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“Como pode a literatura e a política servirem de inspiração mútua nos dias de hoje? O que o tensionamento entre ficção e realidade pode nos fazer apreender sobre as políticas públicas de saúde?” Estas duas questões pautaram a produção da coletânea “Literatura e saúde pública”, lançada no fim de setembro. Frutos de parceria entre a Editora Rede Unida e o Laboratório de Políticas Públicas, Ações Coletivas e Saúde (LAPPACS), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) os dois volumes reúnem autores de todo o país que, por meio de contos, crônicas, poemas e relatos discutem a complexidade do ato de cuidar e tensionam a relação entre ficção e realidade.

Tudo começou no curso de graduação em Saúde Coletiva na UFRGS. Doutor em Psicologia pela UFMG e professor da unidade de produção pedagógica Políticas de saúde no Brasil, Frederico Viana Machado resolveu substituir a avaliação tradicional por um exercício que desafiava os alunos a produzirem textos ficcionais relacionados à saúde. A ideia surgiu depois da leitura do livro Sonhos tropicais, do escritor gaúcho Moacyr Scliar. Misto de ficção e narrativa histórica, a obra tem como pano de fundo o Rio de Janeiro do início do século 20, quando Oswaldo Cruz implementou no país o controle científico das epidemias — o que contribuiu para desencadear a Revolta da Vacina.

A leitura do livro, ganhador do prêmio Jabuti em 1993 e adaptado para o cinema em 2002, já era utilizada por Frederico em sala de aula, quando propôs o exercício aos estudantes. A ideia era estimulá-los a refletir sobre os contextos que cercam as políticas de saúde. O resultado não somente surpreendeu o professor pela criatividade e pelas inúmeras abordagens, como o fez pensar na publicação de um livro. No início de 2019, ele dividiu o desejo com o amigo João Guilherme Dayrell, doutor em Estudos Literários pela UFMG, e os dois criaram um edital em parceria com a Editora Rede Unida. O interesse superou as expectativas de Frederico quando 72 textos chegaram às suas mãos, vindos de muitos lugares do país.

A pandemia de covid-19 alterou os planos de produção do livro: João teve que priorizar outras atividades, Frederico convidou Isabel Cristina de Moura Carvalho, doutora em Educação pela UFRGS e Janaína Liberali, mestra em Enfermagem, e os três começaram a fazer a curadoria dos textos. Com 49 textos selecionados em mãos, eles optaram por organizar a coletânea em dois volumes. Para ilustrar os dois livros, decidiram usar imagens criadas por trabalhadores e usuários do CAPS AD III Amanhecer, da cidade de Canoas (RS). O processo de revisão e de edição dos textos contou com a colaboração dos autores, que em plena pandemia, se desdobraram para reler os próprios textos e sugerir alterações nos textos dos colegas.

Narrativas do cuidado

O primeiro volume da coletânea, Literatura e saúde pública — A narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política, divide-se em quatro seções. A primeira, Encontros, saberes e culturas, reúne narrativas que se aproximam pelo encontro entre realidades culturalmente diversas que emergem nas intervenções clínicas; a segunda, Temporalidades e Ficcionalidades, tem como eixo central os deslocamentos entre passado e futuro; a terceira, Outras razões, traz experiências de cuidado relacionadas à saúde mental, abordando isolamentos e outros estigmas, enquanto a quarta, denominada Emergência, traz uma contribuição sobre a pandemia — já que todos os demais textos foram produzidos um ano antes. O livro conta com um prefácio de João Guilherme onde ele discute a densa relação entre a saúde e as políticas públicas.

O segundo volume, prefaciado pelo escritor Ricardo Braga, recebeu o título Literatura e saúde pública — Territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte, e apresenta um “mosaico de produções heterogêneas, relacionando variados períodos históricos, variadas políticas públicas, categorias sociais diversas, tecnologias e suas incidências sobre os corpos, aprisionando ou expandindo limites”, como registraram os organizadores no site da editora. Neste volume, estão retratados os sistemas de saúde, as enfermidades, os territórios e as burocracias que desafiam a vida.

