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Da luta pelo SUS aos sonhos da ciência. Do enfrentamento ao racismo ao acolhimento às pessoas em situação de rua. Dos impactos da pandemia de covid-19 às pesquisas sobre as origens das doenças. Ao longo dos 40 anos do Programa Radis e dos 20 anos da revista, muitos nomes da ciência, das artes, da saúde, lideranças sociais e outras personalidades já foram entrevistados pelos nossos repórteres sobre diversos temas, sempre com a preocupação em trazer para o debate público questões de saúde e práticas sociais relevantes para a sociedade brasileira. São falas memoráveis que mostram os assuntos relevantes para cada época e contexto — e algumas delas atravessaram o tempo e, ainda hoje, são convites instigantes à reflexão.


“O SUS faz um trabalho maravilhoso no Brasil e, infelizmente, o que fica são só os exemplos das situações em que ele não funciona ou funciona mal.”

Drauzio Varella

“O SUS faz um trabalho maravilhoso no Brasil e, infelizmente, o que fica são só os exemplos das situações em que ele não funciona ou funciona mal.”

Um entusiasta do Sistema Único de Saúde (SUS), que considera “a maior revolução na história da medicina brasileira”, o médico oncologista, professor e escritor Drauzio Varella destacou, na Radis 207 (fevereiro de 2019), que “nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou tanto”: construir um sistema público e gratuito de saúde com tamanha abrangência. “Se você retirar o SUS, é a barbárie. O que vai acontecer com essa legião de pessoas? Não tem alternativa: precisamos organizar o SUS para atender essas pessoas com mais eficiência, interferir com a medicina preventiva, dar o atendimento com a atenção básica à saúde”, constatou em entrevista que foi capa da edição.


Padre Júlio Lancelloti

“Nós estamos vivendo um massacre. E cada um, à sua maneira e como pode, tem que tentar resistir.”

Sempre ao lado das pessoas em situação de vulnerabilidade, Padre Júlio Lancellotti transformou os seus mais de 35 anos de sacerdócio em um constante exercício de humanidade. Durante a pandemia de covid-19, o vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco na igreja de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca (Zona Leste da capital), intensificou as ações de acolhimento e cuidado, principalmente com a população em situação de rua, pois foi um contexto em que essas pessoas ficaram ainda mais esquecidas. “É uma relação de humanização. O povo da rua não vai ter saúde, por exemplo, se não tiver onde morar, se não tiver um lugar onde se sinta acolhido, se não tiver alimentação e, principalmente, se não tiver autonomia”, afirmou na entrevista publicada na Radis 230 (novembro de 2021).

“Nós estamos vivendo um massacre. E cada um, à sua maneira e como pode, tem que tentar resistir.”

“A vacina é a única e perfeita solução de controle de uma epidemia do porte da covid-19.”

Margareth Dalcomo

“A vacina é a única e perfeita solução de controle de uma epidemia do porte da covid-19.”

A médica pneumologista Margareth Dalcolmo acostumou-se com as câmeras, em entrevistas quase diárias, desde que começou a pandemia de covid-19. Em uma empreitada a favor da ciência e contra o negacionismo, no que ela definiu como uma briga “desigual de Davi contra Golias”, a cientista da Fiocruz — pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) — apontou que a pandemia foi um “divisor de águas” em nossas vidas: “Acho que a vida é antes e depois de uma epidemia desse porte”, declarou, em entrevista publicada em fevereiro de 2021 (Radis 221).


Miguel Nicolelis

“A humanidade hoje é tão interconectada que, quando se fala em combater uma pandemia, só a ciência não é suficiente. A comunicação é um componente vital nessa guerra.”

