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Desde criança, Karina Penha tinha o sonho de ser uma defensora do meio ambiente. Neta de pescadores e quebradeiras de coco, a jovem cresceu entre os campos alagados da Baixada Maranhense, em Viana, e a periferia da Região Metropolitana de São Luís, em São José de Ribamar. Com uma consciência ambiental desde muito cedo, hoje Karina é uma das principais vozes da juventude brasileira na luta pela justiça climática.

Bióloga, a maranhense é formada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e integrou programa do Instituto de Estudo dos EUA (SUSI) para Líderes Estudantis, com foco em empreendedorismo social pela Faculdade de Amherst e Universidade do Arizona. Socioambientalista e ativista há mais de dez anos, entendeu na prática como as mudanças climáticas acontecem, a partir da observação do território em que sua família vive na Baixada Maranhense. Ela viu seu avô e tios serem impactados pela seca e pela estiagem que têm aumentado ao longo dos anos. Enquanto isso, cresceu com as contradições em outro extremo, a periferia em sua forma mais conhecida: a urbana. 

Atualmente, aos 29 anos, Karina é coordenadora de mobilização e cofundadora do Amazônia de Pé, um movimento pela proteção das florestas e dos povos da Amazônia, que agrega pessoas de todo o Brasil e mais de 350 organizações. Também faz parte do Perifa Connection, uma plataforma de conexão e confluência entre as periferias do país para articular e formar lideranças da juventude negra. “A gente tem um olhar diferente, entendendo as periferias como tecnologia, como solução, como territórios que tem muito a ensinar”, afirma à Radis.

Por cerca de uma década, ela atuou na ONG Engajamundo, voltada para a formação de líderes da juventude em temas ambientais e sociais no Brasil e no mundo. Karina frequenta as Conferências das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP) desde 2016, seja como parte da delegação oficial do país ou coordenando outras delegações de jovens.

Ela descobriu na sua própria história a conexão com o meio ambiente e as contradições que as pessoas de periferia vivenciam. Para além do descontentamento, Karina tem dedicado sua juventude a incentivar outros jovens a lutar por um mundo mais justo. “Nós somos a última geração que pode salvar a Amazônia” é o lema do movimento Amazônia de Pé, que incentiva outras pessoas a se juntarem à causa.

Karina conversou com Radis e explicou como as periferias brasileiras têm se organizado para ter suas pautas ouvidas na COP30.

Como a luta pelo meio ambiente entrou na sua vida?

O Maranhão é um território que, metade do ano, é totalmente campo, seco, e a outra metade, alagado. As áreas alagadas são muito importantes, inclusive, para o equilíbrio do planeta. Pensar sobre essas questões e, principalmente, morando na periferia, entendendo todas as desigualdades desde muito cedo, viver processos de racismo ambiental, que hoje consigo nomear dessa forma, mas que até então eram processos de quem vive na periferia, que às vezes a gente normaliza. Quem vive na periferia tem pouco acesso, não tem saneamento básico e transporte público de qualidade, não tem o direito de ir e vir por conta de algumas questões de mobilidade, como ruas pavimentadas. Observar tudo isso me fez entender que havia algumas questões ali, nomeadas hoje como desigualdade. 

Então você é ambientalista desde muito jovem?

Desde que me entendo por gente, eu falo que quero ser ambientalista. Sempre brinco com isso, porque nem sabia o que isso significava na prática. Achava que ambientalismo era alguma coisa que me ligava ao meio ambiente, então eu queria ser isso. Sempre fui muito atraída por essa pauta, mesmo sem ter pessoas da militância na minha família. Minha família vem mais do lugar de conexão com o ambiente, de conexão mesmo de vida, de território, muito mais do que uma conexão política ou de militância. Sempre fui muito levada a isso, muito sensibilizada, inclusive com a pauta da Amazônia. Hoje a gente faz esse movimento de entender, ver e reforçar o Maranhão como um território amazônico.

O Maranhão também faz parte da Amazônia Legal. Você percebe essa identificação nas periferias?

A gente fica muito nessa coisa de transição. [E se pergunta:] Amazônia é Cerrado? O Maranhão tem vários ecossistemas e biomas muito diferentes — o que é incrível, muito plural e diverso; mas também acaba fazendo com que as pessoas se afastem um pouco [dessa perspectiva], especialmente quem mora nas periferias, que não tem mais acesso às áreas florestais. Hoje, entendo que as questões territoriais vão muito além da floresta. Por exemplo, a própria cultura amazônica, que é uma cultura super viva no Maranhão, e não necessariamente a gente vai ter áreas florestais mais “de Amazônia”, porque muita coisa já foi devastada. Mas a cultura, a fala, a comida, o modo de vida todo está relacionado a esse território amazônico.

Como as emissões de gases de efeito estufa (GEE), principais causadoras das mudanças climáticas, têm afetado as populações da Amazônia? 

