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Em 2014, Lu Rufino realizou o sonho de usar sapatos de salto alto. Vítima de violência doméstica, foi internada e ficou com uma lesão psíquica forte. No hospital, recebeu a informação de que nunca mais iria andar. Depois da alta, ela conta que a primeira coisa que fez foi entrar em uma sapataria. Assim, a cadeira de rodas e o salto se juntaram ao batom vermelho, aos decotes e às fendas que já delineavam o corpo dessa mulher que sabe ser e se fazer desejada — e que virou ativista pelos direitos da pessoa com deficiência. “A gente tem muita coisa para quebrar. Não dá para lutar por alguma causa sentada num sofá”, observou.

Luciane dos Santos Rufino, carioca, tem 47 anos bem vividos. É advogada, artista, miss, porta-bandeira, conselheira municipal. Ela conta que ser uma mulher em uma cadeira de rodas não diminuiu sua libido ou seus desejos. “A minha parte sexual está totalmente preservada, a minha deficiência não afetou o orgasmo”, afirmou. Para ela, é o preconceito que limita o pleno exercício da sexualidade. “É uma questão de estima, de saber o que você quer e saber quem você é. Eu seria a mesma mulher sendo cadeirante ou andante”, assumiu a ativista nesta entrevista à Radis

O que é importante ressaltar quando se fala sobre a sexualidade da pessoa com deficiência?

O primeiro passo é entender que ela é uma pessoa. A última vez que fui em um consultório ginecológico, eu falei que queria trocar o meu anticoncepcional. Após as perguntas de rotina, o médico de uma das principais clínicas privadas do Rio de Janeiro quis saber se eu era casada e se eu tinha vida sexual ativa. Eu disse para ele: ‘Você pergunta isso para as mulheres casadas que chegam ao seu consultório andando?’. Ele não respondeu. Para mim foi um baque, eu não esperava aquilo. No decorrer da consulta, fez outras perguntas muito preconceituosas e desencontradas. Falei que iria fazer uma cirurgia e ele quis saber se eu estava com alguma doença. Respondi que queria fazer uma lipoescultura e implantar prótese de silicone porque não estava satisfeita com meu corpo. Na hora, ele parou de escrever e ficou me olhando. No fim da consulta, ele pediu para que eu continuasse indo às consultas e disse que fez perguntas sem fundamento. Ele queria aprender comigo porque em quase 20 anos de medicina eu tinha sido a primeira mulher com deficiência cadeirante que ele tinha atendido.

O que falta para que situações como essa não se repitam?  

Nós precisamos conscientizar o profissional de saúde, da rede pública e privada, que mulher com deficiência também é mulher. As pessoas acham que pessoas com deficiência são doentes e que doentes não têm direito à vida sexual ou a cirurgias plásticas estéticas. Eu sou uma mulher extremamente vaidosa e faço controle da minha saúde para que eu possa ter uma vida sexual intensa. O fato de eu ser uma mulher cadeirante, não diminui a minha libido em nada, não me faz deixar de ter desejos por homem. A minha parte sexual é totalmente preservada, a minha deficiência não afetou a parte de orgasmo. E quando eu falo sobre sensualidade e sexualidade das mulheres com deficiência, as pessoas me olham como se eu tivesse o direito só de falar sobre buraco de calçada e falta de acessibilidade. Só que eu não sou só isso. Eu sou uma pessoa com deficiência, mas eu nasci mulher primeiro. Eu não abro mão da minha condição de gênero e da minha sexualidade.

Há barreiras no acesso à saúde de mulheres com deficiência?

Entendo que as mulheres com deficiência fazem parte de uma classe não tão privilegiada, como a minha, que acabam não procurando médicos. Porque a gente não consegue achar uma clínica em que tenha facilidade de ir para uma maca ou fazer mamografia. A gente tinha duas clínicas públicas no Rio, não sei se há mais, com aparelhos adaptados para uma mulher cadeirante fazer exames. Na rede de saúde particular não é qualquer clínica que faz esse atendimento e a pessoa não busca atendimento. Muitas mulheres cadeirantes escolhem o anticoncepcional que a amiga indicou porque ir ao médico é complexo.

Como você se tornou uma pessoa com deficiência?

Tive pólio [poliomielite] quando nova. Era uma poliomielite invisível que não afetava em nada. Eu fui campeã mundial de jiu-jítsu. Há oito anos, sofri violência doméstica, que me deixou com uma lesão psíquica forte e eu nunca mais andei. Eu estava predeterminada a ser uma pessoa com deficiência. Só que eu nunca consegui guardar o luto, tenho dificuldades com lutos. Tenho medo desde pequena dos ciclos depressivos. Minha primeira formação foi Psicologia que não serviu para trabalhar, mas serviu para me entender. O médico disse que eu tive um problema que lesionou minha medula em um quadro que era uma coluna não muito legal e que eu não iria andar mais. Bom, o sonho da minha vida era usar um salto alto. Eu saí do hospital, fui numa loja e comprei um salto alto e nunca mais tirei do pé.

