Motivada pela pauta dos 35 anos do SUS, que conduz a edição 279, Radis conversou com a enfermeira, professora associada do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e pesquisadora do Laboratório de Pesquisas de Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis/Uerj), Roseni Pinheiro, referência nos estudos e discussões práticas sobre o princípio da integralidade no SUS. Confira a seguir algumas de suas reflexões, elencadas em tópicos a partir de temas abordados pela reportagem.
Integralidade nos 35 anos do SUS
As perguntas que nós fizemos sobre integralidade nas últimas décadas evoluíram. É importante ressaltar que nenhum princípio foi integralmente cumprido, até porque se assim fosse não precisaríamos mais do SUS. Quando fazemos esse tipo de análise, a gente perde um pouco a noção e cria uma coisa muito comum na política e no planejamento, que é a idealização. Os modelos das políticas nada mais são do que modelos ideais. Só que a gente sabe que os modelos ideais precisam de condições também ideais para serem materializados. E sabemos também que na prática, dificilmente tudo será realizado.
Então, olhando para a história, se a gente não adotar um olhar mais compreensivo, vamos jogar a criança com a água do banho fora. Vai dizer que nada foi feito. E a integralidade, como princípio, é extremamente complexa. Diria, inclusive, que a complexidade é a cara do SUS. Se a gente analisa tudo muito separado [os princípios individualmente], a gente cria uma divisão, ou seja, a gente faz uma crítica do jeito que o criticado é: da dicotomia, da dualidade, do apartamento. Porque o princípio da integralidade reclama a efetivação de outros princípios, como o da universalidade, da equidade, da participação. E falo da integralidade no cotidiano, porque estou me referindo ao princípio como prática, não como modelo idealizado de fazer uma política, mas como a integralidade se materializa no cotidiano. E ela não se materializa completamente todo o tempo, o tempo todo.
No entanto, temos evidências de sua concretude na formulação e na efetivação de um conjunto de políticas específicas de natureza orgânica capazes de assegurar o acesso ao direito à saúde como um direito humano.
Integralidade no cotidiano
A minha área, planejamento e gestão, é marcada pelo pragmatismo, que é o “aqui e agora”, e pelo caráter de intervenção, ou seja, é preciso responder à população. E como ter planejamento e organização sem escutar a sociedade, sem participação? O professor Gastão Wagner [médico sanitarista, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e defensor do SUS] usa sempre a seguinte máxima: “Saúde não é mercadoria”. E sem democracia, sem participação política, não tem nenhum princípio que se sustente dentro do arcabouço jurídico da política de Estado brasileiro. Então, não é um modo de gerir, de governar, mas é uma política de Estado e deve ser tratado como tal.
Podem me chamar otimista, mas eu vou continuar assim, porque vejo o SUS em todo o lugar que eu vou. Em tudo que é atendimento da minha família, por exemplo. Quando tem um medicamento, quando tem acesso a um transplante… então, dizer que não tem integralidade ou que é uma abstração? Penso que alguns colegas, ao dizerem isso, estão no mínimo desavisados ou têm outros interesses que não lhes permite olhar para as experiências. A Fiocruz mesmo, tem uma amostra do SUS gigantesca. Não tem integralidade ali? A gente não pode ser incoerente com a história. Quando alguém reclama do SUS, digo que se tem problemas é porque o SUS faltou ali. Pois quando os princípios não são praticados, não temos SUS, mas se eles são praticados, temos um SUS forte.
E aí vêm as disputas, porque tem muito a ver com a nossa sociedade capitalista, da concorrência, do isolamento, e aí a ideia de você ter outros elementos estruturantes do Estado brasileiro, como o corporativismo, como a crise de financiamento, porque também não dá para fazer a integralidade ou qualquer princípio do SUS com mágica. Não tem mágica. Agora, não se pode negar que a gente tem as bases. A Reforma Sanitária Brasileira lutou para isso, a gente conseguiu aprovar uma Constituinte, a Constituição que está aí.
Defesa da integralidade
Alguns colegas me perguntam: “Você ainda está com essa de integralidade?” Eu respondo: “Vem cá, a Constituição acabou?” E eu entendo muito bem que essas crises de compreensão, que eu diria que parecem ser uma incompreensão compulsiva, é um meio de defesa para se justificar outras iniciativas. Parece-me um equívoco de pragmatismo. Mas a gente não pode ignorar a história, o processo, as experiências, as vivências. Quer prova maior do que a pandemia? Você acha que a gente superou a pandemia sem integralidade? O jeito que alcançaram as vacinas? Não existe integralidade ali? Eu não entendo. Penso que isso é um recurso teórico muito deletério até para a manutenção da nossa luta em defesa da justiça social e do direito à saúde com direito humano.