As mudanças climáticas acontecem em um contexto global, mas nem todas as pessoas são afetadas da mesma forma. Geralmente, quem menos contribui [com emissões de GEE] tem sido mais afetado diretamente por essas questões. Quando a gente olha para as comunidades que sofrem mais diretamente os impactos das injustiças ambientais, como, por exemplo, o racismo ambiental — que é um processo que fala sobre o território, mas também sobre as pessoas que são mais afetadas — geralmente são territórios periféricos [Radis 257]. A gente entende como periferia tudo aquilo que está fora dos grandes centros econômicos — periferias, aldeias, quilombos, a gente enxerga tudo isso como ambientes e territórios periféricos.

— Foto: acervo pessoal.

“A gente entende como periferia tudo aquilo que está fora dos grandes centros econômicos — periferias, aldeias, quilombos”

E quem são as pessoas mais afetadas?

A gente vê quem são as pessoas que estão nesses territórios, que são as populações negras, em especial. A gente olha para os processos de desigualdade e as mulheres são historicamente marginalizadas, estão nesse lugar de quem mais sofre. Mas existem também algumas outras conexões — por exemplo, o próprio território. Quem vive e tem essas experiências mais diretas com o território, a grande maioria são mulheres. No campo, quem experiencia os processos de seca geralmente são as mulheres: são elas as responsáveis por abastecer a casa de água e dar banho nos filhos. Nas periferias também. Uma notícia com a qual me deparei há uns anos atrás, que fez muita diferença para o meu processo como ativista, para cada vez mais pautar a questão territorial e a questão racial dentro do contexto da justiça climática, era que as mudanças climáticas afetam em especial mulheres gestantes e negras nas periferias.

Essa realidade também interfere no futuro?

Todos os processos de desigualdade, historicamente, recaem sobre as mulheres. E aí a gente vai ligando: quem são essas mulheres? São todas as mulheres? Não, são mulheres periféricas. Quem são as mulheres periféricas? As mulheres negras, em sua grande maioria. Na verdade, basta olhar para as comunidades mais afetadas e ver qual é a cor das pessoas, a gente chega nesse público, que são as mulheres negras periféricas. A gente já vive um processo de desigualdade muito grande contra as populações periféricas e negras. Com as mudanças climáticas, existe algo ainda mais grave, que é uma geração que ainda nem nasceu, uma geração que está sendo gestada e pode também ser afetada pelas mudanças climáticas. No Brasil, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado [de acordo com o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso)]; esse jovem pode nem chegar a nascer, porque uma mulher negra ainda grávida é a mais afetada pelas mudanças climáticas. 

Como as periferias se relacionam com o meio ambiente?

As periferias são muito diversas. Existem as periferias mais urbanas, que vivem processos de injustiça e racismo ambiental muito fortes. Têm um distanciamento muito grande de uma conexão com a natureza, por exemplo. Até porque a maioria das pessoas que moram em periferias urbanas não têm acesso [às áreas florestais]. Mas, por outro lado, as “periferias quilombos” têm outra relação com a natureza, uma relação mais de aquilombamento mesmo, de entender a natureza como um território que é vivo, que faz parte da sua espiritualidade. A mesma coisa com os territórios indígenas, que não olham para o meio ambiente como um lugar unicamente de extrativismo e de utilitarismo.

Mas existem grupos engajados pelo ambientalismo dentro das periferias?

Hoje tem crescido muito o movimento das periferias se olharem como parte dessa solução. Inclusive, as próprias periferias constroem tecnologias e soluções dentro dos territórios, que podem servir de aprendizado para outros territórios que não são periféricos. Por isso a gente luta para que as periferias estejam cada vez mais presentes dentro dos processos políticos climáticos e ambientais, porque elas têm muito a ensinar. E no fim, as soluções são criadas para esses territórios. Se você não tem as pessoas do território presentes e fazendo [parte], não faz sentido, porque vai construir uma solução que, na verdade, não vai se encaixar ou não vai funcionar na base. Com os movimentos de juventude periférica, a gente tem conseguido engajar mais jovens nesse debate para entender que eles já constroem soluções dentro de seus territórios e que, por isso, precisam também fazer parte dos processos políticos.

O que esperar da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) que vai acontecer no Brasil, em Belém (PA)?

Apesar dessa conferência acontecer no Brasil, a gente tem que reduzir um pouco as expectativas, porque é uma Conferência Internacional das Partes da ONU. Então, embora o Brasil tenha um envolvimento muito grande com as COPs, em especial porque a origem dessa conferência aconteceu durante a ECO-92 [no Rio de Janeiro], e apesar das pautas climáticas serem muito relacionadas ao país, em especial, com a questão da Amazônia, das nossas florestas, ela não é uma conferência que fala só do Brasil. Os temas prioritários não são temas que são prioridades para o Brasil. Acho que primeiro tem que não criar expectativa de que, por acontecer na Amazônia, toda Conferência vai debater a Amazônia. Mas é uma oportunidade. Sempre que um país sedia a COP, é muito cobrado, muito visado, porque precisa ser um exemplo de política climática e ambiental. A gente tem a oportunidade de pressionar a Presidência e ministros nesse momento, porque eles estão sediando uma Conferência.

Quais temáticas são importantes para o Brasil?

