Nos corredores da Clínica da Família, acontece o encontro. Sem hora marcada. Uma paciente avista a médica de família e comunidade, Brenda Costa, puxa uma conversa e logo a prosa se torna um relato de uma situação do cotidiano, um pedido de orientação, um bate-papo sobre saúde. Encontros como esse que extrapolam o espaço do consultório acontecem no botequim, na padaria, na calçada, na praça, no ponto de ônibus ou na rua — e como ressalta a médica, fazem parte da potência da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do próprio SUS.
Entre tantos encontros, marcados ou não, a medicina de família e comunidade (MFC) precisa exercitar o que Brenda chama de evidência científica do “minuto de ouro” — “quando a gente escuta sem interromper uma pessoa por um a dois minutos”. “Existe forte possibilidade dessa pessoa dizer tudo que ela precisa sem você precisar perguntar nada”, constata.
Esse exercício de escuta envolve ainda a compreensão de que saúde da família não é somente sobre tratamento de doenças. “A gente cuida de todo o ciclo de vida”, afirma. Professora do Departamento de Medicina Integral e Familiar da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), co-coordenadora e preceptora da Residência em MFC da mesma Uerj, a médica mineira Brenda Freitas da Costa integra a diretoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
Ao celebrar os 30 anos da Estratégia Saúde da Família (ESF), ela ressalta à Radis que o principal legado deste modelo foi levar o direito à saúde aos lugares mais ermos possíveis, dos espaços urbanizados à zona rural. “A gente conseguiu capilarizar o SUS para os territórios diversos do Brasil”, destaca a médica, que estudou o tema em seu mestrado em Atenção Primária à Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).
Médica do SUS com orgulho, Brenda atua, há seis anos, na Clínica da Família Ana Maria Conceição dos Santos Correia: primeiro, como residente; e, atualmente, como médica de família e comunidade e preceptora da Uerj. A unidade fica aos pés do chamado Morro do Trem, em Vila Kosmos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Na conversa com Radis, ela lembra que nenhum médico ou médica promove saúde da família sozinho. “Sem os agentes comunitários, a gente seria só médicos sentados atrás de uma cadeira”.
Qual o legado dos 30 anos da Estratégia Saúde da Família para o SUS?
Acho que o legado mais importante é que a gente conseguiu capilarizar o SUS para os territórios diversos do Brasil. Isso fez a gente instituir o direito à saúde nos lugares mais ermos possíveis, tanto nos espaços urbanizados quanto na zona rural, nas populações ribeirinhas, nos povos originários. A atenção primária à saúde no Brasil, que é a ESF, muda às vezes o nome para outro tipo de estratégia, mas chegou nesses territórios mais diversos do Brasil. Até 2023, a gente tinha 45 mil equipes, isso é um legado importantíssimo.
Como preparar esse profissional médico para atuar com medicina de família e comunidade (MFC)?
A gente tem quatro princípios que eu diria que são pilares. O primeiro é de que somos clínicos qualificados. Muita gente confunde com generalista. Generalista é o médico que acabou de se formar. A gente passa por mais dois ou três anos de estudo para se tornar médico de família e comunidade. Essa é uma diferença importante. A gente é um clínico qualificado para atender a população. Nesse sentido, o segundo princípio é de que a gente é recurso para essa comunidade. Se na minha comunidade tem uma pessoa com uma doença rara que precisa de um especialista, eu me torno especialista nessa pessoa, na sua necessidade, porque sou um recurso para essa comunidade. O terceiro princípio é de que a gente tem as nossas práticas orientadas pela comunidade e, para isso, precisamos fazer um diagnóstico comunitário.
“Conheço o bebê que nasceu; esse bebê se torna criança, cuido dessa criança; depois se torna adolescente; quando adulto, engravida, a gente faz o pré-natal; depois se torna um idoso. A gente cuida de todo o ciclo de vida.”
E o que seria esse diagnóstico?