Integralidade na formação profissional
O SUS é um sistema que tem capacidade de ordenar sua própria gestão dos recursos humanos. Nos anos 2000, a primeira grande inovação na integralidade implementada pelo governo Lula, para mim, foi a criação da Secretaria de Gestão e de Educação do Trabalho. Compreende? Existe aí uma aliança de barreiras e obstáculos históricos para a institucionalidade do SUS. E isso mexe numa estrutura muito importante: a formação. A educação é tomada como um direito e dever do Estado. Isso tem a ver com integralidade.
Portanto, de lá para cá, se temos as residências integradas até hoje, se temos a residência multiprofissional, te pergunto, isso não é uma ação de integralidade? Então, qual é a nossa capacidade reflexiva de entender que essas transformações todas vêm num fluxo histórico de lutas, em que a integração das instituições é absolutamente basilar? Não tem problema? Tem vários. Como todos nós temos. Mas, veja, a lei do SUS (8.080/1990) já traz uma inovação que é a política de medicamentos, assistência integral ao medicamento, isso vem desde a década de 1990 até hoje. E por aí vai.
Papel da integralidade na estruturação do SUS
O papel do princípio da integralidade é constitucional das diretrizes da atenção e do cuidado em saúde. Eu penso que é um papel muito efetivo e concreto: a gestão dos recursos humanos, a articulação dos níveis de atenção, a regionalização, a garantia dos direitos. E assume o direito à saúde como um vetor constitutivo do sistema. E não é só de ter a saúde, é de ser na saúde. Não é só ter direito ao procedimento, mas ser. Como mulher, como gestante. Logo, as questões de gênero, etnia, raça, elas são incorporadas. É entender que a integralidade também é base desse processo, porque o conhecimento é fragmentado. Ele é dicotomizante. E às vezes a gente cai nessa cilada.
Como ter planejamento e organização sem escutar a sociedade, sem participação?
É por isso que o campo da saúde coletiva se ergue de uma atuação gigante, porque ele já, de alguma maneira, supera a vertente de saúde pública, introduz as humanidades como conhecimento para alcançar outros fronts. E alcançamos. A nossa questão concreta — e aí eu volto com a ideia da democracia — é o fato de ela ser jovem e debilitada, porque dessa forma não tem participação. O princípio não se efetiva na sua totalidade. E aí na sua totalidade que eu chamo, repito, não é tudo o tempo todo, mas na totalidade daquele instante, daquele momento que a gente está ali. E aí o cuidado acaba sendo a unidade de valor. Isso é integralidade da atenção e do cuidado.
Democracia não é só representação, é participação social. Por muito tempo, essa participação foi reduzida à participação representativa, ou seja, dos conselhos. Não era para ser assim, mas tínhamos que começar com uma institucionalidade, com um arcabouço jurídico-normativo. E por aí começamos e eu considero um acerto, porque era como se colocássemos na letra da lei para fazer valer. E até hoje a [lei] 8.142 está valendo. Tem que ter plano municipal de saúde, tem que ser aprovado nas reuniões de Conselho. Daí, chegar e dizer que não existe integralidade, eu acho pesado. Não é que não exista, a gente tem dificuldades e obstáculos muito concretos.
Integralidade e práticas de saúde
Falando sobre as práticas de saúde, que é a minha área, elas são construções sociais. É um entendimento humano, não dá para fazer sem o ser humano. Porque na medida que entra nos valores capitalistas, de concorrência e produtividade a todo o custo, perde-se a dimensão humana e a relevância do que e para que ela serve. A gente fala em relevância pública, mas relevância pública para quem? Para os médicos? Para os gestores? Para os cientistas? Penso que tem que estar voltado à população, para além do discurso, porque a ação política necessariamente é feita entre discurso e prática. Se é “só discurso”, tem alguma coisa errada.
Eu entendo que as práticas são construções sociais e, no caso da saúde, da integralidade, requerem diálogos cotidianos fundados em interações democráticas que quando reconhecidas pelos atores e atrizes do SUS, que são gestores, trabalhadores, usuários, ganham visibilidade, porque geram sentimento de pertencimento e de responsabilidade. Essa responsabilidade é pública, coletiva e individual. Se a gente abre mão disso, a gente está abrindo mão da nossa possibilidade de emancipação, de decisão, de conquista, de humanidade.