Referência mundial no campo da neurociência, Miguel Nicolelis tornou-se um dos maiores críticos da forma como o Brasil lidou e continua lidando com a pandemia: “Tivemos uma perda de vidas muito acima do que seria esperado em um país com um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo. O SUS salvou o Brasil de uma tragédia maior”, afirmou, em conversa publicada em setembro de 2021 (Radis 228). O neurocientista criticou a maneira como os gestores brasileiros “se mostraram, na vasta maioria, extremamente incompetentes e mal capacitados para dialogar com cientistas” — e ressaltou que, quando a política abre mão da ciência, a sociedade como um todo sai perdendo.

“A humanidade hoje é tão interconectada que, quando se fala em combater uma pandemia, só a ciência não é suficiente. A comunicação é um componente vital nessa guerra.”

“O que vemos é uma expressão da desigualdade: no acesso e na qualidade dos serviços de saúde, que afeta sobretudo os setores mais vulneráveis, como as mulheres, os idosos, os afrodescendentes, as pessoas vivendo com HIV/aids, as crianças, as populações rurais, os indígenas.”

Michelle Bachelet

“O que vemos é uma expressão da desigualdade: no acesso e na qualidade dos serviços de saúde, que afeta sobretudo os setores mais vulneráveis, como as mulheres, os idosos, os afrodescendentes, as pessoas vivendo com HIV/aids, as crianças, as populações rurais, os indígenas.”

Em visita à Fiocruz durante o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão) em 2018, a ex-presidente do Chile e atualmente alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, conversou com a Radis sobre as desigualdades que persistem na América Latina (Radis 192, setembro de 2018). A falta de assistência à saúde materna — antes, durante e depois do parto, principalmente para as mulheres mais pobres e indígenas — foi apontada, por Bachelet, como uma das áreas que mais precisam de atenção.


Jurema Werneck

“O racismo é uma ideologia que afeta as relações de poder. As pessoas vítimas de racismo têm menos acesso a políticas públicas de qualidade, à educação, saúde, segurança, trabalho e emprego. Isso é capaz de afetar a saúde dessas pessoas, porque afeta a qualidade de vida.”

O racismo estrutural e seus inúmeros impactos, desde a dificuldade de acesso aos serviços públicos até o sofrimento psíquico, foi abordado pela médica, escritora e cofundadora da ONG Crioula, Jurema Werneck, atualmente diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, em conversa com a Radis publicada na edição 142 (julho de 2014). Em fala emblemática que destaca que o racismo “não é pouca coisa”, ela ressalta que o chamado “racismo estrutural” é “internalizado também nos mecanismos de condução de cada política pública” — o que “significa que as vítimas de racismo não vão ter acesso adequado a políticas de promoção, prevenção e assistência, estarão em uma condição inferior de acesso físico e de acesso à qualidade e à integralidade”.

“O racismo é uma ideologia que afeta as relações de poder. As pessoas vítimas de racismo têm menos acesso a políticas públicas de qualidade, à educação, saúde, segurança, trabalho e emprego. Isso é capaz de afetar a saúde dessas pessoas, porque afeta a qualidade de vida.”

“As desigualdades no Brasil têm cor. Basta olharmos para este momento presente. Estamos mergulhados numa grave crise sanitária e o impacto da pandemia na vida de homens e mulheres negras é infinitamente maior do que na vida das pessoas que não se declaram como negras.”

Itamar Vieira Júnior

“As desigualdades no Brasil têm cor. Basta olharmos para este momento presente. Estamos mergulhados numa grave crise sanitária e o impacto da pandemia na vida de homens e mulheres negras é infinitamente maior do que na vida das pessoas que não se declaram como negras.”

O autor do premiado romance Torto Arado, Itamar Vieira Júnior, encara a literatura como um poderoso instrumento de alteridade e empatia. Em entrevista à Radis (224), publicada em maio de 2021, ele fala sobre a luta contra o racismo e o tema da ancestralidade presentes em sua obra, assim como as dificuldades enfrentadas pelas comunidades tradicionais na garantia de seus territórios. O escritor nascido em Salvador — também geógrafo e servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) — conta que extraiu inspiração para as suas obras nas vivências concretas das comunidades quilombolas com quem teve contato: “Há muita história soterrada”.