Os textos levam o leitor diretamente para os cenários do cuidado, possibilitando enxergar as políticas públicas de saúde para além de um conjunto de programas, protocolos, instituições, redes de atendimento, ganhando “carne, corpo, sangue e suor”, como destacou Frederico. Em conversa com a Radis, quando falou sobre o projeto, ele destacou que os textos registram os modos como são afetados, no dia a dia, usuários e profissionais da saúde, situados em um pano de fundo em que a vulnerabilidade produz “os excessos da experiência vivida, ultrapassa os protocolos e exige ser dita, escrita, ficcionada, elaborada”.

Quatro perguntas para Frederico Viana Machado

O projeto Literatura e Saúde parte de indagações sobre a inspiração mútua entre literatura e a política e o tensionamento entre ficção e realidade no campo das políticas públicas de saúde. Você acha que os textos indicam algumas respostas sobre isso?

Claro! A experiência do projeto nos mostra como a literatura é potente e rica para ampliar o nosso olhar para determinados aspectos da saúde pública que um olhar racional, sistemático, científico, muitas vezes não é capaz. A liberdade criativa da escrita traz para o processo reflexivo sobre a saúde a liberdade de criação, que possibilita repensar realidades e jogar luz sobre coisas que muitas vezes o olhar frio do cotidiano do trabalho e da pesquisa muitas vezes não dá conta de iluminar. E como as práticas de saúde estão diretamente ligadas às nossas capacidades mais sensíveis, a literatura nos toca especificamente nos pontos mais afetivos, delicados, inclusive os mais brutais, mais dolorosos; a literatura é uma ferramenta que nos ajuda a lidar com o que é mais triste e mais brutal nos territórios da saúde: as desigualdades, a violência.

De que modo isso aparece nos textos?

Os contos trazem com muita contundência a tristeza que é essa realidade desigual que temos no Brasil, mas de uma forma muito sutil, muito afetiva, sabendo discutir essa parte dura e triste da realidade com um olhar sensível, bonito, sem perder de vista a potência do viver. A experiência do projeto reforça essa perspectiva, que no começo era uma aposta e depois se tornou algo muito mais palpável. É muito bonito ver o conjunto de escritas, vindas dos mais diferentes contextos, dos mais variados olhares, trazendo experiências mais distintas, que conseguem olhar com muita autenticidade e franqueza a realidade, sem mistificá-la ou romantizá-la, mas ao mesmo tempo extraindo dela muita beleza e muita esperança. Talvez isso seja o mais rico do projeto. No momento em que a gente está tendo tanta dificuldade de ter fé que as coisas vão melhorar, os textos lembram que a gente não pode perder a esperança e nos enchem de alegria. Por mais tristes que sejam, nenhum dos textos é derrotista, nenhum nos joga para baixo, ao contrário, eles nos enchem de energia para enfrentar os desafios do cotidiano. A literatura cumpriu muito bem este papel de não deixar morrer no nosso cotidiano o esperançar que Paulo Freire falava.

Um outro fio condutor seria o cuidado?

O mais interessante da experiência literária é como que no mesmo conto você tem elementos que tratam de diferentes áreas da saúde. Na literatura, especificamente, o cuidado é indivisível, porque na experiência vivida, narrada no conto, você encontra os dilemas da política, da gestão, da economia, do território, das diferenças individuais, psicológicas, sociais. As divisões somos nós que fazemos, na burocracia do cotidiano, nas estratégias positivistas que a gente traça para instrumentalizar a realidade — e que são úteis, não estou criticando isso. Na literatura temos um momento de suspensão dessas caixinhas e partições. O cuidado aparece como algo integral, porque mostra o que há de mais integrador no ser humano que é a sua experiência do existir.

De que modo o SUS é retratado pelos autores?

Nos contos, seja pela ausência ou pela presença de uma determinada prática ou de uma determinada possibilidade do cuidado, aparecem o SUS e suas diretrizes: universalidade, equidade, integralidade, descentralização, participação social, todas as diretrizes. O que é quase uma utopia para a gente aparece de forma diferente, como realidade vivida. Nos contos deixa de ser utopia para se tornar uma experiência literária. É muito interessante essa virada que a literatura provoca: o SUS se torna protagonista. Mesmo nos contos onde não se fala diretamente nele, ele está lá, seja como pano de fundo, seja como cenário, seja como utopia. (ADL)


Conheça os livros

Volume 1 (Literatura e saúde pública A narrativa entre a intimidade, o cuidado e a política): https://bit.ly/3oyRJ7y
Volume 2 (Literatura e saúde pública Territórios e cuidado: gênero, família, vida e morte): https://bit.ly/3wVxyo8


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