Sem participação, sem democracia, não tem SUS, não tem princípio, não tem saúde como direito humano
Transversalidade entre os princípios do SUS
Existe uma dependência cíclica entre os princípios do SUS. Se não houver uma interação entre os atores, nenhum outro princípio vai conseguir se sustentar. Se a gente for pensar agora, a quantidade de identidades que foram criadas e são objeto de luta, aí cria-se um manto de identitarismo que acaba quase como um Estado hobbesiano, de todos contra todos. O que vai valer mais? O cuidado de uma mulher negra? De uma mulher negra, grávida que sofre de saúde mental e tem anemia falciforme? Qual é a política que primeiro vai atender essa mulher? Se não for uma política que tenha visão de integralidade, não vai funcionar. Porque aí vai chegar a política de anemia falciforme para atender um pedaço, aí vai chegar outra para poder atender a questão de gênero, mais outra… não é exatamente dessa maneira que se articula.
Três dimensões da integralidade
Em nossa produção teórica, a gente tem três dimensões para analisar o princípio da integralidade. Uma é a dimensão da gestão, da organização, não só do serviço como do sistema. Uma segunda são os conhecimentos e práticas dos trabalhadores e do trabalho em equipe, não individualmente. E terceira são os espaços públicos e a participação. Os espaços públicos não se reduzem só aos conselhos, podem ser fóruns, conferências etc. Eu, por exemplo, analiso o próprio espaço da consulta como um espaço público. Essas três dimensões permitem que a gente construa referenciais analíticos que possibilitem estreitar o legado da saúde coletiva de natureza transdisciplinar, porque ultrapassa as disciplinas.
A fragmentação dos princípios no SUS
É um desafio permanente. Acho que isso não vai acabar, porque tem a ver com a própria sociedade moderna. A produção de conhecimento é fragmentada, mas o fragmento de todo não é ruim. O fragmento pode ser uma fonte inesgotável para pensarmos universos mais ampliados. O problema é a fragmentação, não é o fragmento. É que nem especialidade. Especialidade não é o problema, o especialismo que é. Então, toda vez que eu tento delimitar um objeto, eu já estou excluindo. Agora, ao fazer uma delimitação para interpretar, não precisa ser uma interpretação que não seja compreensiva, que seja indiferente ao que está acontecendo.
Dificuldades crônicas
A gente tem problemas estruturais e estruturantes muito graves no funcionamento do SUS: o financiamento; o corporativismo; a desvalorização do trabalho em saúde; a inexistência da carreira do SUS; a cultura política patrimonialista, clientelista e tutorial de governos autoritários; enfim, todos os obstáculos já enfrentados desde sempre e que continuaremos a enfrentar. Alguém imaginava que a gente ia voltar para o século 19 em pleno século 21? [em referência ao modelo de gestão adotado na pandemia]. Nada está dado, nada está garantido. E não tem como dizer que não teremos outra pandemia. O que a gente precisa é aprender com as lições. E fazer o dever de casa.
Humanização no cuidado
Para não desumanizar, a gente tem que parar para pensar. Só que na nossa área, de políticas e implementação, a gente não tem tempo para parar. Qual é a minha sugestão? Vamos revezar? Vamos incluir mais gente? Enquanto a gente está pensando, o outro já está articulando com o fazer e o outro está articulando com o pensar. O que não dá é para o tempo todo uma única pessoa fazer isso.
Eu fico muito triste, porque parece que integralidade virou moda. Como assim, moda? A gente tem um monte de registro, de sistematizações que apontam para evidências incontornáveis dos princípios do SUS que se materializam. Tem problemas? Tem, repito, e a gente tem que identificá-los rápido. Agora, isso não quer dizer que as outras coisas não existem. É preciso não idealizar o SUS, mas praticá-lo humanamente.
Integralidade e democracia
Entendo que a democracia é a estratégia política mais apropriada para a consolidação dos princípios do SUS. E penso que a integralidade tem o cuidado como sua unidade de valor que é uma ação política por definição. E essa ação política engendra formas de refletir processos de tomada de decisão e vai orientar a gente sobre quais são as melhores evidências e informações para podermos avançar ou até recuar na medida que a gente não alcançou os objetivos inicialmente propostos. Mas sem participação, sem democracia, não tem SUS, não tem princípio, não tem saúde como direito humano. Essa é a compreensão que eu tenho.



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