar o manicômio, Seu Cideir foi trabalhar com marcenaria. “Sou artesão. Sei fazer artesanato, escultura em madeira”, cita. “Ele ensina todo mundo aqui”, alguém diz, enquanto conversamos com o artista durante uma atividade com artesanato no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do Carmo.A trajetória de Seu Cideir não é a da maioria dos egressos do HETB. Quando a unidade foi fechada, em 2005, pouco mais de 90 pacientes foram reintegrados às famílias. Mais de 150 tiveram que ser inseridos nos serviços de residência terapêutica (SRT), mostrados na matéria da página 10. Sem vínculos familiares ou sociais, encontraram nessas moradias em liberdade uma alternativa para recomeçar a vida além do manicômio.

“Ainda quero fazer muita coisa bonita”, declara Seu Cideir Pereira, artesão, que viveu 30 anos no HETB e retomou a vida em liberdade após o fechamento do manicômio — Foto: Eduardo de Oliveira.

Manicômio em ruínas

A Reforma Psiquiátrica brasileira foi resultado de uma longa luta antimanicomial, protagonizada por profissionais e usuários da saúde mental, que buscou o fechamento gradual de manicômios e hospícios que proliferavam pelo país. A criação da Lei nº 10.216 de 2001 foi o marco legal que permitiu uma mudança paradigmática no tratamento de transtornos mentais: do modelo manicomial para as redes de atenção psicossocial integradas ao SUS.

Contudo, é preciso resgatar as memórias para que a história não se repita. Em nossa viagem ao Carmo, Radis visitou as ruínas do antigo Hospital Estadual Teixeira Brandão (HETB), onde hoje se encontra o Acervo do Livramento, com objetos e documentos que narram a história do hospital psiquiátrico do Carmo.

Nos prontuários antigos, o diagnóstico era como uma sentença: esquizofrenia. Os boletins médicos descreviam pacientes que ouviam vozes, relatavam experiências místicas, alucinavam. Outros foram internados pelo uso de bebida alcóolica. “Era necessário limpar a cidade de toda sorte de insanos, vagabundos, viciados”, escreve Érica Victório da Rocha, psicóloga e atual diretora de saúde mental do Carmo, em sua dissertação de mestrado no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Era preciso livrar as cidades da presença indesejada dos loucos.

Assim nasceram as colônias agrícolas, instaladas em territórios rurais, com a finalidade de integrar o tratamento psiquiátrico ao trabalho — ideário que dominou o meio científico brasileiro na primeira metade do século 20 e levou à criação de diversas colônias pelo país. A Colônia de Psicopatas do Carmo foi uma delas. Por trás desse projeto, estava a aspiração de segregação social e isolamento.

O hospício do Carmo surge na Fazenda do Livramento, às margens do Rio Paquequer, a cerca de 8 quilômetros do município. A enfermaria nasce de um antigo estábulo de cavalaria. Durante a ditadura militar, o hospital recebe investimento, é ampliado e chega a alcançar a marca de 400 internos. 

Com seus uniformes azuis e cabeças raspadas, os internos — todos do sexo masculino — trabalhavam nas lavouras, na pecuária, na olaria e na carpintaria. O tratamento envolvia injeções de “sossega leão”, eletrochoque e os cubículos, como castigo à rebeldia ou agitação. Entre os pacientes, encontravam-se casos de psicose, esquizofrenia e transtornos mentais decorrentes do uso de álcool — “grande parte internada devido à situação de vulnerabilidade social, perda dos vínculos sociais e familiares”, descreve Érica na dissertação.

Movimento antimanicomial

“Não havia a menor condição de habitabilidade, todo o local estava infestado de sujeira, baratas, não havia nenhum arejamento e os pacientes se amontoavam, dormindo no cimento”, narra o Inquérito Civil do Ministério Público (MP), aberto após a promulgação da Lei 10.216 e da primeira visita técnica da Secretaria Estadual de Saúde ao HETB, em 2001, para iniciar a implementação da Reforma Psiquiátrica.