Joênia Wapichana

“Demarcar terras é um dever do Estado com os povos indígenas, não é um favor. Não é simplesmente uma questão de políticas de governo, mas uma política de Estado e um dever constitucional.”

Primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, Joênia Wapichana concedeu entrevista à Radis (199) em abril de 2019. Ela foi a primeira mulher indígena a se formar em Direito no país pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Joênia criticou a transferência da regularização fundiária de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Segundo ela, “dizer que os indígenas devem ser integrados à sociedade não indígena para poder exercer seus direitos” e “achar que a demarcação de terras indígenas não é um direito” fere os preceitos constitucionais e “coloca em risco não somente a questão das terras, mas também a garantia dos direitos sociais”, incluindo a saúde.

“Demarcar terras é um dever do Estado com os povos indígenas, não é um favor. Não é simplesmente uma questão de políticas de governo, mas uma política de Estado e um dever constitucional.”

“Em um país continental como o nosso, com 200 milhões de habitantes, não se justifica não ter competência nacional em produtos estratégicos como vacinas (...). A população precisa ter garantia de que vai ter produtos essenciais para sua proteção.”

Akira Homma

“Em um país continental como o nosso, com 200 milhões de habitantes, não se justifica não ter competência nacional em produtos estratégicos como vacinas (…). A população precisa ter garantia de que vai ter produtos essenciais para sua proteção.”

Os olhos de Akira Homma brilham quando o assunto é vacina. Presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Akira conversou com a Radis sobre temas como a autossuficiência na produção de imunobiológicos, a soberania científica do país e o papel do Programa Nacional de Imunizações (PNI) na erradicação de doenças. “Países grandes como o Brasil têm que buscar competência científica e tecnológica para responder às demandas”. A entrevista — publicada na edição 167 (agosto de 2016) — traz o espírito de quem está há seis décadas trabalhando em prol da saúde pública e foi condecorado pela organização internacional Vaccination como uma das 50 pessoas mais influentes na indústria de vacinas no mundo.


Hésio Cordeiro

“Queríamos corrigir as desigualdades sociais, o que não seria feito somente por políticas econômicas e sociais mais justas, mas também por uma política de saúde que não privilegiasse o lucro e os serviços privados.”

Um dos idealizadores do SUS e mais ativos nomes do Movimento Sanitário Brasileiro, o sanitarista Hésio Cordeiro relembrou sua trajetória em defesa da saúde pública em entrevista publicada em fevereiro de 2011 (Radis 102). Falecido em 2020, ele foi um dos fundadores do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e presidiu o extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), entre 1985 e 1988. Em conversa com a Radis, ele afirmou que o maior legado da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, foi a conquista do acesso universal aos serviços de saúde como responsabilidade do Estado, mas lamentou que a seguridade social nunca foi implementada para valer. Também defendeu a renovação de algumas bandeiras da saúde, com ênfase na qualidade do cuidado e na saúde da família.

“Queríamos corrigir as desigualdades sociais, o que não seria feito somente por políticas econômicas e sociais mais justas, mas também por uma política de saúde que não privilegiasse o lucro e os serviços privados.”

“A Paleoparasitologia recebe contribuições de várias áreas, mas retribui com conhecimentos sobre a evolução das doenças e dos parasitas. É um mundo de possibilidades.”

Luiz Fernando Ferreira

“A Paleoparasitologia recebe contribuições de várias áreas, mas retribui com conhecimentos sobre a evolução das doenças e dos parasitas. É um mundo de possibilidades.”