Se aqui nesse território que você está me visitando, o Morro do Trem, tem uma população de pessoas que trabalham com mototáxi maior do que no território vizinho, a gente precisa olhar para isso para fazer ações de educação em saúde, prevenção e promoção. Já se estou em outro território, no interior de Minas Gerais, em que não há tantas pessoas usando moto, e sim tração animal, a gente tem que abordar outras questões. E o quarto e último princípio é de que as nossas práticas são construídas baseadas no vínculo e na relação médico-paciente. É muito importante se aproximar das pessoas nesse contexto de intimidade. A gente vai até a casa delas, conhece todos os membros da família e fica durante anos nesse território. Conheço o bebê que nasceu; este bebê se torna criança, cuido dessa criança; depois se torna adolescente; quando adulto, engravida, a gente faz o pré-natal; depois se torna um idoso. A gente cuida de todo o ciclo de vida.
“A nossa prática é baseada em uma orientação individual, familiar e comunitária.”
Qual é a importância de se ter um médico de família e comunidade na ESF?
A nossa prática é baseada em uma orientação individual, familiar e comunitária. Isso quer dizer que olhamos para a comunidade como um todo. A ESF tem, no próprio nome, “família”, porque olha para essa família como um núcleo de pessoas que vão adoecer ou ficar saudáveis. Não é sobre cuidado de doenças, é de pessoas que vão viver um ciclo de vida inteiro. A ESF é territorializada. Isso quer dizer que cada território onde tem uma Unidade Básica de Saúde é fragmentado e conta com uma equipe de saúde da família (eSF) responsável por esse pedaço do território — a gente chama isso de responsabilidade sanitária. Todo mundo que mora nas ruas onde sou a médica está sob minha responsabilidade. Essa lógica é muito importante para a gente entender a sua pergunta: uma pessoa generalista não desenvolveu na graduação as habilidades e competências para cuidar dessa comunidade. Durante dois anos de formação na residência, a gente faz o desenvolvimento dessas habilidades em abordagem comunitária. A primeira delas é o diagnóstico comunitário: entender qual é o perfil epidemiológico e social da minha área. Eu te dei o exemplo do motoboy, que é muito prevalente aqui. Mas poderia te dar outro: a gente fez um diagnóstico de que aqui havia muito lixo nas ruas. Então conseguimos promover ações intersetoriais com outros órgãos da prefeitura a partir desse argumento técnico. O médico generalista se atém muito à clínica, ele fica muito dentro do consultório. A gente tem esse treinamento para coordenar o cuidado de uma comunidade.
Em sua pesquisa de mestrado, você afirma que “o cotidiano da Estratégia Saúde da Família é um encontro entre estes profissionais da Equipe de Saúde da Família (e outros trabalhadores locais de uma Unidade Básica de Saúde) com os chamados usuários deste serviço”. Que aprendizados, tensões e possibilidades surgem desses encontros cotidianos?
Interessante você trazer isso. A gente está no território e no cotidiano das pessoas. Às vezes, alguém vai ali do outro lado pegar um pão na padaria e lembra que a receita está vencendo e passa aqui para já fazer o pedido. Isso faz a gente estar inserido no cotidiano das pessoas que vão e vêm nesse território. O nosso cotidiano dentro da unidade é receber essas pessoas, que podem estar doentes ou não. O cotidiano é marcado por esses encontros. Eu sou médica de família e comunidade, já fiz mestrado, sou professora universitária, mas quando estou aqui eu sou uma profissional do SUS encontrando outra pessoa. E aí a gente olha para a Política de Humanização do SUS, que prescreve que todo encontro precisa de um acolhimento, porque essa pessoa que está vindo aqui, ela entra em um espaço de direito à saúde. Antes de vir falar com você, a Dona Maria me parou para me perguntar se ela podia pegar a receita de remédio do marido. Ela não veio para uma consulta médica, ela me parou no corredor. Nesse encontro, consigo dar uma orientação em saúde, para dizer o que ela vai fazer ou não. Esses encontros nos corredores extrapolam o espaço do consultório. Quando a gente está no território, o encontro com o cotidiano das pessoas é marcado por várias outras coisas. Às vezes, a gente encontra um paciente no boteco tomando uma cerveja, ele pergunta, interage com a gente, a partir desse vínculo e de outra perspectiva.