— Foto: F. Calixto.

Como você deu seguimento à sua vida?

Voltei para a faculdade, fiz Direito, criei o Instituto Miss Cadeirante. Hoje, são 50 mulheres que desfilam no Rio e falam de empoderamento e vida. Eu aprendi a não arrastar correntes. Casei. Aprendi a sambar, sou porta-bandeira da Embaixadores da Alegria [escola de samba voltada para pessoas com deficiências], faço shows pelo Brasil, criei concursos de moda. Antes de mim, as porta-bandeiras iam ao Carnaval e passavam na Marquês de Sapucaí [Sambódromo carioca]. Fiquei dois anos na escola de mestre-sala e porta-bandeira para poder aprender a sambar. Pedi aos professores para ensinarem todos os movimentos de braço que são feitos em frente aos jurados.

De que forma o ciclo da invisibilidade afeta e afetou você?

Eu fiz um curso de liderança para mulheres em São Paulo. Eram mais 300 mulheres e elas  não me viram como pessoa. Tinha um elevador, eu chegava, elas entravam e seguiam. Fiquei alarmada porque eram mulheres legisladoras. Eu não tinha mandato, mas tinha uma causa. Perguntei à professora do curso se eu estava de castigo. Ela disse que não. ‘Por quê?’, perguntou. ‘Porque você me botou ali naquele cantinho’, respondi. Veja a resposta que ela deu: ‘As mesas estão próximas e eu te coloquei ali para facilitar, para quando você sair você não incomodar as pessoas’. Então eu disse que a minha função ali era a de incomodar. ‘Amanhã eu quero ficar no meio das minhas colegas. Quando eu me levantar para ir ao banheiro e beber água, todo mundo vai ter que levantar e tirar a cadeira para eu passar’.

Como a professora reagiu?

Ela ficou me olhando. Falei que, para estar ali, peguei um voo e fiquei 45 minutos esperando porque não havia um equipamento para eu descer. Todo mundo desceu e eu fiquei no avião. E falei que nem podia transar com o piloto porque ele era gay. Por isso tudo, eu queria ficar ali no meio. ‘Eu preciso ser vista, preciso dizer o que quero como mulher, quais são os projetos de lei que quero que vá para o Senado’. Voltei para o hotel e pensei por que ninguém tinha me visto. Nesse dia, eu estava [literalmente] bege demais. No outro dia, fui com um vestido decotado, sapato dourado, batom vermelho e todo mundo veio tirar foto comigo. Eu já era o bichinho de estimação. No terceiro dia, fui de blazer e calça amarela e seguraram o elevador para que eu pudesse descer. No final do curso, falei que não tinha caneta, como elas, mas tinha história. ‘Eu vim para cá para que vocês soubessem que eu existo’, disse. Mas para que a gente seja vista como pessoa tem que ter capacitações diárias. Temos muita coisa para quebrar. Eu vejo que a culpa não é só da sociedade, é também da pessoa com deficiência. É preciso estar presente. Não dá para lutar por alguma causa sentada num sofá. Alguém tem que ficar 45 minutos num voo esperando uma cadeira para que alguém entenda que pessoa com deficiência também pega avião. 

É a cadeira ou a mulher que limita a própria vida sexual?

Tive muitos parceiros, nunca deixei de ter parceiros sexuais. É a mulher e o preconceito que limitam. Conheci meu atual marido quando era cadeirante, na Lapa [Centro do Rio de Janeiro], após uma audiência. Naquela noite, é importante falar, eu não saí para dar o coração para ninguém. Eu saí para dar, mas não era o coração. Porque eu me entendo como mulher e conheço o meu corpo, sei o que ele precisa. Eu parei a cadeira de rodas em frente ao restaurante que eu queria ficar e disse ‘é com essa cadeira que eu vou arrumar um parceiro hoje’. Tenho mais facilidade de conseguir relacionamentos do que uma mulher que anda, porque eu posso pedir ajuda para quem eu achar interessante. Foi isso o que eu fiz. Pedi ajuda para tirar a cadeira do carro. Ele tirou, montou a cadeira, depois perguntou se podia me acompanhar no chopp. Eu estava de salto alto vermelho. Fomos para o motel na mesma noite e cinco anos depois estamos juntos na mesma casa. Casamos naquela noite.

“A deficiência nunca foi obstáculo para que eu tivesse relacionamentos”

Algum parceiro teve preconceito pelo fato de você ter uma deficiência?

Eu tive outros parceiros antes do meu marido. Tive quatro casamentos, tenho um filho de 13 anos. Eu gosto de casar. A minha deficiência nunca foi obstáculo para que eu tivesse relacionamentos. Alguns homens têm o desejo e a curiosidade de saber o que é uma mulher com deficiência. A minha vontade de viver, a minha autoestima e a minha alegria contagiam as pessoas que chegam perto de mim. Eu lembro de uma pessoa que não quis se relacionar comigo porque era cadeirante. A partir dessa resposta eu não quis mais essa pessoa na minha vida.