Você já ouviu falar em Paleoparasitologia? É um ramo da ciência que estuda parasitas em material arqueológico, como fezes fossilizadas (os chamados cropólitos). Um dos fundadores desse campo dos saberes, vencedor do Prêmio Jabuti em 2012 com o livro Fundamentos da Paleoparasitologia e pesquisador emérito da Fiocruz, Luiz Fernando Ferreira narrou à Radis histórias de uma vida dedicada à ciência e em desvendar a evolução das doenças por meio de vestígios arqueológicos. A entrevista foi publicada na Radis 130 (julho de 2013). Luiz Fernando faleceu em outubro de 2018.


Sidarta Ribeiro

“Os sonhos perderam importância com o advento da ciência e do capitalismo. É uma contradição que no momento em que temos mais capacidade técnica de melhorar o mundo, estamos perdendo a chance de encontrar soluções para os problemas que afetam a humanidade como um todo.”

Sonhar é preciso — e buscar caminhos inovadores e criativos para a ciência, como o uso da cannabis para o tratamento de doenças, é um dos motes encontrados pelo neurocientista Sidarta Ribeiro para romper com a paralisia pessimista do contexto contemporâneo. Logo após o lançamento do livro Oráculo da noite (Cia. das Letras), em que o autor aborda a importância dos sonhos para as culturas humanas e para a ciência, Radis conversou com o fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Em um papo instigante, ele falou sobre o papel dos sonhos para entendermos o mundo real e abordou como a utilização da maconha e outras substâncias psicodélicas ajudariam no tratamento de doenças: “A maconha está para a medicina do século 21 como os antibióticos estiveram para a medicina do século 20”.

“Os sonhos perderam importância com o advento da ciência e do capitalismo. É uma contradição que no momento em que temos mais capacidade técnica de melhorar o mundo, estamos perdendo a chance de encontrar soluções para os problemas que afetam a humanidade como um todo.”

Sérgio Arouca: entrevistas

Fotografia: Wanezza Soares.

Em agosto de 1986, ano de realização da 8ª CNS, Sérgio Arouca concedeu uma entrevista à revista Tema (número 7), uma das publicações que formavam o Programa Radis até então. “Quem pensasse, há alguns meses atrás, que a Conferência aconteceria como foi, seria considerado um alucinado, um sonhador”. Ele descreveu “o espírito de ampla mobilização e debate democrático que presidiu toda a preparação e a realização do evento” — e enfatizou o papel desses profissionais de saúde na formulação de “utopias”, que definiu como a capacidade de “formular coisas novas que ainda não podem acontecer, mas que podem ser levantadas politicamente”.

A Reforma Sanitária era, naquele contexto, uma utopia, mas ainda assim uma utopia necessária: “Porque a história da saúde pública deste país se faz pelas epidemias e diante da necessidade de combatê-las. Essa prática, entretanto, não dá conta mais de resolver nem mesmo as próprias epidemias. A falsa separação entre prevenção e assistência tem levado a distorções enormes”, ressaltou, na entrevista. Médico sanitarista e doutor em Saúde Pública, Arouca presidiu a Fiocruz entre 1985 e 1989. A edição da Tema traz também avaliações sobre a 8ª de Hésio Cordeiro, Sônia Fleury e Nilson do Rosário da Costa, entre outros.

Dezesseis anos depois, agora já com a Radis no formato atual, Arouca conversou novamente com a gente, em entrevista publicada na terceira edição da revista, em outubro de 2002. No papo, ele analisou os primeiros anos do SUS e defendeu que era preciso ir além do que já havia sido feito até então: “Retomar os princípios básicos da Reforma Sanitária, que não se resumiam à criação do SUS. O conceito saúde/doença está ligado a trabalho, saneamento, lazer e cultura. Por isso, temos que discutir a saúde não como política do Ministério da Saúde, mas como uma função de Estado permanente. À Saúde cabe o papel de sensor crítico das políticas econômicas em desenvolvimento”, apontou. Arouca foi um dos principais nomes da luta pela Reforma Sanitária no país e faleceu em 2003, aos 61 anos.

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