Qual a importância da equipe multiprofissional no dia a dia da ESF?
Não é só o médico. Estão inclusos os agentes comunitários de saúde, os profissionais da enfermagem, a equipe de saúde bucal e outros. É como se a gente fosse um corpo só. E, nesse corpo, as pernas e os braços são compostos pelo agente comunitário de saúde, que está lá batendo perna no território para falar com as pessoas. No coração, eu vejo a enfermagem, que é esse cuidado que existe para além das técnicas. E a medicina está pensando junto com todo mundo, mas não no sentido de que ela é a única pensadora, mas no sentido de que às vezes ela não é necessária. E é ótimo quando um paciente vem e não precisa do médico, porque a relação do médico com o paciente é medicalizadora. Ela traz em si esse conceito biomédico, né? Tem inclusive um autor, que é o Rubens Matos, que deixa essa pergunta pra gente: É possível desmedicalizar a medicina? A medicina de família e comunidade está baseada em outro paradigma, que é o sistêmico: buscamos trazer o funcionamento da equipe para um sistema.
E por que ocorre a desvalorização de alguns membros dessa equipe?
A enfermagem é muitas vezes desvalorizada no trabalho que ela faz: pelo paciente que às vezes não entende o porquê de passar por uma consulta com a enfermagem; pelo salário que não é equivalente ao que a MFC tem ganhado, mesmo ela sendo equivalente ao que a gente faz dentro da ESF; e por essa relação com médicos que reproduzem o paradigma biomédico e deslegitimam o lugar da enfermagem. Para além de reconhecer que fazemos parte do mesmo corpo de atuação, é importante a gente disputar espaços que valorizem a enfermagem como parte de algo tão importante quanto a medicina, e diferentemente importante, porque tem outras atribuições e habilidades que não fazemos. Posso te dar um exemplo: o cuidado de feridas é especificamente da enfermagem. Outro cuidado bem específico da enfermagem é a organização dos processos de trabalho da unidade. A enfermagem em saúde da família, ao mesmo tempo que está na equipe, organiza a sala de vacina, a sala de curativo, a sala de observação. Isso é uma demanda dupla, porque para além das atribuições da equipe, tem o funcionamento da unidade, em que a medicina não está implicada diretamente.
E qual o papel do ACS na ESF?
Pela questão da valorização, não acho que chegou ao ideal ainda, mas a gente tem visto no município do Rio de Janeiro uma valorização do trabalho do ACS. Começando por esse ponto, eles passaram pela formação em um curso técnico para se qualificar mais no desempenho do trabalho; quem fez esse curso, teve um aumento salarial; e isso tudo são ações de valorização. Mas sei que isso não é no Brasil inteiro. Em alguns municípios, o agente comunitário não recebe sequer um uniforme adequado. A partir dessa perspectiva de que a saúde não é só dentro do consultório, o ACS é quem vincula o território à equipe de saúde da família, porque é ele quem sabe, numa rua, quem mora em cada casa e qual é a necessidade de saúde que aquela pessoa tem. Ele faz isso a princípio na hora do cadastramento — e essas informações do cadastro viram os dados que a MFC coordena quando vai fazer a abordagem comunitária. Mas para além de ser só um coletor de dados, ele é um agente promotor da saúde. Por exemplo, ele entra na casa de um idoso e sabe fazer orientações para diminuir o risco de quedas, como tirar um tapete ou mudar uma coisa de lugar. Ele percebe que tem uma mulher em idade fértil que não deseja gestar, não está usando contraceptivo e quer coletar o preventivo; ele alerta a equipe de que essa situação está acontecendo. Ele vê que tem uma criança com atraso vacinal na sua área e capta essa criança para a gente trabalhar. Sem os agentes comunitários, a gente seria só médicos sentados atrás de uma cadeira.