O que a gente espera é que o Brasil avance com os acordos climáticos, que tenha bastante ambição para essa COP. Um dos assuntos principais são os combustíveis fósseis, que é um problema no Brasil, mas para outros países é ainda mais. No Brasil, o [maior] número de emissões [de GEE] vem das mudanças no uso da terra, do desmatamento, das queimadas, da pecuária. A gente tem expectativa que essa temática avance esse ano no Brasil. Não só dentro do contexto da ONU, mas que seja um comprometimento do país em deixar um legado positivo nessa COP, entendendo que a gente tem esse como um dos nossos principais problemas.

Como a questão da preservação das florestas se relaciona com as comunidades tradicionais?

Eu trabalho diretamente em uma campanha sobre florestas públicas da Amazônia. A gente espera que o Brasil tenha um comprometimento com a redução de desmatamento, em especial das florestas públicas, que são áreas que têm o maior número de grilagem e desmatamento. São áreas florestais que não têm uma destinação correta e a gente quer que elas sejam destinadas às populações indígenas, quilombolas, sejam unidades de conservação. Já que a COP é no Brasil, esperamos que o tema das florestas tropicais seja prioritário, que entre com muita força nos espaços de negociação para que os países criem acordos para isso. 

Como o tema do racismo ambiental deve aparecer na COP30?

Tem uma expectativa para que, em uma COP que acontece no Brasil, onde a maior parte da população é afrodescendente, que os ministros e a Presidência [da República] tragam essa pauta de forma muito forte. É uma temática que a gente tem tentado emplacar em todas as COPs e não é vista como a gente gostaria. Não está ainda nos documentos, nas negociações, mas a gente tem feito uma mobilização grande para conseguir que essa temática seja tratada nessa COP como prioritária, também olhando para as comunidades negras, afrodescendentes e de populações tradicionais existentes no Brasil.

Como a juventude está se organizando para a COP30?

A gente trabalha com muitos voluntários, com muitas pessoas que têm expectativa de ir para Belém. A gente sabe que nem todo mundo entra na COP, porque precisa de credencial. Temos criado mecanismos e atividades para que as pessoas que não consigam chegar em Belém ou que estejam em Belém, mas não vão entrar nos espaços oficiais, consigam, de alguma forma, ter algum tipo de participação, realizando outras atividades ao longo do ano. A gente tem criado uma trilha formativa com pessoas até o fim do ano para engajar grupos a fazerem atividades nas suas cidades pensando no contexto da COP, mesmo sem estar diretamente nesse espaço da COP.

Você faz parte de alguns grupos de jovens ativistas desde muito cedo. O que a juventude ambientalista reivindica? 

Com 14 anos, comecei a atuar em algumas organizações que trabalhavam com a questão ambiental, num lugar mais político e de desenvolvimento de atividades organizadas. Aí começa um pouco disso que a gente chama de ativismo, mas dentro do meu histórico de vida sempre tive uma relação muito forte com essa vivência, com sensibilidade a essa questão [do meio ambiente] e com a iniciativa de querer trabalhar com essa temática. Um lugar que foi muito importante para mim, como é para muitas comunidades periféricas, foi a igreja. Para mim, a igreja teve um papel muito importante para entender o pertencimento ao território e que existiam questões que precisavam ser resolvidas.

Em quais grupos você atua?

Hoje sou uma das fundadoras do movimento Amazônia de Pé, que é um movimento brasileiro de mobilização pela Amazônia e seus povos, entendendo que [isso] não está desconectado, que a Amazônia não é só a floresta, que ela é povo, é população, é cultura — e os territórios também são muito diversos. É um movimento com mais de 350 organizações no Brasil que pautam a questão ambiental e que querem se inserir mais nesse debate de proteção da Amazônia, em especial das florestas públicas. São territórios que estão sendo muito devastados hoje, com alta taxa de desmatamento. A gente está criando um projeto de lei para a proteção desses territórios e para que eles sejam ocupados por populações que os protejam.

Perifa Connection

O Perifa Connection é uma plataforma de confluência das periferias brasileiras. Karina atua na organização como diretora de clima e explica que ela abrange uma rede de jovens líderes do Brasil inteiro, “pessoas que estão dentro dos seus territórios, observando e falando sobre novas narrativas das periferias, que comumente são vistas como lugares de problemas e de descarte”. “A gente tem um olhar diferente, entendendo as periferias como tecnologia, como solução, como territórios que, na verdade, tem muito a ensinar”, conta. Segundo ela, o Perifa Connection traz o olhar das periferias sobre o clima e busca fazer com que as juventudes possam influenciar nos processos políticos.

Engajamundo

O Engajamento é uma organização voltada para a formação de lideranças da juventude na questão do clima; entre as suas atividades, está a inserção de jovens na participação das conferências ambientais. “São quase 15 anos de atuação e já conseguiu influenciar em muitas políticas ambientais e de educação ambiental no Brasil, fazendo esse processo de advocacy também, com tomadores de decisão, tentando influenciar as pautas da juventude”, ressalta Karina, acrescentando que hoje ela atua como uma colaboradora dos projetos, no grupo local do Engajamundo no Maranhão, o Engaja no Mar.

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