Você já era uma mulher sexualmente ativa antes de ser uma mulher em uso de cadeira de rodas?

Sim. Eu sei que sou uma pessoa desejada e sei me fazer uma pessoa desejada. Acredito que é uma questão de estima, de saber o que você quer e saber quem você é. Seria a mesma mulher sendo cadeirante ou andante. Porque eu gosto do que eu vejo no espelho e melhoro o que eu acho que não está bom. As pessoas percebem quando você tem autoestima. Eu não me visto para chamar a atenção de homens, mas me visto de forma sensual. Eu gosto de um decote. Eu tenho as pernas que não funcionam, mas não tenho problema algum em usar saias com fenda. Eu não cubro o meu corpo nem a minha deficiência, eu me deixo ser vista. As pessoas me olham, muitas vezes com surpresa. Os caras de sites de relacionamento com quem saí sabiam que iriam encontrar uma mulher com deficiência, mas não imaginavam que seria uma cadeirante de salto alto, batom vermelho, super empoderada, e que dizia ‘e, aí, tudo bem?, vamos tomar um chopp?’. Depois vinha a admiração, o desejo, mas acho que eles esperavam encontrar a pobre vítima. Algumas mulheres, não só as com deficiência, ainda gostam de representar o papel da pobre vítima arrastando corrente. E a gente não pode arrastar corrente.

No que a sua experiência aponta um caminho para mulheres que desejam ter um parceiro e se relacionar sexualmente?

Eu percebo que o maior limitador para que essas mulheres se mostrem de forma sensual e sexual é o preconceito. Elas têm medo de serem discriminadas. A gente tem que se abrir para a vida. Às vezes, o medo também limita. A gente tem que conversar muito e fazer um acompanhamento porque não é legal confundir carência com amor. A pessoa tem que entender quem ela é e o que deseja naquele momento. Há pessoas que, em busca de amor, trocam corpo por sexo. E não é isso. É uma descoberta que cada um vai fazer na sua hora, no seu momento. A minha experiência de vida não serve para todas as pessoas. Cada um tem a sua peculiaridade e a sua vontade. Sou casada com meu marido há cinco anos e sou feliz. Se não fosse feliz não estaria mais casada com ele. Eu não preciso de um marido para me ajudar na condição financeira, porque eu luto por ela desde nova. Eu só preciso de um homem que fique do meu lado, seja meu companheiro e valorize a mulher que eu sou. No dia em que ele não cumprir esse papel, com certeza ele não vai ser mais meu marido. 

Seu marido enfrentou alguma situação de preconceito ao se relacionar com você?

A maior dificuldade que meu marido teve foi o preconceito dos amigos e da família. Meu marido me desejou desde a primeira vez que me viu. A gente teve uma noite de sexo maravilhosa. Eu percebi que queria aquele parceiro para a minha vida e ele percebeu que eu era a mulher que poderia satisfazê-lo. Mas o enfrentamento da família dele foi difícil. E isso não foi superado. Todas as vezes que ele tem uma briga com a família vem a frase ‘hoje você é aquele cara que empurra a cadeira de rodas’. Isso é falado de forma pejorativa e ele ainda se sente ofendido. Não me machuca porque é um fato concreto que ele empurra a cadeira de rodas. Eu espero que um dia ele não se ofenda mais. 

Lado a lado

— Foto: arquivo pessoal.

Antes de Lu Rufino, o carioca Vagner Cherem não tinha namorado uma mulher com deficiência. A causalidade fez com que Vagner ajudasse Lu a tirar a cadeira de rodas do  carro. No primeiro contato, Vagner diz que viu a beleza de Lu. “Eu fui ajudá-la porque é da minha natureza ajudar o próximo”. O pedido de ajuda virou uma conversa no bar, uma noite muito boa, um namoro e um casamento. “Aconteceu e nos envolvemos. Não vejo nada de anormal e diferente de outras mulheres”, contou à Radis

Vagner afirma que viu Lu sem qualquer preconceito. “Nós nos respeitamos, temos uma vida sadia, favorável para os dois lados. O filho dela me respeita”, salientou. Ele afirma que só sente gratidão encontrar Lu em seu caminho. “Já tive envolvimento com outras mulheres, mas nada foi tão especial como ela é na minha vida”, assume. Para ele, nada muda na relação sexual. “Tendo respeito de ambas as partes, não tem diferença nenhuma. Precisa respeitar se a mulher disser sim ou não”, completou. Lu incentivou o marido a voltar a estudar e este ano ele vai se formar em Pedagogia. Vagner tem um filho com deficiência física e cognitiva e que, mesmo com 29 anos, sempre teve sua sexualidade negada. “Eu discordo, mas a mãe é evangélica e acha que o meu filho não pode fazer isso”, comentou.

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