Como incentivar a escuta entre os jovens (e antigos) profissionais médicos, para que a saúde da família esteja em sintonia com as demandas do território?
O jovem estudante gosta de evidência, então vou começar com uma evidência: existe o chamado “minuto de ouro”, que é quando a gente escuta sem interromper uma pessoa por um a dois minutos. Existe forte possibilidade dessa pessoa dizer tudo que ela precisa sem você precisar perguntar nada. Entendo a angústia de quem foi treinado nos últimos seis anos da graduação a ser interventor e prescritor, e quer fazer um raciocínio rápido com perguntas diretas. Mas quando você escuta a pessoa, ela vai te trazer os medos, angústias, sintomas, sinais que você precisa para fazer o seu raciocínio. Para além de olhar para isso na clínica, quando a gente traz para o corredor, para o encontro, a pessoa se sente acolhida e ouvida. A Política de Humanização do SUS fala que todo mundo deve ser acolhido na unidade. É diferente de todo mundo deve passar por uma consulta médica. Acolhimento é dizer para essa pessoa, com sua postura não verbal, com a escuta, a fala, que ela é bem-vinda e vai ter o seu problema acolhido, que é diferente de resolvido. O que eu diria para esse jovem é que a gente precisa treinar o nosso ouvido para ouvir. Sei que isso vai contra o fluxo de treinamento de um raciocínio clínico que muitas vezes é baseado numa intervenção. Mas pode fazer essa aposta, existe evidência: escute de um a dois minutos sem interromper, você vai ter praticamente todas as informações de que precisa.
A MFC é vista geralmente como uma especialidade menor, menos lucrativa para o recém-formado. Como se dá hoje a procura por essa residência?
Quanto mais a gente entra nas universidades para demonstrar aquilo que é ser médico de família com o exemplo, o que a gente chama de roleplay, mais os estudantes querem buscar a nossa especialidade. Existe um estudo que a Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] fez longitudinalmente que verificou qual o motivo da busca pelo curso de medicina para os estudantes do começo e do final do curso. No começo, as pessoas buscavam medicina por desejos altruístas, de ajudar o próximo, com demonstração de empatia e de preocupação com o cuidado. E no final do curso, os objetivos eram capitalistas: ascender em uma carreira, conseguir fazer dinheiro. Se durante o curso de graduação, a gente mostra uma especialidade em que é possível manter e reformular os valores que te fizeram buscar a graduação, isso faz as pessoas se vincularem mais a essa ideia. Mas longe de nós sermos altruístas. A gente recebe um excelente salário, que inclusive é maior do que a maior parte da população brasileira. Não é um valor para a gente esse lugar do altruísmo, que é ceder o que é seu pelo próximo, ou o voluntarismo.
Qual é a importância da comunicação na ESF?
O desafio é expandir o entendimento do que é a nossa especialidade. Muitas vezes, a pessoa pergunta: “você é médica especialista em que?” Eu: “Medicina de família e comunidade”. Esse termo não é lógico, ele não faz um sentido imediato na troca com a pessoa que está me ouvindo, em diversos níveis sociais ou espaços diferentes. O papel da comunicação para mim é fazer ser entendido o papel da nossa especialidade e, com isso, carregando uma lógica baseada nesse paradigma sistêmico, que não é biomédico e não é centrado unicamente na figura do médico, da consulta, que não cuida só de doença, mas cuida sobretudo de pessoas. Quando eu falar em MFC, queria que os brasileiros em geral entendessem: “Essa médica cuida de gente”.
Você fez um relato de experiência com outras duas autoras sobre a criação de um grupo em saúde voltado para a população LGBTQIA+ em uma unidade de saúde da Zona Norte do RJ. Como os grupos ajudam a promover saúde?