Denúncias colhidas pelo MP descreviam pacientes encontrados em cárcere privado, desaparecimentos, uso da mão de obra dos internos para servir aos funcionários, ausência de projetos terapêuticos individuais e transferências como forma de punição. O MP constatou que 64,3% dos pacientes (180) estavam internados há mais de 10 anos. “A quase totalidade permaneceu no Teixeira Brandão não por questões clínicas, mas por carência familiar, social e econômica, de tal sorte que a instituição hoje é mais uma área de asilamento social que hospitalar”, diz outro trecho.

“A experiência de Carmo traz a confirmação de como é possível transformar a vida das pessoas”, afirma Érica Victório, coordenadora de saúde mental do município — Foto: Eduardo de Oliveira

Após o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado por estado e município, começa o processo de fechamento do HETB e surge a questão: para onde iria a maioria dos internos que não tinham nenhum vínculo familiar e social nem condições de subsistência? 

A recomendação do MP era o encaminhamento desses pacientes para serviços de residência terapêutica (SRT). No início da transição, surge a ideia de construir na própria fazenda — ou em áreas desocupadas da região — um “condomínio de malucos”, que repetiria a lógica de segregação e isolamento. A luta antimanicomial persiste, para que fosse garantida aos internos o retorno à cidadania. “Naquele momento, o importante era tirar a documentação dessas pessoas, tentar buscar referências familiares, construir a nossa rede para poder acolhê-las”, conta Érica à Radis.

Outro projeto que surge nessa época é a ideia de construir uma comunidade terapêutica, por iniciativa de um pastor evangélico, para abrigar pessoas em recuperação de dependência química. O argumento era utilizar a área do manicômio para “internação de criminosos e adolescentes infratores” para tratamento do uso de álcool e drogas. O MP recusa e o TAC estabelece que a área física do HETB jamais poderia ser utilizada para implantação de qualquer dispositivo de internação ou asilamento. Manicômio, nunca mais.

Memórias e futuro

Toda essa história é narrada por Érica em sua dissertação de mestrado e ecoa na memória dos egressos do hospital psiquiátrico, a maioria deles moradores dos SRT da cidade. Graças à luta dos técnicos e trabalhadores do SUS, a Reforma Psiquiátrica no Carmo teve êxito: o Caps foi criado em 2001 e o modelo de residências, inseridas na comunidade, com autonomia e liberdade, prevaleceu.

“A gente do campo da atenção psicossocial traz um lema: resistir. É o SUS que nos dá a liberdade e a possibilidade de construir o cuidado, a partir de nossas vivências e experiências. É uma construção diária”, relata Érica. “O maior desafio do processo de desinstitucionalização é resgatar o sujeito de sua morte em vida, porque não há expressão singular, não há história de vida para contar, não há prato preferido, projeto de viagem, vontade de rever amigos e família”, relatou ela na dissertação.

São histórias de pessoas que tiveram uma parte significativa de suas vidas apagadas pelo hospício. É o caso de Patrício Petrônio, que encontramos no Caps. Nascido no Rio de Janeiro, ele se viu recluso, ainda criança, na antiga Funabem [Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor]. Ali teve a adolescência perdida, silenciada. “Com 18 anos fui para a Colônia, com 30 anos fui para a residência”. 

É um dos egressos mais jovens do hospital psiquiátrico. Atualmente morador de uma residência terapêutica, conta que as cuidadoras são para ele como “mães”. Porém, ele se orgulha de poder circular, com autonomia, pela cidade e viver sua própria vida. “Sou autônomo, eu mesmo sei fazer as coisas”, conta. 

No Centro de Convivência e nas atividades terapêuticas do Caps, essas pessoas reencontram sua maneira de viver, resgatam habilidades e sonhos. Seu Cideir, ao mostrar algumas de suas esculturas, diz que deseja fazer uma “porção de coisas”. “Antes de morrer, ainda vou fazer bastante coisa bonita”, afirma. Quando perguntado por que escolheu a arte como ofício, ele não tem dúvidas em dizer: “Para espairecer a mente”.

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As pessoas reagiram a este conteúdo
Comentários para: Ruínas da loucura
  • 14 de julho de 2025

    Não poderia deixar de pontuar a competência e sensibilidade de Luis Felipe na escrita desta matéria e sua disponibilidade vivenciar a experiência de Carmo num intensa imersão nos espaços de cuidado e na cidade, captando todo o sentido e sinergia dos espaços. Gratidão por todo trabalho e encantamento.

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