Quando a gente entende que a nossa lógica de cuidado não está só dentro do consultório, começamos a perceber que existe um valor em estar em grupo. Tem um autor, que é o Eugênio Vilaça Mendes, que demonstra que a maior parte das pessoas com condições crônicas se beneficiam de grupos de educação em saúde. Por quê? Porque ali, nesse espaço, acontece uma troca de informação que convence a pessoa a mudar o estilo de vida. Nesse espaço do grupo, um colega ou um vizinho vai contar uma dica de como faz para não esquecer de tomar o remédio, aquilo pode fazer sentido para você; outro fulano vai falar que o adoçante está mais barato no supermercado tal; e essas trocas sobre a mesma ideia são muito valiosas. A gente tem grupos sobre diversas questões.
“A gente cuida de todo o ciclo de vida”, destaca Brenda Costa, co-coordenadora e preceptora da Residência em MFC e diretora da SBMFC. — Foto: Fernanda Andrade.
E como foi a experiência com o grupo da população LGBTQIA+?
Esse grupo para a população LGBTQIA+ vem a partir do nosso diagnóstico de que essas pessoas não estavam recebendo o cuidado necessário nas suas unidades de saúde por uma dificuldade dessas unidades de se adaptarem ao protocolo de cuidado. Quando a gente teve a ideia desse grupo, foi em um momento pós-pandemia em que a gente percebeu que essas pessoas estavam sem cuidados médicos. Elas compartilhavam as vivências e os saberes e a gente conseguia fazer as orientações em saúde e prescrições necessárias, porque não é recomendado o uso de certas medicações sem orientação médica. Um dos legados foi a coletivização de alguns homens trans: eles se reuniram e conseguiram judicializar a questão da testosterona e passaram a receber a substância pelo Estado. Isso é exercer a advocacia em saúde. A gente conseguiu a partir de uma prática da ESF, que são os grupos, levar para outra dimensão que garante o direito à saúde dessa população.
E quais os desafios em atuar em uma Clínica da Família na Zona Norte do Rio de Janeiro?
O primeiro ponto a destacar é que temos uma equipe na Clínica Ana Maria Conceição que está aqui há 13 anos. A fixação de profissionais é uma grande vitória e potência para a saúde da família. Quem está aqui há 13 anos passou por tantos processos: mudanças de governo, alterações nos protocolos e nas condutas, e consegue dizer para onde a gente vai levar este barco nos percalços que acontecem com a ESF e com o SUS. Ter essa equipe é a nossa âncora para a gente fazer a formação dos profissionais e o cuidado com as pessoas. A gente tem feito um trabalho inovador que são os consultórios territorializados. A ideia dessa prática é compreender que o acesso à saúde — e quando estou falando de acesso, ele é na maior parte das vezes entendido como consulta — é incompatível com a quantidade de usuários que temos. A gente tem cerca de 4 mil usuários por equipe. Isso é um problema enorme, porque o ideal seria a gente cuidar de no máximo 2 mil pessoas. A Nísia [Nísia Trindade, ministra da Saúde] já olhou pra isso e fez uma promessa de revisão da Pnab [Política Nacional de Atenção Básica].
E o que foi essa iniciativa dos consultórios territorializados?
Uma estratégia paliativa que a gente encontrou foi o consultório territorializado. A gente sai da unidade de saúde e faz um consultório itinerante em cada ponto longínquo do nosso território. Com isso, mais pessoas que não acessavam a unidade acessam em locais mais próximos da sua casa e num espaço de intimidade que é construção coletiva. Eles elegem uma garagem, uma igreja, a associação de moradores, para ser o espaço de cuidado deles. Cada equipe faz isso em média duas vezes na semana e a gente vê que a nossa demanda por acesso de consulta diminuiu muito quando a gente está no território, porque isso significa diminuir as barreiras para o acesso acontecer.
E como lidar com a violência no território?
No Rio de Janeiro, especialmente, existe um protocolo de acesso mais seguro baseado no protocolo da Fiocruz. Cada unidade de saúde é incentivada a perceber quais são os critérios para esse protocolo e classificar se está tudo bem nos arredores para funcionar. E a gente tem feito assim, com muito sucesso: a nossa equipe é muito dedicada, mas lembrando que isso não resolve o problema da violência e do genocídio da população negra no território. Para agir nessa instância, a gente precisa de outros atores políticos. Então, a gente se protege como instituição, sempre lembrando que nós estamos aqui para cuidar das pessoas e que se existem pessoas que estão envolvidas com essa violência nos nossos territórios, elas também são cuidadas por nós.
E como você, Brenda, chegou à MFC e decidiu ser uma médica do SUS?
Na graduação não tive nenhum professor que era médico de família e comunidade. Então, isso não era uma coisa que passava na minha cabeça. Mas a minha mãe é sanitarista, era da Secretaria de Saúde de Belo Horizonte e me incentivou a ter uma experiência na ESF em BH. Trabalhei lá por dois anos e percebi que isso alimentava minha essência. Era uma coisa que me motivava na vida: encontrar autenticamente as pessoas, não olhar friamente a doença. Essa experiência em Belo Horizonte me fez perceber que talvez a especialidade que eu queria fazer fosse MFC. Quando cheguei aqui no Rio, perto do dia do Orgulho SUS, 21 de maio, eu vi meus preceptores, meus colegas de trabalho e outras pessoas defendendo essa bandeira do SUS, isso me mobilizou. Que SUS é esse que a gente defende? Quanto mais fui entendendo que SUS era esse, mais fui me apaixonando e hoje minha raiz está funda nesse negócio! (risos)
Como foi passar pelas tentativas de desmonte da atenção básica e pela pandemia de covid-19 na ponta?
Desafiador. Não quero romantizar o desafio. Ficar sem receber salário no momento de greve; ver os colegas de trabalho que recebiam menos se endividando, na época desse desmonte da atenção primária; em paralelo, veio uma Pnab [em 2017] que não valorizava tanto a ESF, porque permitia outros modelos de equipe. No meio dessa bagunça, veio a covid, e depois esses outros desafios de uma gestão mais gerencialista que a gente vive hoje. O que eu sinto nisso? Que eu só consigo sobreviver porque tem essa equipe, os meus colegas de trabalho, remando junto comigo. Quando eu me canso, alguém me pega pela mão e a gente segue junto, tanto aqui na ESF quanto na Ensp, que foi o lugar em que fiz o mestrado, quanto na Uerj, que é o lugar em que sou coordenadora da residência e professora. São pessoas e lugares que estão extremamente motivados com o ideal de construir uma Estratégia Saúde da Família e um SUS fortes, uma medicina de família e comunidade que seja potente para estes espaços.
Uma discussão que está acontecendo agora: as ações afirmativas na Residência Médica. A SBMFC se posicionou favorável às cotas, contrariando o Conselho Federal de Medicina (CFM) que levou a questão à justiça. Por que as ações afirmativas são necessárias para se ter diversidade entre os médicos e médicas?
O primeiro ponto é que cometemos um racismo institucional secular no Brasil quando a gente manteve o privilégio das pessoas brancas dentro da academia. As cotas para a graduação foram um pequeno ajuste nessa rota. As situações de racismo são cotidianas nas instituições e nas escolas médicas. Os estudantes negros que estão na graduação precisam alcançar de forma mais ampliada a residência médica, que tem um número super estreito de vagas, uma concorrência enorme e que não pode reproduzir o lugar de privilégio da branquitude no espaço da pós-graduação. A SBMFC endossa as políticas afirmativas e entende que as cotas são só um pedaço dessa política. E vou te falar uma coisa: o meu cabelo é crespo. As pessoas se identificam comigo no território por algumas semelhanças a elas. Quanto mais pessoas negras ocuparem este espaço, mais pessoas pretas de pele retinta, isso vai gerar outro tipo de vínculo. A gente vai cuidar da saúde dessas pessoas com um tipo de troca que é incalculável. A gente precisa sim ampliar os espaços para que as pessoas negras representem o que elas são para a maior parte do nosso país, que é um país negro.
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